Tiago Milheiro lembra-se como se tivesse sido ontem. Os lutadores a correr de um lado ao outro do ringue, os golpes acrobáticos, o público a aplaudir de pé. Ainda não sabia muito bem o que aquilo era, mas já tinha a certeza de uma coisa — quando fosse grande, também queria voar sobre os ringues como os lutadores que via na televisão.
Foi ainda em pequeno que viu o primeiro combate de wrestling, num canal “francês ou alemão da TV Cabo”, que “costumava passar o WCW” (World Championship Wrestling). Essas primeiras lutas nunca lhe saíram da cabeça, mas a paixão a sério só chegou mais tarde quando, com 14 anos, começou a ver religiosamente os campeonatos da WWE (World Wrestling Entertainment), que passavam semanalmente na SIC Radical.
Foi nessa altura que meteu na cabeça que queria aprender a fazer wrestling. “Houve um dia em que cheguei ao pé do meu pai e disse-lhe assim: ‘ó pai, não me podes fazer um ringue?’ E ele fez-me um ringue no quintal“. Foi aqui que tudo começou. “Na altura, o meu irmão pedia consolas e assim. Eu também jogava, mas não era muito a minha cena”. A “cena” era outra. Era mais “ouvir música e fazer desporto”, lembra.
Passados dez anos, nada parece ter mudado. O gosto pelo wrestling continua lá, mais vivo do que nunca. “Passou de ser um sonho do quintal para uma coisa mais a sério. Já estive em seis países diferentes, onde sou pago para fazer isso”, uma coisa que poucos em Portugal se podem gabar de ter feito.
Aos 24 anos, Tiago Milheiro, Red Eagle nos ringues, é aquilo que sempre quis ser: um lutador profissional de wrestling. “No início, era mais um passatempo. Depois passou a ser uma coisa a sério. Passou a ser o meu trabalho — é isto que faço.”
O que faz, faz por gosto, mas admite que o início pode ser difícil e muito injusto. “Quando comecei a fazer wrestling e a aprender — porque isto é uma coisa que demora anos a aprender — só montava ringues. O que fazia era pôr o ringue no sítio, levantar postes, e assim. É o que acontece aos lutadores novos, todos passam por isso.”
A formação foi feita em Portugal, mas também lá fora. Por cá, não havia pessoas especializadas, tinham de vir todas de fora. “Era um promotor que as trazia”, lembra. E era por isso que todos os segundos que passava com elas eram preciosos. “Durante dez, trinta minutos, aproveitava para aprender com elas.” Observava com atenção cada passo, cada movimento. Tentava absorver tudo.
A pouco e pouco, o esforço começou a compensar. Deixou de montar ringues, e começou a participar em pequenos espetáculos. “Não eram muito grandes, mas tínhamos alguns eventos em Portugal. Algumas promotoras publicavam os combates na internet, as pessoas viam e contactavam-me por email. Foi assim que as coisas foram surgindo.”
Red Eagle, o “lutador que leva o Benfica no coração”
Foi em 2008, quatro anos depois de ter começado a praticar wrestling, que Tiago Milheiro se transformou em Red Eagle. O nome surgiu por acaso, e nem foi por escolha própria. Na altura, Tiago Milheiro trabalhava com uma promotora que tinha uma parceria com a Benfica TV. O canal de televisão estava então interessado em produzir um programa de wrestling, onde um dos lutadores tinha de ser — claro está — o “herói do Benfica”.
“Era fascinante. Eu ia lutar ao norte e apareciam pessoas com ténis do Benfica, bandeiras do Benfica e ovos-moles”, lembra o wrestler. “Agradeço imenso a essas pessoas, principalmente pelos ovos-moles”, diz entre risos. “Era muito divertido, iam pessoas mesmo fanáticas”.
Dessa época, guarda na memória um combate em especial, no qual um homem, acompanhado da mulher e do filho, decidiu torcer pelo lutador como se de um jogo do Benfica se tratasse. “Levantou-se da cadeira e começou a gritar ‘Benfica!’ como se não houvesse amanhã e ‘Red Eagle‘. A mulher e o filho estavam a olhar para ele com um ar muito assustado. É que ele saltou da cadeira como se o Benfica tivesse marcado um golo! Foi igual!”.
Podem passar décadas, mas Tiago Milheiro garante que nunca se irá esquecer daquele momento. “Isto foi há anos, mas ainda não me conseguir esquecer dessa imagem”.
O programa da Benfica TV durou pouco, mas o nome acabou por ficar. “Obrigada a quem escolheu o nome, porque escolheu muito bem”, agradece sorridente. Hoje em dia, quando entra no ringue, Tiago Milheiro já não é Tiago Milheiro. É Red Eagle, a personagem que, admite, não é assim tão diferente dele próprio. “Eu já sou assim, não vale a pena. A minha personagem já sou eu. Mas claro que o fato é diferente.”
