É a primeira entrevista a um ex-primeiro-ministro detido por suspeitas de corrupção, fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais. É, por tudo isso e até mais, um acontecimento. Arrisca-se a ser um dos programas do ano não só pela personalidade polémica de José Sócrates mas também pela curiosidade em ouvir as suas primeiras explicações ao vivo e a cores sobre as suspeitas que lhe são imputadas pelo Ministério Público (MP).
Dividida em quatro blocos (prisão, corrupção, origem do dinheiro e política), o sucesso da entrevista, pelo menos na perspetiva de Sócrates, passará sempre pela forma como vai responder às perguntas relacionadas com os casos concretos que sustentam a imputação de crimes graves, nomeadamente as explicações sobre a origem do seu património financeiro e predial que lhe permitiu financiar o seu modo de vida desde que saiu em 2011 do governo de Portugal.
O Observador deixa-lhe aqui um guião com as perguntas essenciais a que José Sócrates devia dar resposta na entrevista de hoje. Porque são as que continuam a suscitar mais dúvidas.
Numa entrevista em que entrevistado se irá seguramente defender das suspeitas que lhe são imputadas pelo Ministério Público (MP), a primeira pergunta tem de estar relacionada com a tese que sustenta a sua defesa: todo o dinheiro que recebeu de Carlos Santos Silva foi a título de empréstimo, logo os 23 milhões de euros que Santos Silva transferiu da Suíça para Portugal não pertencem a Sócrates – ao contrário do que alega o MP. Se assim é, nada como explicar as razões que estão na origem de tais empréstimos.
Numa entrevista à RTP em março de 2013, que marcou o regresso à vida política e antecipou o início dos seus comentários na estação pública, José Sócrates afirmava: “Tenho uma conta bancária na Caixa Geral de Depósitos há mais de 25 anos, nunca tive ações, nem offshores. Nunca tive nenhuma poupança nem conta a prazo”.
São declarações que ganham nova importância à luz das suspeitas que o MP lhe imputa.
Aqui é necessário contextualizar e recordar alguma informação relevante.
José Sócrates abandonou o governo em junho de 2011. Anunciou pouco depois que iria viver em Paris e estudar na prestigiada universidade Science Po, no âmbito de um mestrado em Ciência Política, tendo recorrido para o efeito a um empréstimo da Caixa Geral de Depósitos no valor total de 120 mil euros. Portanto, já tinha um crédito oficial do banco público para financiar a sua estada em Paris. Mas mesmo assim esse crédito não terá sido suficiente para financiar os seus gastos na capital francesa – com um nível e custo de vida claramente superior a Lisboa. As suas despesas mensais em Paris, onde viveu até ser detido em novembro de 2014, situar-se-iam na ordem dos 15 mil euros mensais, segundo o Correio da Manhã. Qualquer coisa como 180 mil euros por ano. Nada como tentar perceber junto de Sócrates se esse desvio orçamental está na origem dos seus sucessivos empréstimos de Carlos Santos Silva.
Há também a questão das casas de Paris. O financiamento do aluguer da primeira casa no centro de Paris, no luxuoso bairro 16, e a compra da sua segunda casa na Avenue du President Wilson, mais perto do Arco do Triunfo. José Sócrates sempre afirmou que o empréstimo da CGD serviu para pagar o aluguer da primeira casa mas os investigadores da Operação Marquês encontraram provas que colocam em causa essa tese. No caso da segunda casa, cuja propriedade o MP atribuiu a José Sócrates por ter sido paga com fundos que saíram das contas do BES em nome de Santos Silva, existem ainda provas de que a remodelação e a decoração foram determinadas pelo ex-primeiro-ministro.
O que nos leva a outra questão:
No fundo, esta é a principal dúvida de qualquer cidadão português que teve de apertar o cinto entre 2011 e 2015 devido à política de austeridade que foi preciso implementar com a chegada do empréstimo da troika. É esse o lado mais frágil da tese de defesa de José Sócrates e aquele no qual o ex-primeiro-ministro terá de dar o seu melhor em termos de argumentação para conseguir convencer a opinião pública.
Espera-se, por último, e no contexto da sua argumentação dos empréstimos de Carlos Santos Silva, que José Sócrates preste informações tão simples como estas:
- o valor total da dívida que tem para com Carlos Santos Silva;
- o valor que já pagou;
- o valor que falta pagar,
- a data prevista para o reembolso total da dívida
- a taxa de juro que pagou ou a razão pela qual Carlos Santos Silva não cobrou juros.
