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O convite chegou às caixas de e-mail de amigos e familiares na forma de um vídeo protagonizado pelo próprio anfitrião. Abilio Diniz fez 80 anos a 28 de dezembro, mas adiou as celebrações da data redonda para abril. Quis o multimilionário brasileiro — com uma fortuna avaliada em 3 mil milhões de euros — dar uma festa memorável e, ao mesmo tempo, discreta, de que poucos ouviram falar. Durou um fim de semana, com palestras e concertos à mistura e ocupou o hotel da Penha Longa, em Sintra — Abilio Diniz terá mesmo mandado fechar o resort de luxo para receber a festa “vipérrima”.

O contrato de confidencialidade do Penha Longa, à semelhança do que acontece em todos os eventos que o hotel recebe, impede o staff de falar. Mas conhece-se a enorme magnitude das comemorações: houve palestras orientadas pelo norte-americano William Ury, professor em Harvard e especialista em conflitos mundiais, e pela atriz Fernanda Montenegro, que terá lido vários excertos do primeiro livro escrito por Abilio Diniz, Caminhos e Escolhas: O Equilíbrio Para uma Vida Mais Feliz, de 2004 — o que deixou o autor, aniversariante e anfitrião emocionado.

Da lista de convidados terão feito parte nomes como Bruna Lombardi, atriz brasileira, e Gustavo Kuerten, ex-tenista também conhecido pela alcunha Guga. Ambos tiveram direito a subir ao palco para discursar. Dos testemunhos à música, o Observador sabe que tanto Roberto Carlos como Marisa Monte aturaram perante cerca de 300 pessoas, amigos e familiares incluídos.

Mas quem é Abilio dos Santos Diniz, o octogenário que não parece a idade que tem, que nos últimos anos tem andado preocupado com “o equilíbrio para uma vida feliz” e que sabe celebrar com pompa e circunstância? Talvez o nome não lhe seja familiar, mas aquele que é considerado o homem que mudou o negócio do retalho no Brasil é o primeiro de seis filhos do português Valentim Diniz, que emigrou para o Brasil com apenas 16 anos, onde abriu a famosa pastelaria Pão de Açúcar — mas já lá vamos.

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De Abilinho a magnata sem dono

Em criança era gordinho, baixinho e tímido — lê-se na revista Época Negócios, que apresenta excertos da biografia Abilio – Determinado, Ambicioso e Polémico –, uma descrição que hoje está a anos-luz da figura carismática de Abilio Diniz. Magro e alto, Abilio Diniz é hoje obcecado com a boa forma e a vida saudável. Coração mole e cabeça dura é outra forma de o descrever. Celebrados os 70 anos, fez o que ninguém esperava: casou-se pela segunda vez, com Geyze, uma economista 35 anos mais nova do que ele; voltou a ser pai (Rafaela e Miguel, de 10 e sete anos); e entrou num novo negócio — para não falar de que continua a fazer exercício uma vez por dia.

Abilio Diniz é o ex-dono da cadeia de supermercados brasileiros Pão de Açúcar e o atual presidente do concelho de administração da BRF, além de acionista e conselheiro do Carrefour — mas, repita-se, começou por ser gordinho, baixinho e tímido, circunstâncias que o obrigaram a saber como se defender. Não foi ao calhas que se inscreveu em aulas de karaté e de boxe, e que começou a dar sovas a quem antes o sovava. Aprendeu a bater ao mesmo tempo que o feitio temperamental se afinou. Algures na adolescência, o corpo deu um salto e Abilio ficou encorpado e alto. Adeus bullying.

Na luta pela sobrevivência em ambiente escolar, o gosto pelo desporto ficou e nunca mais se dissipou. Já adulto e ao comando do Pão de Açúcar — escreve também a Época Negócios –, Abilio dedicava as horas vagas à motonáutica e ao automobilismo, além de ter concorrido (e vencido) em campeonatos brasileiros. A resiliência estava-lhe no sangue: se Abilio queria, Abilio conseguia. Exemplo disso foi quando, nos anos 70, decidiu que se tornaria um jogador exímio de pólo, sobretudo porque os irmãos já eram, à data, adeptos do desporto. E se ao início o magnata parecia não ter qualquer jeito para aquilo, com os irmãos a gozarem com ele, logo, logo, chegaria a vez de ser campeão brasileiro.