O fato “diferente”, uma máscara a lembrar a águia que lhe dá o nome, foi desenhada pelo pai e feita à medida no México por um mask maker. “A vida dele é só fazer máscaras e fatos. Desde pequeno que esse é o trabalho dele. Até tenho alguma dificuldade em falar com ele, porque ele não sabe escrever. Tem de ser por telefone ou por Skype. Era uma pessoa pobre, que aprendeu a fazer um trabalho de sucesso.”
Desde que se tornou em Red Eagle, Tiago Milheiro já correu o mundo. Lá fora, chega a lutar três a seis vezes por semana. É um trabalho duro, mas Tiago não se importa porque fá-lo “com o coração”. “Já tive a oportunidade de ver a maior parte de Inglaterra muito por causa disto. Já viajei por todo o lado. É uma coisa que não há dinheiro no mundo que pague”, confessa. Até já chegou a lutar no Dubai, onde as “paredes são feitas de ouro” e onde se “paga para andar de elevador”.
Há pouco tempo esteve em Barcelona, onde participou numa prova de captação para ir treinar para o Japão. “Ir para um dojo no Japão significa acordar, treinar, limpar o dojo, comer e dormir. É a única coisa que fazes, para além de dares espetáculos no Japão inteiro.” Apesar de ter ficado colocado num bom lugar, Tiago Milheiro não conseguiu ser selecionado. “Só o primeiro teste eram 500 agachamentos. Sem aquecimento nenhum!”
É por isso que, no wrestling, o mais importante é “fazer as coisas com o coração”. “É um bocado difícil para quem não goste mesmo disto”, admite. “Agora em setembro vou outra vez para Inglaterra e ainda estou à espera de uma resposta para um projeto que vai haver na China, para a televisão, durante três meses.”
De herói do Benfica a professor de wrestling
Há seis anos, Tiago Milheiro decidiu que estava na altura de abrir a sua própria escola. Na altura, já tinha corrido todas as escolas portuguesas e até já tinha estado lá fora.”Senti que devia abrir a minha escola. Na altura, pensei: ‘Já treinei aqui com toda a gente que havia para treinar. Se calhar vou abrir uma coisa mais perto de mim e partilhar isso com as pessoas’.” E assim foi.
A escola nasceu em 2009. O espaço foi cedido pela Academia Recreativa da Ajuda, e é aí onde, duas vezes por semana, Tiago Milheiro e os colegas se juntam para treinar. “Começou por ser um passatempo, não tinha um objetivo. Juntávamo-nos e treinávamos. Era como se fosse uma banda. Quando começas, ensaias na garagem e fazes uns concertos para os amigos. A partir daí, começas a desenvolver os teus objetivos. Foi basicamente isso que aconteceu.”
A sala destinada aos treinos fica na parte de trás da academia, meio escondida de quem ali entra só para beber um café ao final da tarde. O chão é em madeira e ao fundo há um palco estreito, que parece ser igual aos de todas as associações recreativas. Aí, amontoam-se barcos de papel e cenários desbotados, que parecem ter sido esquecidos há décadas. Não há ringues, plateias ou pessoas a aplaudir.
Para os exercícios, usam-se várias camadas de colchões empoeirados, metodicamente arrumados. “Usamos três camadas de colchões, mas mesmo assim não é suficiente”, explica David Quadrado, um dos alunos da escola. “Continua a magoar. O ringue é melhor, apesar de só ter uma camada de esponja e um estrado em madeira.”
Os treinos são exigentes e duram quatro horas. Não há tempo para pausas, apenas alguns minutos para dar um golo nas garrafas de água gelada trazidas do bar. Corre-se, salta-se, dá-se cambalhotas, como se de uma aula de ginástica se tratasse. Simulam-se movimentos, golpes e o professor — sempre atento — explica a importância de se saber cair. No wrestling nada é ao acaso. Não só para garantir a segurança dos lutadores, mas também para não estragar a magia. Tudo tem de parecer real.
“Claro que nem toda a gente nasce para ser lutador de wrestling“, admite Red Eagle. “É uma coisa que se aprende, mas também é preciso ter muita força de vontade.“ E pelo menos força de vontade é coisa que não parece faltar. David Quadrado, mais conhecido por Lobo Ibérico, é um dos onze alunos que integram atualmente o Centro de Treinos de Wrestling (CTW) da Ajuda. Já anda nisto há quatro anos — o que começou numa brincadeira, tornou-se numa segunda profissão a longo prazo.