Mais uma contextualização: o seu advogado João Araújo afirmou ao Expresso em agosto que Sócrates iria começar a pagar a dívida a partir dos 675 mil euros que recebeu de um advogado paquistanês a título de venda da sua casa no Heron Castilho, no centro de Lisboa.
Foi este o facto que causou maior perplexidade à opinião pública: a entrega de quantias avultadas em dinheiro vivo a José Sócrates entre 2013 e 2014 para financiar o seu estilo de vida, fosse para o pagamento de despesas correntes, para financiar a família e amigos (renda da casa da ex-mulher e empréstimos a Sofia Fava, ou estudos também em Paris do filho do ex-ministro Silva Pereira, são alguns dos exemplos apontados na investigação do MP) fosse para comprar viagens ou até mesmo para adquirir milhares de cópias o seu livro “A Confiança no Mundo”.
A facilidade e a regularidade com que José Sócrates utilizou o dinheiro que estava na posse de Carlos Santos Silva fez com que o MP entendesse que essa era a principal prova de como tal património financeiro pertencia a Sócrates – e não a Santos Silva, que não passará de um testa-de-ferro. Se o dinheiro foi emprestado por Carlos Santos Silva, como Sócrates assegura desde a primeira hora, é importante perceber por que razão tais empréstimos foram feitos em dinheiro vivo – e não por transferência bancária ou cheque, por exemplo, como acontece entre privados. E se José Sócrates não confiava (ou não confia) no sistema financeiro português, como o advogado João Araújo chegou a afirmar há um ano, é relevante compreender que razões sustentam essa desconfiança.
O livro de José Sócrates, “A Confiança no Mundo – sobre a tortura em democracia” foi um happening político-mediático escolhido pelo ex-primeiro-ministro para regressar à arena política em outubro de 2013 com a benção de Lula da Silva, ex-presidente do Brasil, e de Mário Soares. Nessa altura, já Sócrates estava sob escuta telefónica no âmbito da Operação Marquês. O que permitiu aos investigadores perceberem como o ex-líder do PS e os seus amigos (muitos deles altos dirigentes e deputados do PS, como André Figueiredo e Renato Sampaio) faziam verdadeiras compras organizadas de vários milhares de cópias do livro de norte a sul do país – tudo financiado com dinheiro vivo disponibilizado por Carlos Santos Silva. Terão sido estas compras organizadas, segundo a investigação da Operação Marquês, que terão levado a obra a uma 5.ª edição em novembro e ao primeiro lugar do top de não ficção. Como dizia uma fonte oficial da editora Babel (que publicou o livro de Sócrates) na edição de 5 de novembro de 2013 do Diário de Notícias, o sucesso do livro estava “muito além do esperado”, o que fazia com que a mesma fonte acrescentasse que as vendas já não teriam “a ver apenas com o autor” mas sim com o retrato “de situações da vida real com que os leitores portugueses se identificam”, como as notícias sobre a devassa realizada pela agência norte-americana NSA, denunciada por Edward Snowden, bem como a justificação da austeridade como “um mal menor”.
Para o MP não existem dúvidas de que essas expressões codificadas servem para esconder a verdadeira intenção de José Sócrates: solicitar entregas de dinheiro em numerário para fazer face às suas despesas pessoais e evitar suspeitas. É certo que os políticos têm uma tendência para viverem num mundo conspirativo, em que existe um receio permanente de que estejam sob escutas clandestinas ou das próprias autoridades. Neste contexto, essa mentalidade conspirativa acaba por ser um fator que se vira contra o próprio Sócrates, pois a intenção de ocultar ou esconder algo é clara nas escutas telefónicas da Operação Marquês. E se não for dinheiro, o que será? A palavra é de Sócrates.
Para perceber melhor as eventuais respostas do ex-primeiro-ministro é importante recordar que, entre outras pessoas, o MP imputa a João Perna, ex-motorista de Sócrates, e ao próprio Carlos Santos Silva o papel de correio no transporte de dinheiro vivo para Sócrates.
Com base na análise documental das contas bancárias de Carlos Santos Silva, o MP afirma que o empresário da Covilhã levantou mais de 1,1 milhões de euros em numerário entre 2011 e 2014 das contas do Banco Espírito Santo (BES) – contas essas que foram alimentadas exclusivamente com os 23 milhões de euros que foram transferidos (ao abrigo do RERT, o Regime Extraordinário de Regularização Tributária) das contas de Santos Silva na Union des Banques Suisses (UBS).
