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A cidade onde os democratas vão votar Trump

No passado era cidade de operários e um bastião dos democratas. Agora é uma terra desolada que bebe sequiosamente as palavras de Trump. Reportagem de José Manuel Fernandes nos Estados Unidos.

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“Brother” Lou levanta-se da cadeira e pede-me para o acompanhar até à janela panorâmica do seu gabinete. “Está a ver aquela plataforma?”, pergunta-me apontando para um espaço imenso em que as ervas rompem por entre as placas do cimento que cobre o solo. “Era ali que ficava a fábrica de onde saíam os cabos de aço para pontes como a Golden Gate, de São Francisco”. Era a Page Steel and Wire Company, uma das várias instalações siderúrgicas da cidade que desapareceram nas últimas décadas – esta logo em 1972, a primeira de todas a fechar.

Ficamos ali a olhar um bocado para o Monongahela, o afluente do Ohio que abraça a colina por onde se estende a pequena cidade, e para a linha de comboio onde avança vagarosamente uma longa composição que transporta carvão. “Passam aí umas seis vezes por dia”, desabafa Lou Mavrakis. “Mas já nunca cá param, já não têm porque parar”.

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Estamos no gabinete do presidente da Câmara de Monessen, uns 50 quilómetros a sul de Pittsburgh, a cidade do sudoeste da Pensilvânia que ainda é conhecida com “Steel City”, a “Cidade do Aço”. “Esse aço éramos nós que o produzíamos aqui, ao longo deste rio, mas agora tudo isso desapareceu”, prossegue o mayor. E estamos na mesma Monessen que há algumas semanas entrou no mapa político dos Estados Unidos quando recebeu uma visita de Donald Trump, que aqui veio para se dirigir a uma parte da sua base eleitoral: os trabalhadores industriais que perderam os seus empregos porque as fábricas onde em tempos trabalhavam foram transferidas para outros países. Trabalhadores que, tradicionalmente, eram uma das bases eleitorais mais sólidas do Partido Democrata.

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O adeus das grandes fábricas

Os números não podiam ser mais claros: entre 1980 e 2015, a percentagem de empregos industriais nos Estados Unidos caiu de 21% para menos de metade, estando agora nos 10%. Uma das regiões mais duramente atingidas por esta desindustrialização foi precisamente a bacia de Pittsburgh. E se Lou Mavrakis, hoje com 79 anos, não se conta entre os que perderam o emprego quando as siderurgias que antes se alinhavam ao longo do Monongahela foram desmanteladas, isso não o impediu de agora sentir necessidade de convidar Trump para a sua cidade. Ele, que sempre foi um democrata toda a vida e, mais do que isso, um sindicalista. Só que agora ele, como muitos dos eleitores de Monessen, considera seriamente votar no milionário nova-iorquino. E não tem dificuldade em explicar porquê.

As velhas pontes enferrujadas são um testemunho silencioso de outros tempos, os tempos em que ao longo do rio Monongahela florescia a indústria siderúrgica

“A Pittsburgh Steel empregava aqui 8.000 pessoas. Do outro lado do rio, em Donora, a US Steel empregava mais 13.500. Tudo isso desapareceu. Em Donora já nem há uma mercearia ou uma bomba de gasolina, aqui em Monessen perdemos dois terços dos habitantes: éramos 25 mil e hoje somos menos de oito mil”, conta-nos este homem pequeno mas enérgico, de uma frontalidade desconcertante (quando lhe digo que trabalho para um jornal online responde-me que não quer nada de computadores e aponta para o único ecrã existente no seu gabinete, simbolicamente desligado, encostado a um canto e virado para a parede).

Não era preciso este descendente de gregos e italianos falar-nos da decadência da sua terra para ela se nos revelar em cada pormenor. Isso percebe-se pelos muitos terrenos industriais vazios que bordejam o rio, terrenos onde hoje só sobra uma unidade de processamento de coque, um combustível derivado da hulha, e outra de tratamento de resíduos de alumínio (aquela onde Donald Trump foi prometer que traria os empregos de volta do México). Tal como entra pelos olhos dentro ao percorrermos a rua principal e vermos que muitos edifícios estão abandonados, ou ao verificarmos como a ferrugem cobre e corrói as muitas pontes dos ramais ferroviários abandonados.

“Nenhuma cidade resiste a perder dois terços da sua base fiscal”, queixa-se Lou. “Há ruas que não são reparadas há 60 anos”.

A memória de Kennedy num velho bastião dos democratas

60 anos é muito tempo, mas não o suficiente para apagar as memórias deste antigo operário metalúrgico que começou a trabalhar quando tinha apenas 17 anos. Naquela altura, recorda, bastava ter um familiar numa das fábricas – e toda a gente tinha – e este garantir aos encarregados que tomaria conta dos mais novos. Depois fazia-se muito dinheiro, porque ganhava-se muito bem, o que permitiu o florescimento de cidades como Monessen. Tudo sob o olhar atento e protector dos sindicatos, tudo bem enquadrado pela tradição de se ser do “partido dos trabalhadores”, os democratas, que controlavam todas as estruturas políticas da região.

