A história já era insólita: o presidente da Junta de São Domingos de Benfica comprou uma casa de férias por um valor abaixo daquele a que o imóvel foi colocado no mercado e, depois disso, empregou o vendedor na Junta. Agora, o proprietário da imobiliária Domus Scallabis, Miguel Serrão, avança com detalhes adicionais à investigação do Observador: o arquiteto da Junta de Freguesia, Rui Carvalho, chegou a ir ver a casa perto da praia de Santa Cruz e pediu que lhe fossem enviadas plantas; o proprietário chegou, afinal, a pedir 330 mil euros pela casa, mas acabou por vendê-la por 245 mil euros ao futuro empregador; e o recheio estaria longe de valer os 30 mil euros que constam da escritura. O presidente da Junta rebate as acusações, em declarações ao Observador: diz que o pedido ao arquiteto da Junta foi “pessoal” e que a imobiliária já não estava a “comercializar” a casa na altura em que a comprou.

Assédio, contratos e polémicas. Autarca do PS compra casa de férias com desconto e dá emprego a vendedor

Tudo começou quando Luís Costa Matos decidiu vender um T5 de estilo rústico, com piscina, que tinha em A-dos-Cunhados, a cerca de 5 quilómetros da praia de Santa Cruz. A casa chegou a estar à venda numa imobiliária — segundo um anúncio, que por lapso nunca foi retirado — por 298.000 euros. A casa acabou por ser vendida por Luís Costa Matos ao presidente de Junta de São Domingos de Benfica por 245 mil euros aos quais se somaram mais 30 mil euros pelo recheio. A escritura — consultada pelo Observador e tal como foi noticiado a 9 de fevereiro — já tinha comprovado que a poupança, face ao anúncio, pode ter sido de 53 mil euros. Novas informações da imobiliária, a Domus Scallabis, demostram que o desconto pode ter sido de 85 mil euros — relativamente ao último valor pedido pelo proprietário à imobiliária: 330 mil euros, segundo o dono da Domus Scallabis.

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Podia apenas ser um bom negócio, mas há outro detalhe, que já tinha sido noticiado na primeira investigação do Observador: meses depois de comprar esta casa a Luís Costa Matos, que vivia no concelho de Torres Vedras, António Cardoso empregou-o na Junta de Freguesia de S. Domingos de Benfica, com um contrato de 1.500 euros brutos por mês (aos quais ainda acresce IVA).

Arquiteto da Junta estudou as plantas da casa de férias do patrão

Entretanto, seriam reveladas novas informações. Segundo o proprietário da imobiliária envolvida, foram também enviadas por email “plantas para o arquiteto Rui Carvalho“, que era “apresentado como uma espécie de braço-direito” do presidente da Junta de Freguesia. O problema é que Rui Carvalho é um colaborador da Junta. Ou seja: o arquiteto a quem a Junta paga para analisar projetos, também analisou as plantas da casa de férias que o autarca queria comprar.

Questionado pelo Observador, António Cardoso confirma que pediu ajuda ao arquiteto Rui Carvalho, mas diz que o fez a “título pessoal” e para uma “mera opinião“. E explicou: “Enquadrando-se na sua área de especialidade (arquitetura) remeti ao arquiteto Rui Carvalho as plantas da casa que pretendia comprar apenas e só tendo em vista a obtenção de uma mera opinião do mesmo sobre as mencionadas plantas, não tendo o arquiteto Rui Carvalho tido qualquer envolvimento no negócio em causa”.

O autarca do PS acrescenta ainda que esta é uma “situação absolutamente normal, como o seria se pretendesse adquirir um automóvel e consultasse a opinião de um jornalista de uma revista de automóveis ou um mecânico conhecido”. Além disso, António Cardoso acrescenta: “Apesar de ter uma relação contratual de prestação de serviços com a Junta de Freguesia a que presido, através da empresa de que é sócio, o arquiteto Rui Carvalho não detém qualquer obrigação de exclusividade no trabalho que efetua para a Junta de Freguesia”.

Como o Observador noticiou a 9 de fevereiro, o executivo liderado por António Cardoso já faz ajustes diretos à Metrikstage desde 15 de janeiro de 2014, empresa de Rui Carvalho (que é militante socialista), no valor de 135.423 euros para “consultoria técnica para a Requalificação do Espaço Público, Ambiente e Higiene Urbana”. Entre os funcionários da Junta, o “arquiteto Rui Carvalho” é visto como o “braço-direito” de António Cardoso e está, diariamente, nas instalações da autarquia.

A Metrikstage — Arquitetura, Lda é sediada em Condeixa-a-Nova e é detida quase na totalidade por Rui Carvalho (tem um outro acionista com uma percentagem muito minoritária, que é a mãe do arquiteto). O arquiteto socialista era também membro eleito pelo PS da Junta de Freguesia de Carnide quando foi contratado pela primeira vez por António Cardoso.

Imobiliária queixa-se de ter sido enganada no negócio

O proprietário da Domus Scallabis — última imobiliária a promover a venda da casa — queixa-se de ter sido enganado pelo proprietário da casa e de ter tido prejuízo com esta venda.  Miguel Serrão conta que foi ele próprio que apresentou António Cardoso a Luís Costa Matos. O responsável da imobiliária lembra que chegou a apresentar uma proposta de 260 mil euros a Luís Costa Matos, que este não aceitou, dizendo que “não vendia abaixo dos 298 mil euros”. A casa acabou, no entanto, por ser vendida por 245 mil euros. Ou seja: 53 mil euros abaixo do valor pelo qual foi colocado à venda pela imobiliária.