A pergunta acaba por traduzir uma ideia que se generalizou na opinião pública e que traduz a perplexidade com a forma escolhida para fazer circular montantes avultados entre os arguidos (um dos quais levou às denúncias contra José Sócrates, por parte da Caixa Geral de Depósitos) . Recorde-se neste ponto que a defesa de Carlos Santos Silva, a cargo da advogada Paula Lourenço, tem afirmado por diversas que a circulação de dinheiro em numerário não é crime – o que é um facto irrefutável à luz do Código Penal.
É uma pergunta que se impõe devido à proximidade entre Carlos Santos Silva e José Sócrates. Não só pelo facto de o primeiro emprestar quantias avultadas ao segundo sem contrato escrito e em numerário (o que indicia uma confiança extrema entre os dois), mas também pela circunstância de serem amigos de infância e de terem mantido o contacto durante a juventude e idade adulta.
Tal como o Observador noticiou, Santos Silva deu várias explicações ao MP.
O empresário terá tido sucesso empresarial no inicio dos anos 90 com a propriedade de uma discoteca no distrito de Castelo Branco e a autoria de projetos de engenharia para a Universidade da Beira Interior, no Politécnico da Guarda e na Auto-Estrada 23 – sucesso esse que garantiu-lhe liquidez e o acesso a crédito bancário. Foi a partir daqui que conseguiu financiar a aquisição de um terreno em Angola, por indicação de José Paulo Pinto de Sousa (primo de José Sócrates), que lhe permitiu ganhar 6,5 milhões de euros em 2008 – mais de dez anos depois de ter comprado o dito terreno.
A segunda razão prende-se com remunerações extraordinárias efetuadas pelo Grupo Lena por conta de missões internacionais em Marrocos, Argélia, Líbia e Roménia que tinham como objetivo resolver problemas internos de cada uma daquelas operações. Santos Silva apresentou-se ao MP como um problem solver. Total da remuneração pelas constantes missões internacionais ao serviço do Grupo Lena: 15 milhões de euros entre 2007 e 2010.
O procurador Rosário Teixeira, contudo, não ficou convencido. Pelas seguintes razões:
- Santos Silva não teve sucesso em grande parte daquelas missões internacionais, por não ter resolvido os problemas ou por não ter ganho as obras com que se comprometeu;
- Ter mesmo assim sido remunerado pelo Grupo Lena, em oposição às mais elementares práticas do comércio;
- Dos 15,5 milhões de euros que passaram pelas contas de Joaquim Barroca, três milhões terão tido origem direta no Grupo Lena mas 12,5 milhões terão sido única e exclusivamente a ver com Hélder Bataglia.
- Além disso, as empresas de Santos Silva já eram pagas em Portugal pelo Grupo Lena. Entre 2005 e 2014, as empresas do amigo de Sócrates receberam cerca de 7,1 milhões de euros por serviços prestados e entre 2011 e 2014 cerca de 24,2 milhões de euros – sendo que, neste último caso, a maior parte das obras foram adjudicadas pelo governo Sócrates.
José Paulo Pinto de Sousa, primo de José Sócrates, está a ser investigado no caso Monte Branco. Na Operação Marquês, onde também é suspeito, surgiu após Carlos Santos Silva explicar o seu primeiro grande negócio com as Salinas do Chamume – propriedade que pertencia a família Pinto de Sousa em Angola. Mais tarde, contudo, surge associado a a Joaquim Barroca, administrador Grupo Lena, num negócio de compra e venda de uma quinta em Sintra. Na prática, José Paulo, também conhecido por ‘Paulo, o Gordo‘, vendeu a sociedade offshore proprietária do terreno a Barroca. Este, por seu lado, devolveu mais tarde o bem a José Paulo por não terem sido cumpridas as expectativas em termos de promoção imobiliária da referida quinta.
Mais do que os negócios em concreto, importa que José Sócrates dê explicações convincentes para tantas coincidências para estes negócios cruzados entre amigos e familiares seus.
A informação enviada pelas autoridades suíças para o MP foram fundamentais para o procurador Rosário Teixeira conseguir compreender a circulação de dinheiro entre Portugal e a Suíça e o regresso dos capitais depositados nas contas de Carlos Santos Silva a Portugal. Podemos mesmo afirmar que, sem esta informação, os autos da Operação Marquês já teriam sido arquivados ou não teriam o impacto que têm.
O MP ficou com a certeza de que as contas de Joaquim Barroca na UBS foram mero ponto de passagem de cerca de 15,5 milhões de euros para as contas de Santos Silva no mesmo banco – facto documental reforçado com o depoimento de Barroca, no qual o administrador do Grupo Lena admitiu que tinha passado ordens de transferência em branco para Carlos Santos Silva usar quando e como entendesse.
