Entrou na sala de audiências do tribunal da Guarda com a mesma calma aparente que manteve naquela madrugada de 11 de outubro de 2016, quando abriu fogo contra dois militares da GNR, em Aguiar da Beira. Pedro Dias, que andou fugido às autoridades cerca de um mês, começou esta sexta-feira a ser julgado por cinco crimes de homicídio (três consumados e dois tentados), três sequestros, dois roubos e três detenções de arma proibida. Para já, disse não querer prestar declarações. A primeira sessão ficou marcada pelo depoimento do guarda António Ferreira, o militar da GNR que sobreviveu e que é a testemunha principal do processo.
Eram cerca de 10h00 quando Pedro Dias entrou na sala, vestido de fato cinzento, e sentou-se ao centro do banco reservado aos arguidos, de frente para o juiz. Levantou-se, a pedido do magistrado, para se identificar. E acabou por dizer que, “de momento”, não prestaria declarações.O juiz Marcos Gonçalves passou então a palavra aquela que seria a primeira testemunha do julgamento: o guarda António Ferreira. Mas, antes de entrar na sala, o militar pediu um minuto a sós com o advogado Pedro Proença.
Proença regressou à sala com o pedido do seu cliente. “Atenta à matéria sensível dos factos ainda bem vivos na sua memória”, António Ferreira pedia para prestar depoimento sem Pedro Dias na sala. Apesar da oposição da advogada do arguido, Mónica Quintela, o coletivo de juizes concordou. Pedro Dias foi levado para uma sala no tribunal onde assistiu ao depoimento por videoconferência. Quando se levantou para ser levado pelos guardas, abanou a cabeça em sinal de protesto.
“Não estão em causa razões de segurança do assistente, mas antes o proporcionar de um ambiente que, já de si condicionado pelas características de uma sala de audiências, proporcionam ao declarante as melhores condições para contribuir para a descoberta da verdade material”, respondeu o juiz presidente Marcos Gonçalves.
O militar da GNR, de 42 anos, entrou finalmente na sala. E alertou o coletivo de juízes que dado “o seu estado de saúde” não podia permanecer muito tempo sentado. O juiz respondeu-lhe que podia levantar-se as vezes que quisesse e podia parar. Num discurso visivelmente difícil, Ferreira recordou o que viveu naquela madrugada, às mãos de Pedro Dias.
Disse que foi ele quem, com uma lanterna na mão, passou a revista à carrinha Toyota onde o arguido Pedro Dias se encontrava a dormir, sentado no lugar do condutor junto ao hotel da Termas. “O Caetano ficou do lado dele e eu bati no vidro no lado do pendura”. Depois foi até ao carro patrulha para apurar se havia “alguma pendência” relativamente à viatura. Pedro Dias explicou, a certa altura, aos militares que a proprietária da carrinha era “uma sócia”, justificando esta não estar em seu nome.
Ferreira contou que foi Caetano quem, depois, se afastou para mais um contacto para apurar se Pedro Dias estava referenciado pela polícia. Quando o colega voltou trazia informações, obtidas via rádio, de que “Pedro Dias era perigoso e estava referenciado pelo posto de Fornos de Algodres”. Mais. Podia estar armado. O juiz perguntou se o arguido terá ouvido esta informação naquela madrugada e o militar respondeu que sim. Terá sido neste momento que os dois militares foram distraídos por um barulho vindo da vegetação.E que Pedro Dias abriu fogo.
“Quando eu virei a cara, estava ele com a arma”, demonstrou Ferreira, usando a mão direita para exemplificar ao juiz. “Se te mexeres, fodo-te os cornos”, terá dito Pedro Dias, para depois abrir fogo contra o guarda Caetano. “Qual seria a arma?”, perguntou-lhe o juiz. “Devia ser uma 6.35 ou uma 7.65 mm, uma arma pequena”, respondeu. Ferreira disse ainda que, naquele momento, começou a gritar pelo colega. “És burro? Não vês que ele está morto?”, respondeu Pedro Dias, obrigando-o a levantar a mão direita e, com a esquerda, livrar-se do cinturão com o coldre da arma.