Em 1962 e 1963, John Kenndy esteve nesta cidade siderúrgica, onde a sua candidatura recolhera mais de 80% dos votos

A única fotografia em cima da secretária de Lou Mavrakis evoca esses tempos: mostra-nos um comício do Presidente John Kennedy, realizado em 1962. Na altura ele brincou que gostaria de conhecer os poucos eleitores que não tinham votado nele em 1960 (apenas uns 17%), e até voltaria um ano depois para fazer outro comício junto à porta principal da fábrica, nas traseiras do edifício onde morava o jovem que um dia viria a ser presidente da câmara de Monessen.

Hoje, esse edifício onde Lou nasceu e cresceu já foi abaixo e, no lugar onde antes se erguia a siderurgia, fica agora o grande barracão onde se acumulam os resíduos de alumínio que serviram de cenário à sessão eleitoral de Trump. Pelo que em Novembro, acredita o mayor, a maioria dos habitantes votará, pela primeira vez, num candidato republicano.

Johnny Talarico tem 91 anos e está em Monessen há quase sete décadas. Conheceu os anos gloriosos, viu como estas “casas de operários siderúrgicos” se foram espalhando pelas colinas, recorda-se do tempo em que as suas muitas igrejas se enchiam todos os domingos e votou sempre nos democratas. Agora está determinado a votar Trump – se ainda for vivo, salvaguarda.

Não custa a crer nesta previsão quando percorremos as ruas de uma cidade onde, nas zonas onde as casas não estão abandonadas e invadidas pelas ervas – e “por ratos e cobras”, garante o autarca –, as pequenas vivendas se espalham por colinas de relvados bem tratados onde os únicos cartazes eleitorais que vimos foram os da campanha de Trump.

Ou mais ainda quando paramos numa pequena casa junto à sinagoga há muito fechada para conhecermos Johnny Talarico, o velho barbeiro que ainda corta cabelos no rés-do-chão da sua habitação. Talarico tem 91 anos – fará 92 no dia da eleição presidencial, 6 de Novembro – e está em Monessen há quase sete décadas. Conheceu os anos gloriosos desta pequena cidade, viu como estas “casas de operários siderúrgicos” se foram espalhando pelas colinas, recorda-se do tempo em que as muitas igrejas que serviam as diferentes congregações se enchiam todos os domingos. Agora também ele está determinado a votar em Trump – se ainda for vivo, salvaguarda.

“Hillary Clinton? Uma advogada. E advogados, para mim, ou são mentirosos ou são ladrões”, sentencia sem dar espaço para réplicas. “Já vi demasiadas coisas, já ouvi demasiadas promessas, a minha sorte é que já sou suficientemente velho para não ter de me ir embora”.

“Só peço parte do dinheiro que damos aos nossos inimigos”

Talarico chegou a Monessen vindo de Itália num tempo em que estava no poder Harry Truman – o outro Presidente que também veio um dia aqui fazer um comício – e sempre se sentiu bem naquele que era considerado o principal bastião dos democratas no vale do Monongahela. Mavrakis – que fez questão de se sentar na cadeira do barbeiro enquanto mantínhamos uma conversa a três – já nasceu aqui, filho de uma mãe vinda também de Itália e de um pai que fugira da Grécia quando a guerra o obrigara a esconder-se nas montanhas da sua ilha natal, Quios, no mar Egeu. Sendo que, com ele, o activismo político não começou quando concorreu a presidente da câmara.

“Depois de 20 anos na fábrica, onde fui presidente da secção sindical, tornei-me dirigente da United Steelworkers, encarregue das relações internacionais. Viajei por muitos países”, recorda com evidente orgulho e alguma nostalgia. “Nesse tempo tínhamos 1,7 milhões de filiados, hoje não teremos mais de 700 mil. A indústria perdeu mais um milhão de empregos, é isso que não posso aceitar”.

Há ruas onde são mais as casas abandonadas e reclamadas pela natureza do que aquelas que continuam a ser habitadas: Monessen já teve 25 mil habitantes, hoje não chegam a oito mil

Ora é precisamente aqui que as revoltas e as queixas do antigo dirigente sindical o aproximam de Donald Trump – ou das promessas de Trump. Até porque, por tradição, os sindicatos americanos sempre defenderam posições protecionistas, opondo-se aos acordos de comércio livre e pedindo o encerramento das fronteiras.

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O mayor de Monessen já escreveu três cartas ao Presidente Obama, mas não teve qualquer resposta. Foi ele que convidou Donald Trump a vir à sua cidade. Enviou idêntico convite a Hillary Clinton, mas admite que tem pouca esperança que ela aceite.

