Título: “Até Que as Pedras Se Tornem Mais Leves Que a Água”
Autor: António Lobo Antunes
Editora: Dom Quixote
Páginas: 456
A história do mais recente livro de Lobo Antunes, como qualquer história de qualquer livro de Lobo Antunes, conta-se rápido: um alferes, casado, que serviu no Ultramar, ao regressar da guerra, traz consigo uma criança órfã de quatro ou cinco anos, que adopta e trata como se fosse um filho. Passados quarenta anos, o órfão e o combatente, acompanhados das suas respectivas esposas e da filha do veterano nascida dois anos após o seu regresso, visitam a aldeia da família para assistir à matança anual de um porco. Desde a primeira página sabemos que o órfão irá matar o pai no momento em que este esfaquear o animal.
Esta simplicidade que encontramos nas narrativas de Lobo Antunes justifica-se pela primazia dada pelo escritor à linguagem, que remete a história contada para um papel necessariamente secundário. O que importa é como se diz e não o que se diz, os romances funcionam à volta da narração e não propriamente do que é narrado. A história evolui sempre em espiral, sendo cada progressão na história feita muito lentamente e acompanhada de um regresso atrás.
Assim, a narrativa avança ao mesmo tempo que recua, em loop, e, à medida que as páginas vão passando, inovações estilísticas vão sendo gradualmente introduzidas (começa-se pela constante intromissão de cenas do passado no meio de acontecimentos presentes, depois frases começam a ser interrompidas a meio, depois suprimem-se os predicados das orações (“percebia-se que a minha mulher dores”(p.90)), até que, a meio do romance, as próprias palavras são suspensas a meio, para que memórias passadas possam entrar mais abruptamente (“os pulsos, os tornozelos, as pernas” (p.348)). Desta forma, Lobo Antunes consegue criar um efeito de constante estranheza que não permite aos seus leitores sentirem-se confortáveis em narrativas já de si tendencialmente desconfortáveis.
Ao longo do livro, várias personagens procuram justificar a adopção do órfão por parte do alferes, uma adopção particularmente estranha quando percebemos que fora o próprio alferes o responsável pela morte dos seus pais. É então sugerido que a criança veio como souvenir de guerra, ou por remorsos, ou como uma prova de que o alferes esteve mesmo lá e de que a guerra não foi uma ilusão, ou para que a criança crescesse e o matasse, como vingança, ou finalmente, para que não se vingue nunca, para que se submeta ao alferes e aceite tudo como uma consequência natural da guerra.
Apesar da pertinência de todas as sugestões anteriores, são estas duas hipóteses finais as que mais interesse parecem ter. Acreditar que o alferes traz de Angola uma criança na esperança de que ela se submeta sempre a si e nunca o culpe pela morte dos seus pais é tentar que aquilo que se fez na guerra não conte como uma acção e seja visto apenas como o cumprimento de uma missão à qual simplesmente se obedece, o que retira qualquer agência ou culpa ao comportamento dos tropas (“por vontade que te recordes sempre do que fiz e não te vingues nunca, aceites, é a guerra não é, e tínhamos ordens não é” (p. 217)).
Mata-se, queima-se, viola-se e mutila-se apenas para que se cumpram os mandamentos de uma ordem superior, como aliás foi alegado por inúmeros membros das SS após a Segunda Guerra. É exactamente esse o raciocínio que leva a que, quando o alferes pergunta ao seu comandante se a consciência não lhe pesa pelas mulheres que violou, este lhe responda apenas: “vá se foder, meu alferes”. Porque a regra mais importante da guerra é a de ser proibido evocar a consciência.
No entanto, não se pode descartar também que esta estranha adopção tenha acontecido precisamente para que o órfão africano se vingue um dia e o mate. Isso não só é profetizado várias vezes por outros militares ao alferes, como parece ser a vontade do próprio, que por duas vezes quase se suicida durante a guerra e que insistentemente pergunta “És tu quem vai matar-me, não és?” (p.391). Sendo impossível parar este constante retorno a África e às memórias da guerra, as pedras só se tornarão mais leves do que a água quando a morte chegar, quando o carrossel for finalmente parado, daí que o órfão descreva o parricídio como um gesto de amor.
Sendo certo que os romances de Lobo Antunes pressupõem, como foi acima explicado, uma ideia de repetição, esta repetição parece ir, de inúmeras formas, longe demais, uma vez que cada novo romance do escritor não parece acrescentar muito aos anteriores. Lobo Antunes é um escritor virtuoso e sabe exactamente o que resulta e o que não resulta, daí que os seus romances e as suas entrevistas muitas vezes pareçam não passar de best-ofs de romances e entrevistas anteriores. As pedras nos rins da mulher do alferes, tornadas mais leves que a água pela aproximação da morte, que são afinal um cancro em estado terminal, recordam as pedras nos rins que a dona Orquídea deseja várias vezes que fosse uma doença mais grave em A Ordem Natural das Coisas, tal como as inúmeras vezes em que as personagens olham as coisas sem as verem (“os olhos dela em mim sem me verem” (p.337); “cruzava-o sem o ver” (p.339); “olhava através da mulher um feiticeiro a dançar” (p.357)) parece apenas uma reciclagem de ideias antigas, se nos lembrarmos, por exemplo, da letra do “Tango do Marido Infiel Que Fez Amor Numa Pensão do Beato”, em que o tal marido se queixa de estar “cansado dessas mulheres/ que ouvem sem me escutar/ que me olham sem me ver/ que me amam sem saber/ que me roçam sem me tocar”.
Mesmo dentro do romance, temos dificuldade em distinguir as personagens umas das outras já que, apesar de em cada novo capítulo mudarmos de narrador, as diferenças são sempre residuais, sendo indistinguíveis a voz e as memórias uns dos outros, o que torna essa mudança de narrador sob todos os pontos de vista desnecessária. Todas as personagens são melancólicas, todas têm uma sensibilidade acima da média, todas são silenciosas e todas parecem ter vivido as mesmas coisas exactamente da mesma maneira, sendo as frases que não lhes saem da cabeça quase sempre as mesmas (apesar de nos ser dito várias vezes que nunca falavam das suas vidas uns com os outros).
Os dois capítulos em que o narrador é a filha do alferes são, sob esse ponto de vista, elucidativos, uma vez que não trazem uma nova luz a essa personagem misteriosa que se recusa a pertencer à família, nem alteram minimamente o foco das memórias, apesar de esta não ter estado, como é evidente, na Guerra do Ultramar, centro das reminiscências de pai e filho. Assim, enquanto esperamos que as pedras, que um dia ainda havemos de amar, se tornem mais leves que a água nesse sôbolo rio que vai até à Babilónia e em cima do qual cavalos fazem sombra, não deixamos nunca de sentir um inquietante sentimento de déjà-vu.
João Pedro Vala é aluno de doutoramento do Programa em Teoria da Literatura da Universidade de Lisboa.