No desporto, na vida pessoal e também na profissional, Abilio foi sempre ambicioso e competitivo. Foi há mais de 60 anos que o pai Valentim fez um convite que Abilio não conseguiu recusar — se o tivesse feito talvez o Pão de Açúcar, a maior rede de supermercados do país, nunca teria existido. Abilio conta no seu mais recente livro, Novos Caminhos, Novas Escolhas, que embora tivesse tido uma infância e juventude limitadas, sendo ele filho de padeiro, com “muita dedicação e esforço” acabaria por se tornar numa figura incontornável do Brasil. “Trabalhei duríssimamente desde a juventude para ajudar a construir a maior rede de supermercados do país (acredito que poucas pessoas no mundo tenham o número de horas de visita a supermercados e pontos de varejo que eu tenho)”, escreve na nova obra.

Quando o Pão de Açúcar surgiu, a ideia de um supermercado, em si, não era coisa comum. Entrar num supermercado, ir à prateleira e depois à caixa era algo encarado como visionário no país. Na verdade, Abilio sempre teve o hábito de consultar os maiores retalhistas do mundo, ver como eles trabalhavam para trazer ideias para casa. A título de exemplo, o Pão de Açúcar foi a primeira rede de supermercados no Brasil a permitir a compra pela internet.

Hoje em dia, Abilio trata de grandes investimentos e é presidente do conselho de administração de uma das maiores empresas de alimentos no mundo, a BRF. Aos 80 anos, o empresário viaja como nunca, dá aulas e conferências porque, diz, procura “dividir” o que aprendeu e o que continua a aprender com os mais jovens.

1989. O ano do sequestro

“Ele é um empresário muito ambicioso, não desiste nunca, por mais que encontre adversidades. Resiliente é uma palavra que o define muito bem. Se tem uma meta, ele vai fazer de tudo o possível”, diz ao Observador, por telefone do Brasil, Cristiane Correa, jornalista e autora da mais recente biografia de Abilio Diniz, Abilio – Determinado, Ambicioso, Polémico. Foram precisos quase dois anos para terminar um livro que envolveu entrevistas a cerca de 80 pessoas, Abilio incluído. Cristiane, que trabalhou durante mais de 10 anos na revista brasileira Exame, chegou a sentar-se à mesa com o empresário “umas sete ou oito vezes” para que nada ficasse em falta. Ela sabe do que fala e de quem fala: Abilio é visto como uma pessoa muito polémica que ultrapassou vários embates ao longo da vida, de carácter profissional e pessoal.

No prefácio do livro, lançado no verão de 2015, dá-se de caras com uma analogia interessante: Abilio Diniz, o super-herói autodidata. “No panteão dos super-heróis, um dos meus favoritos é Tony Stark. Ele não tem poderes presenteados pela natureza ou pelo acaso; constrói a si mesmo. Acompanho os filmes da franquia ‘Homem de Ferro’ desde o primeiro, quando Stark é sequestrado por terroristas e cria para si uma armadura que o fortalece nas disputas com oponentes. E vibro com a maneira como, a cada nova produção, ele se vai recriando sob ataque. No panteão dos empresários brasileiros, o mais parecido com Stark é Abilio Diniz. Reconstruindo-se em todas as adversidades, sejam pessoais, familiares, de negócios ou macroeconómicas, ele sempre volta mais forte e melhor do que antes”, escreve o cofundador da HSM, José Salibi Neto. “Achei essa comparação muito feliz”, diz Cristiane, “Abilio é um ser humano normal com uma determinação muito grande. Um super-herói sem super-poderes.”