Essa é hoje a agenda do candidato republicano, que em todos os discursos critica acordos como o NAFTA (o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio, assinado pela administração Clinton), pelo que a aproximação de posições é quase natural. Vale a pena seguir o discurso quase torrencial, por vezes repetitivo, de Lou Mavrakis:

“Não aceito que estejamos a pagar a países estrangeiros que detestam a América quando não temos dinheiro para nós. Os japoneses, por exemplo, subsidiaram a sua indústria metalúrgica e por isso não a deixaram fugir. Nós não fizemos nada. Aqui, em Monessen, com 10 ou 12 milhões de dólares conseguia recuperar as ruas, limpar as casas abandonadas, talvez até recuperar o sistema de esgotos, mas ninguém me apoia. Em contrapartida, quando caiu aquele avião na Malásia, mandámos para lá os nossos barcos e aviões e gastámos 13 ou 15 milhões de dólares. Para quê? Para procurar mortos quando aqui tenho gente viva que precisa de uma oportunidade”.

Mas, contraponho eu, os Estados Unidos precisam de ter uma política internacional, precisam de cultivar relações e ter amigos em todo o mundo…

“Com gente que só nos quer fazer mal, como o Irão? Não acredito nisso. E faço-lhe uma pergunta: se só tiver um pão e tiver dois filhos para alimentar, vai dar esse pão aos filhos de outros? Vá, diga-me lá: a quem é que dava o pão?”

Repetir-me-ia várias vezes essa mesma pergunta retórica ao longo da nossa conversa, insistindo sempre na ideia de que a América está a ser destruída por dentro e que os seus eleitores se mostram genuinamente “pissed off”. Isto é, genuinamente zangados. Zangados com os políticos de Washington, como ele estava zangado com Obama, a quem já escrevera três cartas sem obter qualquer resposta. Ou zangados como os eleitores que, no Reino Unido, votaram pelo Brexit:

“Não podemos ter só os ricos a ganhar tudo. Temos de ter alguma coisa no meio, temos de ter gente com rendimentos razoáveis, temos de ter esperança de ter empregos que não sejam apenas ver os mais novos a vender droga. Oiça o que lhe digo: onde não há nada no meio, onde os que construíram este país se sentem abandonados, as coisas acabam mal. Toda a minha vida paguei impostos, mas agora digo-lhe que isto, pela maneira como vai, ainda acaba em revolução.”

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No entanto, apesar de toda a sua energia, do seu horror aos computadores e da sua origem meio grega, meio italiana, Mavrakis não é um revolucionário. É apenas um antigo operário que se orgulha de um filho também ser operário e andar agora a pintar as pontes construídas com o aço que saía de cidades como Monessen, um sindicalista que gosta da sua pequena vivenda, do seu cão e do seu relvado, e um americano que até sabe que a indústria nunca regressará às margens do Monongahela como nos velhos tempos.

“Se pudesse limpar a cidade e torná-la mais atrativa para o investimento, alguma coisa se conseguiria”, diz-nos a caminho da escola de efeitos especiais Douglas Education Center, onde 300 estudantes vindos de todo o país e do estrangeiro aprendem a fazer os modelos que depois animam filmes de horror como os de mortos-vivos. “Mas nem isso consigo: o município já está demasiado endividado”.

“Os nossos políticos traíram os operários siderúrgicos”

Debra Bachinski, que trabalha nessa escola, confessa-nos que ainda tentou ir à sessão de Donald Trump, mas que não conseguiu entrar. Mas isso não diminuiu a sua insatisfação: “Este país foi grande porque toda a gente tinha uma oportunidade”, diz-nos. “Não é isso que sentimos hoje, mesmo entre os mais novos que nos procuram neste centro.”

Ao percorrermos as salas de aula vemos gente entusiasmada, e aqui há menos sinais de que Trump encontre o mesmo apoio que sentimos ter entre os mais velhos. Esses encontrá-los-íamos essa noite no pequeno bar-restaurante que nos tinham recomendado pelos seus gnocchi na melhor tradição italiana. Aí, num ambiente dominado pelo som dos talk-shows das televisões, ainda pareciam ressoar as palavras de Trump, proferidas num cenário com lixo (de alumínio) por fundo. Palavras de um demagogo:

“O legado dos operários siderúrgicos da Pensilvânia está nas pontes, nas linhas de caminho-de-ferro e nos arranha-céus que fazem a nossa maravilhosa paisagem americana, mas a lealdade dos nossos trabalhadores foi paga com traição. Os nossos políticos prosseguiram agressivamente uma política de globalização, transferindo os nossos empregos, a nossa riqueza e as nossas fábricas para o México e para outros países. É por isso que muitas das cidades da Pensilvânia que prosperaram no passado vivem hoje dias de desespero”.

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Impudicamente, é esse desespero que ele explora. E as suas palavras acabam por ser avidamente escutadas pelos que gostariam de cumprir um sonho impossível: fazer o relógio andar para trás, regressar ao que imaginam ter sido o seu mundo nos anos de 1950 e 1960. Em Monessen, onde são muito visíveis as ruínas desse tempo que passou, a mensagem populista não tem apenas quem a escute com atenção – tem sobretudo quem nela se reveja com indisfarçável entusiasmo.

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(O Observador está nos Estados Unidos com o apoio da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento)

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