Este texto foi originalmente publicado a 18 de novembro de 2014

De um palácio cor-de-rosa para um convento cor-de-rosa. Após deixar o Palácio de Belém, o ex-Presidente da República escolheu para gabinete uma parte de um Convento em Alcântara. Cavaco Silva preparou o futuro pós Presidência da República e deu ordem para avançar com obras de 475 mil euros (IVA incluído).

O antigo Convento dominicano, maltratado no tempo da República, ganhou nova vida. Ironia do destino: será agora o ex-Presidente da mesma República que lhe deu dias difíceis a dar-lhe nova vida, a de gabinete de trabalho de ex-chefe de Estado. Ao gabinete do Presidente, juntar-se-ão também serviços do Ministério dos Negócios Estrangeiros, – ao qual está afeto o edifício -, nomeadamente do Instituto Diplomático.

As obras começam em 2015, um ano antes da despedida de Belém. A escolha do edifício foi feita entre a secretaria-geral da Presidência da República e a direção-geral do Tesouro e Finanças. Em resposta ao Observador, a Presidência da República disse que foi estudada a “disponibilidade de imóveis do Estado para o efeito” e “foi decidida a afetação de uma área correspondente a cerca de 10% do Convento do Sacramento, em Alcântara, pertencente ao Património do Estado, para a instalação do gabinete de trabalho do futuro Ex-Presidente da República”. A escolha do sítio foi feita, de acordo com a Presidência da República, com base em critérios de funcionalidade do espaço e a solução que se afigurava a “mais económica possível”.

O Convento vai sofrer obras de reabilitação e a parte do gabinete será suportada pelo Orçamento da Presidência da República. O concurso da obra foi lançado em pleno mês de agosto de 2014, sexta-feira dia 8, e já “adjudicada [a obra], em concurso público, por 386 mil euros + IVA”. A obra teve o ‘ok’ do Tribunal de Contas. Há dez anos, o restauro da Casa do Regalo para servir de gabinete para Jorge Sampaio custou 746 mil euros.

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Como ex-Presidente da República, Cavaco Silva vai ter direito a um gabinete, uma secretária, um assessor e carro com motorista e combustível. Este era, aliás, o último orçamento em que poderia incluir verbas para a despesa com obras num futuro gabinete. Na proposta que está na Assembleia da República, estão 700 mil euros destinados a obras de conservação e restauro, mas nem todo o dinheiro é para o futuro gabinete. Parte será para pequenas obras no Palácio de Belém, no Museu da Presidência da República ou no Palácio da Cidadela.

O “senhor de todo o rio” saiu das páginas de Garrett

Às vezes estão no portão, agora acorrentado, dois guardas que vigiam o edifício que pertence ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. No resto do tempo… nada nem ninguém. As janelas e portas não escondem os sinais do tempo, apesar de uma área já ter vindo a ser reabilitada há anos. As teias de aranha penduradas nos caixilhos de madeira pintada a verde-escuro e as ervas daninhas mostram que o tempo está a passar pelo convento sem que ninguém o trave. De resto, o convento para onde se vai mudar o ex-Presidente, já foi palco de muitas vidas.

Parte da história deste edifício conta-se através da vida e da obra de Frei Luís de Sousa.

Primeiro a obra. Ainda enquanto Manuel Sousa Coutinho, Frei Luís de Sousa descreveu o convento da ordem de São Domingos como o “senhor de todo o rio”. A vista que Cavaco vai ter mudou desde o século XVII. Um edifício de lofts, a desembocar na 24 de julho, e um muro alto como o de um castelo roubam-lhe aos olhos o que o Frei dizia ser a vista das freiras, entre elas, a mulher Madalena de Vilhena (já lá iremos): “Defronte como painel, as rochas de Almada vestidas em parte de verdura, parte ao natural descomposta: e contra a boca da barra, larga e formosa perspetiva, até se perder de vista no mar”.

Mas esses eram os tempos em que o convento era visto como estando numa “estrada para o mar”. O século XIX e XX retirar-lhe-iam a robustez de outros tempos.

A morte da última freira levou ao encerramento do convento a 4 de janeiro de 1897, depois de um decreto de 1834 ditar o fim dos dias para o convento feminino da ordem dominicana. Mas os dias mais complicados chegaram anos depois com a fúria renovadora da República. O convento foi desmantelado e desmembrado. Dividido. Serviu de depósito de Aquartelamento do Exército e até de registo civil.

Um século depois está separado em várias partes com o departamento de pessoal da Armada a cortar-lhe as vistas de um lado e a casa das irmãs missionárias do Espírito do Santo a traçar a fronteira do outro. Hoje as fendas nas paredes deixam o convento descarnado em algumas paredes. Na parte da frente dá de caras com a Praça da Armada, da parte de trás está escondido por um muro muito alto – qual muralha de castelo?! – e árvores frondosas que vão proteger dos olhares, o ex-Presidente.