A paixão pelo wrestling vem desde pequeno. Começou a ver os campeonatos quando estes passavam ainda na RTP, comentados por Tarzan Taborda (provavelmente o wrestler português mais famoso de todos os tempos), e por António Macedo. Quando as lutas foram retiradas da programação, acabou por perder o contacto com o desporto, que só voltaria a ganhar alguns anos depois, quando começou a explorar sites e blogues na internet. Foi assim que descobrir o wrestling japonês, e a partir daí o interesse foi crescendo.
“Comecei a participar em blogues que falavam de wrestling e que passavam os espetáculos. Conheci vários wrestlers portugueses nesses sites e foi um deles, da velha guarda, que me disse que um amigo, o Red Eagle, tinha uma escola.” David Quadrado nunca tinha pensado em meter-se no wrestling a sério, mas como o primeiro treino era “à borla” pensou “eh pá, que se lixe”. Até porque, quem é fã, “tem sempre aquela coisa do ‘como é que será estar lá, no ringue’“.
Foi apenas para experimentar, para “matar o bichinho”, mas a verdade é que nunca mais saiu. “E já estou nisto há quatro anos. Estreei-me no ano passado, no primeiro espetáculo do CTW, na Ajuda”. Por azar, logo no primeiro combate, levou “uma cacetada no nariz”. “Achei que o tinha partido e ainda faltavam três minutos para o fim. Tinha uma toalha verde nos bastidores que ficou vermelha.” Felizmente, o nariz ficou inteiro. Foi apenas um corte.
Nos ringues, é conhecido por Lobo Ibérico, porque achou “que era preciso um vilão”. “Queria algo que representasse um predador. O ringue é o meu território de caça, é o meu terreno. Então pensei nos predadores que tínhamos em Portugal. Já tínhamos a águia, por isso não podia ser. Um javali? Não. Um lobo!”
Durante os combates também usa uma máscara, que admite ser “simbólica”. “Não uso a máscara para esconder quem sou. Uso a máscara para mostrar quem sou. É o símbolo do predador que eu sou na realidade. Se alguém se meter comigo, vai magoar-se.” Até porque, “sejamos sinceros, quem me vê de máscara sabe logo que sou eu”.
Claúdia Bradstone Freitas é uma das alunas mais antigas da escola. A história dela é muito semelhante à dos outros alunos. “Já vejo combates desde pequena. Quando soube que havia escolas cá em Portugal, decidi entrar. Não comecei aqui, comecei em outro sítio, mas como não gostava mudei-me. Foi há seis anos.” O amor pelo wrestling já a levou lá fora algumas vezes. Por cá, tem sido presença assídua nos eventos organizados pelo CTW — no ringue, ou fora dele.
“Não usamos duplos. Isto é real”
Desde que foi criada em 2009, a CTW já organizou quatro eventos de wrestling na região de Lisboa. Mas Tiago Milheiro não quer ficar por aqui. O objetivo é “construir isto cá em Portugal” e criar uma tradição que nunca chegou a existir. Apesar disso, admite que é complicado, porque “as pessoas não estão acostumadas a ver isto como realmente é — como um espetáculo”. “Não estamos ali para nos aleijarmos.”
Mas os acidentes acontecem, e já lhe custaram 12 parafusos e duas placas de aço num dos braços. Até porque, garante: “Isto é real, os movimentos são reais, as quedas doem. Se isto não aleijasse, não tinha partido o braço em dois lados”.
“Toda a gente critica que é a fingir, que é falso. Quando vês um filme, ninguém critica isso. Isto é igual a um filme, só que nós não temos duplos. Somos nós que fazemos tudo”, defende Lobo Ibérico. Apesar disso, garante que quem vê um espetáculo ao vivo, gosta. “Ver ao vivo é outra magia. É muito diferente do que se vê na televisão.”
Para Tiago Milheiro, grande parte do público vem por curiosidade. Para ver como é. “Isso traz pessoas, claro. Mas quando saem daqui, saem contentes. E algumas delas voltam. Já fizemos isto aqui quatro vezes e as pessoas que vêm ver pela primeira vez, têm voltado e trazido amigos. E isso significa alguma coisa — significa que as pessoas gostam do que veem.”
É por isso que acredita que é possível “fazer isto crescer em Portugal”. Apesar de os eventos serem dirigidos a um público muito específico, acredita que é possível alargar a audiência se as “pessoas se desligarem do ‘é a fingir'”. “Eu acho que é possível, até porque tenho a certeza de que o wrestling — um produto bem feito — pode ser uma coisa para abrir as manhãs de um canal de televisão.”
“Temos o melhor nível de produção de wrestling a nível nacional. E estamos sempre a tentar fazer melhor”, garante. “O meu trabalho aqui em Portugal é esse — é ajudar pessoas que têm o mesmo sonho que eu.”