Desse valor que foi parar às contas do empresário amigo de José Sócrates, cerca de três milhões teve origem em contas portuguesas do próprio Grupo Lena, enquanto que 12,5 milhões de euros partiram de offshores controladas por Hélder Bataglia, o líder da Escom e do grupo de investidores do empreendimento Vale do Lobo, no Algarve.
Além disso, também José Paulo Pinto de Sousa transferiu dinheiro para as contas de Joaquim Barroca no valor total de 5,4 milhões de euros que, entre 2007 e 2008, foram parar à conta de Carlos Santos Silva. No centro dessa transferência está o alegado primeiro grande negócio de Carlos Santos Silva: os terrenos das Salinas do Chamume, Benguela (Angola). O MP diz também que esses 5,4 milhões de euros têm origem no valor total que Hélder Bataglia transferiu para José Paulo Paulo Pinto de Sousa como produto da venda do imóvel por parte da família Pinto de Sousa ao Grupo Escom.
José Sócrates foi um dos primeiros-ministros mais interventivos na economia desde que Portugal entrou em 1986 para a Comunidade Económica Europeia. Logo no início do seu governo, Sócrates colocou homens da sua confiança para as principais empresas públicas. Menos quando isso não acontecia oficialmente, percebiam-se algumas ligações. É o caso de Armando Vara, amigo próximo de Sócrates e ex-funcionário de base da da Caixa Geral de Depósitos, escolhido para administrador do banco público.
Pouco depois de ter iniciado o seu mandato, Vara recebeu uma proposta dos novos donos do empreendimento de Vale do Lobo, liderados por Hélder Bataglia, no sentido de financiar a expansão do resort algarvio em cerca de 194 milhões de euros. Mais tarde, além do empréstimo da CGD, terá sido o próprio Armando Vara a propor que a Caixa ficasse como acionista do resort através da compra de 25% da nova empresa proprietária por um valor de 28 milhões de euros. Total do investimento da CGD: cerca de 220 milhões de euros. Um negócio que foi considerado ruinoso por diversos analistas.
Recorrendo ao conhecimento sobre a rede de lavagem de dinheiro do caso Monte Branco (o procurador é o mesmo da Operação Marquês: Rosário Teixeira), o MP conseguiu identificar uma série de empresas offshore controladas por Michel Canals e Francisco Canas (os principais arguidos do caso Monte Branco) que terão sido utilizadas para transferir uma parte dos dois milhões de euros que Armando Vara recebeu na Suíça.
De acordo com o MP, Vara terá entregue em 2006 cerca de 217 mil euros em dinheiro vivo a Francisco Canas na sua loja de câmbios localizada na baixa de Lisboa – valor esse que Canas fez chegar à conta de Vara na UBS através de uma transferência com origem no BPN de Cabo Verde.
Mais tarde, em 2007, cerca de sete sociedades offshore controladas por Michel Canals, sócio de Canas, terão feito várias transferências para a conta de Vara na Suíça no valor total de 559 mil euros – transferências essas, acreditam os investigadores, terão sido precedidas de entrega igual montante a Canals por parte do então administrador da CGD.
Por último, um cidadão holandês que adquiriu um lote de terreno no empreendimento de Vale do Lobo terá sido utilizado, segundo o MP, pelos responsáveis do empreendimento para transferir cerca de um milhão de euros para a contra de Joaquim Barroca, tendo o dinheiro terminado mais uma vez na conta de Armando Vara.
O ex-banqueiro é ainda suspeito de ter distribuído cerca de 425 mil euros por terceiros que estarão relacionados com esta operação Vale do Lobo mas que ainda não foram identificados.
Na entrevista que deu à RTP março em 2013, José Sócrates anunciou que tinha voltado ao trabalho sem referir especificamente qual o trabalho em causa e para quem trabalhava. Além do comentário político que iniciou pouco depois na estação pública, sabia-se apenas que Sócrates tinha estado no Brasil em representação da Octapharma numa reunião com o ministro da Saúde brasileiro, tendo uma avença com a farmacêutica suíça. Hoje sabe-se que o ex-primeiro-ministro português tinha uma atividade generalizada de facilitador de negócios na Argélia, Venezuela e Brasil, entre outros países, através dos contactos políticos angariados enquanto chefe do governo de Portugal colocados ao serviço dos interesses comerciais da Octapharma mas também a favor do Grupo Lena e das diversas empresas de Carlos Santos Silva. Do ponto de vista contratual, contudo, tal ligação comercial só era oficial com a farmacêutica suíça – contrato que cessou, por decisão unilateral da Octapharma, dois dias após a prisão de Sócrates.