Já Luís Costa Matos, que agora trabalha na comunicação da Junta de Freguesia, nega ter feito qualquer coisa para prejudicar a imobiliária. Garante, até, que a melhor proposta que recebeu de António Cardoso, via imobiliária, foi de 230 mil euros (em dezembro de 2016). Luís Costa Matos, em declarações ao Observador, acrescenta ainda que “em janeiro de 2017” rescindiu “o contrato com a imobiliária onde a casa esteve à venda por 298 mil euros” e que “esse contrato, que não era de exclusividade, foi rescindido amigavelmente e sem qualquer problema. Aliás, a desistência foi feita pela imobiliária“.

Para provar esta desistência da Domus Scallabis, Luís Costa Matos mostrou um email ao Observador do próprio Miguel Serrão, que dizia: “Como não conseguimos ter retorno na venda da moradia pelos 298.000€, não faz para nós qualquer sentido, continuar a promover a mesma por valores bastante mais altos (…) Neste sentido, já procedi à retirada da promoção do vosso imóvel no nosso sistema.”

Questionado sobre esta desistência, Miguel Serrão explica ao Observador que só abdicou de promover a casa porque — num email anterior (que diz não ter problema em mostrar perante a justiça, se for caso disso) — “Luís Costa Matos deixou bem claro que já não queria vender por 298 mil euros e que queria, afinal, vender por 330 mil euros.” Tendo este valor como referência, o desconto a António Cardoso pode ter chegado aos 85 mil euros.

Além disso, Miguel Serrão conta que a venda do recheio nunca esteve em causa e que “dificilmente valeria os 30 mil euros [que constam da escritura] ou perto disso”. Ao que o Observador apurou, a casa tinha um piano (mas já antigo), alguns quadros (da autoria do próprio Luís Costa Matos) e mobília com alguns anos, sendo difícil chegar a um valor objetivo do recheio.

Quanto à forma como a imobiliária foi envolvida no negócio, há uma cronologia factual (e consensual entre ambos os lados): Luís Costa Matos foi apresentado a António Cardoso através da imobiliária; a esta apresentou várias propostas, que o proprietário recusou; o proprietário e o comprador deixaram de contar com a imobiliária; meses depois, o proprietário e o comprador chegaram a acordo.

Miguel Serrão explica que soube que a casa já tinha sido vendida pela notícia do Observador e que agora percebe por que razão o proprietário forçou o afastamento da imobiliária. O proprietário da Domus Scallabis lamenta essa atitude, já que fez pressão junto de Luís Costa Matos para que aceitasse vender a casa a António Cardoso, que era a “prenda de Natal” que o presidente de Junta queria oferecer à mulher no Natal de 2016. Mas as negociações prosseguiram. Aliás, chegou a estar agendada uma visita perto da passagem de ano com António Cardoso. Na altura (passagem de ano de 2016 para 2017) o próprio Rui Carvalho comunicou à imobiliária que o presidente de Junta não podia nessa data porque ia “ao Alentejo passar o ano com o Primeiro[-ministro, António Costa]”.

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Luís Costa Matos nega ao Observador ter sido desleal com a imobiliária e diz que desistiu, em dezembro, de vender a casa e que só em abril/maio é que voltou a entrar em contacto com António Cardoso. “Informo que a minha casa de Santa Cruz, adquirida pelo Sr. António Cardoso em maio de 2017, esteve à venda por diversas vezes e em diversas imobiliárias, e que neste caso concreto a comercialização teve dois momentos com recusas diversas às propostas apresentadas numa primeira fase e com intermediação imobiliária, e uma conclusão posterior já sem envolvimento de qualquer imobiliária, tendo por isso o negócio sido celebrado diretamente por mim“.

Também António Cardoso começa por explicar que o facto de ser presidente da Junta de Freguesia de São Domingos de Benfica não o “inibe nem impede de efetuar negócios e contratos particulares, de natureza estritamente pessoal e sem qualquer interferência ou ligação com o cargo” que desempenhe.

António Cardoso explica que procurou “negociar com os vendedores o preço de aquisição, tendo o processo negocial envolvido propostas recusadas de parte a parte, sendo que apenas mais tarde, quando a imobiliária em causa já não detinha a comercialização do imóvel por motivos de relação entre esta e os vendedores, que me são completamente alheios, foi possível chegar a acordo quanto à compra por valores mutuamente aceitáveis para mim e para os vendedores”.

O autarca voltou a reiterar que “nem o negócio referido (compra e venda do imóvel), nem os valores do mesmo, nem, muito menos, o envolvimento ou não da imobiliária no negócio, tiveram ou têm qualquer ligaçãocom a atividade pública que exerce ou  “com a contratação do vendedor para prestar serviços na autarquia” a que preside.

Logo após a publicação da primeira notícia do Observador, o primeiro eleito do CDS na assembleia de freguesia de São Domingos de Benfica, Nuno Brito, enviou um requerimento para o novo presidente daquele órgão a pedir esclarecimentos sobre a escolha de Luís Costa Matos.

No texto do requerimento, Nuno Brito faz referência à notícia do Observador, dizendo que “este é mais um caso que serve de exemplo em que do nada compra-se uma casa, faz-se amizade com um indivíduo e arranja-se um emprego… o contribuinte paga!”

Na sequência das informações desse artigo, o CDS exige que “seja comprovada ‘a vasta experiência em comunicação’ [de Luís Costa Matos] como é afirmado no jornal Observador pelo presidente da Junta”.