Recapitulando: Tony Stark foi raptado e saiu mais forte dessa situação — e o mesmo aconteceu com Abilio Diniz em 1989, o ano em que tudo mudou. O empresário sempre teve o hábito de contratar seguranças que protegessem os seus filhos, mas ele próprio nunca andava acompanhado. Gostava de conduzir sozinho e achava que era capaz de se defender — afinal, desde pequeno que aprendera karaté e judo, para não falar da arma que trazia no carro. Tanta confiança não o impediu de ser sequestrado, quando, certo dia, uma ambulância bloqueou o seu caminho em plena estrada e um automóvel foi contra as traseiras do carro que conduzia, tal como se conta no livro Brazillionaires: Wealth, Power, Decadence, and Hope in an American Country. Um homem disfarçado de polícia aproximou-se do carro de Abilio, enquanto outro, aproveitando-se da distração, apoderou-se da arma do milionário. Não havia safa possível. O homem que valia milhões de reais foi transportado para um espaço mínimo. Tão reduzido que Abilio nem podia esticar o corpo em todo o seu comprimento. O cenário de terror ficaria completo com música sertaneja a “berrar” através das colunas. Os sequestradores só baixaram o volume para colocar a seguinte pergunta: “Quanto é que achas que vales?”. Independentemente da resposta, pediram 32 milhões de dólares (28,5 milhões de euros).

“Quando os sequestradores removeram seu capuz, Abilio se viu num cubículo subterrâneo de menos de 5 metros quadrados. O teto era tão baixo que o empresário não conseguia se manter ereto. Quase não havia ventilação – apenas dois buracos estreitos deixavam passar um pouco de ar. Dentro do cárcere havia pouquíssimos objetos: um colchonete fino, um vaso sanitário e uma lâmpada que era acesa e apagada aleatoriamente (não demorou para que Abilio perdesse a noção de quando era dia ou noite). De uma caixa de som vinha uma música sertaneja em volume alto que falava em matar ou morrer por amor.”
(“Abilio – Determinado, Ambicioso, Polémico”)

Antes do sequestro, Abilio estava acostumado a dar ordens e tinha milhares de funcionários a seu cargo. Uma vez sequestrado, começou a ficar deprimido, conta Cristiane Correa. Naquela minúscula prisão, onde não era de todo possível praticar exercício físico, Abilio começou a reavaliar a própria vida e o rumo que esta tinha tomado. Os sequestradores deixaram-no ficar apenas com as cuecas com que tinha saído de casa naquele dia. De resto, e durante os sete dias de cativeiro, o milionário foi obrigado a usar uma camisa cinzenta e umas calças desportivas azuis com faixas brancas.

“‘Quando saí de lá, minha filha Ana disse que tinha certeza que eu teria passado o tempo fazendo push ups (flexões de braço), mas não…”, diz ele, com os olhos baixos, fitando o chão, como se tentasse esconder ou esquecer um momento de fraqueza. Abilio achou que iria enlouquecer naquele buraco.”
(“Abilio – Determinado, Ambicioso, Polémico”)

O sequestro, que aconteceu a 11 de dezembro de 1989, deixou marcas profundas. Os sete dias de cativeiro foram orquestrados por dez sequestradores pertencentes ao MIR (Movimento da Esquerda Revolucionária) e só terminaram depois de um cerco de 36 horas realizado pela polícia. Os criminosos — que permitiram que Abilio saísse do buraco onde tinha sido enfiado para mostrar à polícia que estava vivo — haveriam de se render, mas Abilio nunca mais voltaria a considerar-se um homem indestrutível.

Naouri, o homem que venceu Abilio

Quando o Pão de Açúcar estava à beira da falência, na década de 1990, coube a Abilio assumir o controle da empresa e tirá-la do buraco sem fundo para onde estava a cair. Essa recuperação resultou numa disputa familiar e no afastamento dos irmãos. Abilio cortou e começou a cortar por cima, nos cargos mais altos. O empresário estava habituado a superar sempre as adversidades. Sempre, até ao dia em que a Casino entrou na sua vida.

Cristiane Correa explica como tudo aconteceu: os sócios da empresa Casino entraram no Pão de Açúcar como sócios minoritários, num contrato que previa que, a partir de 2012, a rede de retalho francesa assumisse o controlo total da empresa criada por Abilio. Chegada a data, Abilio perderia o lugar pelo qual tanto batalhara até então. Era uma decisão consensual — chegado o ano do “divóricio” ele teria mais de 70 anos e estaria, pensava ele, pronto para aproveitar a reforma.