Recorde-se ainda que José Sócrates realizou dois contratos com Paulo Lalanda Castro, administrador da Octapharma. Um, o chamado contrato oficial, justificava o pagamento de cerca 12500 euros mensais a José Sócrates por parte da Octapaharma. Mais tarde, foi assinado um segundo contrato com outra empresa de Lalanda Castro no mesmo montante (12500 euros) mas que o MP suspeita que seja forjado, pois teria como objetivo encontrar uma fonte aparente de rendimento para justificar os elevados gastos mensais de Sócrates – num momento em que o ex-primeiro-ministro já saberia que estava a ser investigado. As suspeitas do MP baseiam-se no facto de Lalanda Castro ter passado a receber de uma empresa de Carlos Santos Silva precisamente o mesmo montante pago a Sócrates. O MP diz que é uma compensação pelo segundo contrato feito com Sócrates.
Neste dossiê do lobbying existe ainda o episódio do encontro entre José Sócrates e Carlos Santos Silva com Manuel Vicente, vice-presidente de Angola, em Nova Iorque. Numa altura em que o governante angolano estava na cidade para assistir a uma reunião das Nações Unidas, Sócrates e Santos Silva tentaram interceder pelo Grupo Lena junto de Vicente. O objetivo passava pela adjudicação de obras mas também pelo pagamento de dívidas que Angola tinha para com a empresa de Joaquim Barroca.
Tal como o Observador noticiou, tendo sido citado nos prestigiados jornais brasileiros “Folha de São Paulo” e “Estado de São Paulo“, o MP detetou indícios de que José Sócrates terá tentado utilizar o ex-presidente Lula da Silva para beneficiar os interesses da Octapharma no Brasil. O procurador Rosário Teixeira fala mesmo em alegada tentativa de influência internacional com recurso a contactos com ministros do governo de Dilma Roussef e com responsáveis de entidades públicas brasileiras na área da saúde.
Em causa está o negócio de plasma sanguíneo e a produção e distribuição de hemoderivados. Recorde-se que Paulo Lalanda de Castro, responsável pela Octapharma em Portugal e no Brasil, foi constituído arguido na Operação Marquês pelo alegado crime de corrupção ativa de responsáveis políticos da Líbia a troco da adjudicação de serviços de cuidados médicos. Este caso concreto está a ser seguido com atenção pelas autoridades judiciárias de Portugal e Brasil.
José Sócrates foi aliado político do primeiro-ministro António Costa desde 2004 até ao nascimento da Operação Marquês. Pouco antes de ser detido no aeroporto da Portela, Sócrates estava a tentar convencer Lula da Silva a vir a Portugal discursar no primeiro congresso de António Costa como líder dos socialistas. Sócrates, segundo o MP, chegou mesmo a propor à equipa de Lula da Silva uma semana de férias do casal Lula em Portugal por si financiada. Esse é apenas um dos vários sinais de envolvimento político de José Sócrates que constam da Operação Marquês, sendo certo, contudo, que as conversas exclusivamente políticas intercetadas pelas autoridades judiciais foram imediatamente destruídas. O mesmo aconteceu com as conversas com conteúdo exclusivamente íntimo.
Desde a sua primeira carta enviada a partir da prisão de Évora, ainda em novembro de 2014, que José Sócrates afirma que a Operação Marquês “tem contornos políticos”, tendo acrescentado mais tarde que a sua prisão visava prejudicar o PS e impedir os socialistas de ganharem as eleições. O secretário-geral António Costa, antigo aliado de Sócrates, sempre disse o contrário e nunca deixou que os dirigentes do PS criticassem publicamente a ação da Justiça.
Curiosamente, no auge do caso Casa Pia estavam em lados opostos. Enquanto que José Sócrates, juntamente com Jorge Coelho e a maioria dos dirigentes de então do PS, criticava abertamente a ‘tese da cabala’ da direção nacional de Ferro Rodrigues pela prisão de Paulo Pedroso, n.º2 de Ferro, o líder parlamentar António Costa usava os galões de ex-ministro da Justiça para falar sobre o caso com Souto Moura, então procurador-geral da República (sugerido pelo próprio Costa) e com o juiz de instrução criminal que tinha dado ordem de prisão a Paulo Pedroso. Hoje, Sócrates e Costa estão novamente em lados opostos da barricada – invertendo as posições.