Ferreira gritou-lhe várias vezes para desaparecer. Mas foi obrigado a entrar no carro patrulha, para o lado pendura, e foi mantido sob sequestro durante um tempo que não consegue precisar.
— Desaparece, leva o que quiseres, deixa-me ficar aqui ao pé dele [colega Caetano que foi baleado] para o socorrer.
— Queres morrer?, terá respondido Pedro Dias.
O guarda Ferreira, que entretanto pediu para se levantar, descreveu as voltas que deu sequestrado no carro patrulha, até que foi parar a um local ermo — que diz desconhecer. Foi obrigado a algemar-se num pinheiro. Baleado, tombou no chão. Quando estava a “perder os sentidos” sentiu que Pedro Dias lhe cobriu o corpo com vegetação. Só mais tarde conseguiu libertar-se. “Tem ideia do que é que Pedro Dias queria ou estava a pensar quando andou consigo no carro?”, perguntou-lhe o juiz. “Não faço ideia o que lhe passou pela cabeça. Ainda hoje não sei”, respondeu Ferreira, que admitiu ter sido impossível escapar. “Não tinha hipótese. A arma estava sempre apontada”.
Militares não encontraram nada suspeito
Quando encontraram Pedro Dias, os dois militares da GNR estavam a fazer uma patrulha por causa dos focos de incêndio que se tinham registado naquela zona. Pedro Dias tinha na carrinha “quatro ou cinco jerricans de combustível” e material agrícola diverso. Quando lhe perguntaram para que servia, o arguido respondeu que este material era para semear aveia.
Tanto o juiz Marcos Gonçalves como a advogado de Pedro Dias perguntaram a Ferreira se aquele material não levantou suspeitas e se não pensaram em lavrar “um auto”. “Eu que não sou da GNR e acharia suspeito”, disse o juiz. O militar respondeu que não. Que o arguido mostrou tudo tranquilamente e explicou para que servia o material, logo não havia motivos para um auto de contraordenação.
Já à tarde os juízes voltaram a insistir com o militar. Como é que ele se distraiu ao ponto de não ter percebido que Pedro Dias estaria armado e que iria abrir fogo, mesmo depois da informação policial que dava conta de que era um homem perigoso. “Às vezes o nosso cérebro faz coisas que não conseguimos explicar”, disse, mantendo que tudo aconteceu demasiado rápido.
Como a vida de António Ferreira mudou
Não foi só o corpo de António Ferreira que mudou. O militar contou que, naquele dia 11 de outubro de 2016, pesava 98 quilos enquanto hoje pesa 130. Neste último ano, passou mais de dois meses acamado e o resto do tempo foi passado em consultas médicas, algumas com um psicólogo. Todos os dias toma comprimidos para conseguir dormir e há dores que o vão atormentar o resto da vida. “Sinto sempre a face direita dormente”, explicou. Tem dificuldades em abrir a boca e não consegue estar muito tempo na mesma posição. Isso será crónico, de acordo com os médicos.
Os médicos também não arriscam remover-lhe o projétil que tem alojado na cervical, porque isso pode significar o resto da vida “numa cadeira de rodas”. Consequentemente, o militar não pode fazer exercício físico ou movimentos bruscos, porque tal pode fazer mover a bala de sítio. “Eu costumava montar a cavalo e nunca mais posso fazê-lo”, disse o militar. Também a vida profissional nunca mais será igual. Ferreira ainda não regressou ao serviço, mas dificilmente voltará a conseguir cumprir as tarefas com as quais sonhou quando quis entrar na GNR. “Sinto-me revoltado. Nunca mais vou ter a vida que tinha antes”, diz o militar, que também já não consegue ajudar os pais, já idosos, na agricultura.
O militar pede uma indemnização a Pedro Dias na casa dos 70 mil euros pelos prejuízos que já teve.
A primeira sessão do julgamento de Pedro Dias esteve quase para não acontecer por causa da greve do corpo da Guarda Prisional. No início da sessão, o juiz presidente Marcos Gonçalves fez mesmo um agradecimento aos guardas prisionais que “não obstante a greve” trouxeram o arguido da cadeia de alta segurança do Monsanto, Lisboa, para a Guarda.O julgamento continua na próxima terça-feira.