Gabinete Cavaco, Convento de Alcântara,

Traseiras do Convento do Sacramento, em Alcântara

Agora a vida. Quem lá passa nem sabe tratar-se do mesmo edifício que em tempos serviu de refúgio religioso à mulher de Frei Luís de Sousa.

Das páginas de Almeida Garrett para a realidade salta D. Madalena de Vilhena. A pobre mulher atormentada entre o presságio do regresso do primeiro marido, D. João de Portugal que se presumia morto em combate na batalha de Alcácer-Quibir, e o amor vivido aos soluços e cheio de sinais com D. Manuel de Sousa Coutinho, conheceu o destino nas paredes do convento. O regresso sebastiânico na pele de um desconhecido de D. João de Portugal ao fim de anos de espera, ditaria a tragédia do casal que abraçaria a vida religiosa. Manuel de Sousa Coutinho virou Frei Luís de Sousa e Madalena de Vilhena, Sóror Madalena. Ele foi para o Convento de São Domingos e ela, para o convento feminino da mesma ordem: Convento do Santíssimo Sacramento de Alcântara.

Gabinete Cavaco, Convento de Alcântara,

Edifício do futuro gabinete de Cavaco Silva, no Convento do Sacramento em Alcântara

Por agora, os sinais que as irmãs, vizinhas do convento veem, são de obras e de abandono.

“Só tenho visto sinais de obras por aqui”, conta ao Observador uma das irmãs missionárias do Espírito Santo. A viver paredes meias com um Convento votado ao abandono, até se lhe abre o sorriso quando toma conhecimento da futura vida do local. A riqueza do Convento, no entanto, já se foi quase toda. A Custódia do Sacramento, obra para pesar 200 quilos de prata, está em exposição noutras bandas, no Museu Nacional Machado de Castro em Coimbra. E conta a mesma irmã, os anos em que serviu de armazém ao Exército destruíram muitas das relíquias do local.

Em 2007, foi realizado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, na altura liderado por Luís Amado, um Projeto de Reabilitação e Adaptação. Parte do Convento, sobretudo a parte da Igreja, chegou a ser alvo de obras de restauro e reparação, mas precisa de mais para receber o local onde Cavaco Silva passará a trabalhar. “As instalações a serem afetas ao futuro gabinete de trabalho serão submetidas a necessárias obras de reabilitação, em coordenação com a direção-geral do Património Cultural”, respondeu ao Observador a Presidência da República.

Onde trabalham os ex-presidentes?

No centro de Lisboa, mas fora dela. Escondida na vegetação, surge no topo da Tapada das Necessidades a Casa o Regalo. O acesso é por estrada de terra batida, atrás do Instituto de Defesa Nacional, e ninguém dá pelo gabinete do ex-Presidente Jorge Sampaio.

Antigo atelier de pintura da Rainha Dona Amélia, é lá que Sampaio trabalha desde 2006, ano em que cedeu a cadeira de Belém a Cavaco. Por lá, o ex-Presidente tem tratado não só dos assuntos de representação da Republica como de Alto Representante da ONU para a Aliança das Civilizações e de Enviado Especial do Secretário-geral da ONU para a Luta Contra a Tuberculose.

A Casa do Regalo precisou de obras que custaram ao Estado cerca de 750 mil euros há dez anos. Em 2005, 486 mil euros e mais 260 mil no ano seguinte.

Já Mário Soares, ao contrário de Sampaio e de Cavaco, não escolheu um edifício do Estado. O prédio da Fundação com o seu nome é da Câmara Municipal de Lisboa que o cedeu ao ex-Presidente. Recebe da Presidência uma verba não especificada para as despesas com o gabinete.

Mário Soares

Mário Soares no gabinete que tem na Fundação Mário Soares

Ramalho Eanes também fugiu aos edifícios do Estado e não poderia trabalhar num prédio mais adequado. Mais que não seja pelo nome. O ex-Presidente da República trabalha num terceiro andar do edifício “Presidente” na avenida Miguel Bombarda. Um andar arrendado pela secretaria-geral da Presidência da República.

Os três ex-Presidentes da República custam aos cofres do Estado cerca de um milhão de euros, segundo noticiou o Diário de Notícias. Parte do dinheiro é gasto em subvenções – no Orçamento da Presidência da República para 2015 há uma verba de 220 mil euros destinada ao pagamento de subvenções de Ramalho Eanes, Jorge Sampaio e Mário Soares. As ajudas de custo, despesas com manutenção dos gabinetes e pagamento dos recursos humanos são absorvidos pela secretaria-geral da Presidência da República sem que esteja descrito no Orçamento.