“Em maio de 2011, o empresário, já arrependido do acordo e ciente da impossibilidade de revertê-lo, embicou uma intrincada negociação entre o Pão de Açúcar e o Carrefour”, lê-se no artigo da Época Negócios. O acordo em causa foi encarado por Jean-Charles Naouri, o dono da Casino, que soube do negócio pela imprensa, como uma forma de “diluir a participação da Casino na Pão de Açúcar” e, assim, evitar a transferência de controlo em 2012. Naouri não perdeu tempo e veio a público acusar Abilio de deslealdade. Os dois protagonizaram a maior disputa do género no país. Foram semanas de uma intensa batalha, travada tanto nos bastidores como em público. Foi uma luta que, ao todo, custou cerca de 500 milhões de reais (137 milhões de euros) a ambos os protagonistas.

Abilio saiu vencido do embate e, talvez em tom de vingança, adquiriu uma percentagem da operação brasileira do Carrefour — concorrente direta da Pão de Açúcar — dois anos mais tarde. No livro Abilio – Determinado, Ambicioso e Polémico, Crisitane escreve assim: Quarenta e sete anos depois da viagem que fez a Paris, em 1967, para conhecer Marcel Fournier, cofundador do Carrefour, Abilio finalmente se tornou um sócio relevante da varejista que sempre admirou – primeiro no Brasil e depois na França. (…) Na semana seguinte à aquisição, Abilio surge numa das salas de reunião da Península [empresa de investimentos de sua família] com um sorriso estampado no rosto. Ele não diz, mas a entrada na rede francesa, além de parecer um bom negócio, tem também sabor de vingança e recomeço. É como se marcasse definitivamente o final de um período turbulento”.

“Dividir” conhecimento: a nova missão

“No passado ele era muito briguento. Até brigava no trânsito. Mais recentemente, o novo casamento e os filhos mais novos fizeram dele uma pessoa mais humana”, aponta Cristiane Correa, que refere que, atualmente, Abilio está a fazer coisas banais pela primeira vez, como dar banho aos filhos ou viajar com a mulher e os filhos sem a companhia de uma ama. Para isso também terão ajudado as sessões de terapia que se arrastam há duas décadas. “Antes ele era muito mais autoritário”, diz a jornalista, lembrando que houve tempos em que Abilio exigia que os empregados o tratassem por “Doutor”. E, no trabalho, são muitos os que lhe gabavam o poder de sedução e de persuasão, bem como a competitividade extrema.

“Estávamos atrasados para a missa, quando Geyze me pediu: ‘Você pode dar banho no Miguel?’. Minha reação imediata foi pensar: será que dou conta? Mas logo respondi: ‘Deixe comigo!’. E lá fomos eu e o Miguel para debaixo do chuveiro. Tomamos um banho gostoso e rápido porque o tempo era curto. Enxuguei meu filho caçula e, com certa dificuldade e muito carinho, deixei-o prontinho para sair. Embora essa situação possa ser corriqueira na vida de muitos pais, dar banho em um filho pequeno foi uma experiência nova — e incrível! — para mim, então com 77 anos. Tenho seis filhos e nunca havia dado banho em nenhum deles.”
(“Novos Caminhos, Novas Escolhas”)

Abilio quer “dividir”, como quem diz partilhar, conhecimento. O seu mais recente livro é precisamente um reflexo disso: ao longo de quase 200 páginas há discursos sobre negócios, valores, Deus (Abilio vai à missa todos os domingos), mas também palavras dedicadas à saúde na terceira idade.

Aos 80 anos o multimilionário ainda quer fazer coisas grandes. “Qualquer pessoa, chegando esta idade, começa a pensar muito no próprio legado. Acho que o Abilio pensa no legado como uma coisa maior do que o aspecto financeiro. Ele quer deixar uma marca. Está muito bem de saúde, mas tem 80 anos e começa a preocupar-se sobre como é que as pessoas se vão lembrar dele.”