“Vi pessoas mortas em condições… Encontrei dez corpos. Quatro ali, três lá em cima, outros dois ali. E ainda falta um… Ninguém pode imaginar este inferno”, desabafa Eugénio Santos, de 61 anos, um dos sobreviventes do incêndio que destruiu a aldeia de Nodeirinho, em Pedrógão Grande. “Destruir” e “sobrevivente” são as palavras certas. Num lugar com pouco mais de 30 habitantes, morreram 11 pessoas, incluindo uma criança de dois anos e outra de quatro.
Os dez quilómetros que separam Pedrógão Grande de Nodeirinho mostram um cenário apocalíptico. Há casas completamente consumidas pelas chamas, carcaças de carros abandonados, terra queimada por todo o lado. Chovem cinzas do céu. O ar está completamente irrespirável e o calor é sufocante. É impossível ignorar o crepitar das chamas que ainda lavram o pouco que resta da vegetação e da madeira que não arderam. É impossível não sentir medo, assim como é impossível ignorar os corpos — de animais, mas também de pessoas. Há corpos carbonizados que ainda não foram retirados. Alguns estão cobertos por um lençol branco. Outros, nem isso.
Manuel da Costa, de 60 anos, é a imagem de um homem derrotado pela Natureza. Os olhos mal abrem. Os dedos e as mãos estão sujos de fuligem. As unhas estão negras da batalha travada durante toda a noite, ombros com ombros com os vizinhos que decidiram enfrentar as chamas. Outros tentaram fugir e morreram no caminho, consumidos pelas chamas ou intoxicados pelo fumo. Manuel perdeu quase tudo. Sobrou a casa, parcialmente destruída. Das sete cabeças de gado, restam três. Duas ovelhas e uma cabra. Quando mostra o que resta do espaço onde guardava o pouco que tinha, é impossível ignorar o cadáver de uma ovelha, intocado pelas chamas e de olhar vazio. Enquanto esfrega os olhos e a voz lhe falha, vai repetindo: “Ardeu tudo. Ardeu tudo”. Mas essas perdas são menores, comparadas com o resto.
“Não sei do meu filho”, desespera Manuel. Viu-o pela última vez às 16 horas de sábado, quando o incêndio começou a tomar proporções dantescas. “Fugiu de carro e nunca mais o vimos”, conta. O automóvel ainda não foi encontrado. Agarra-se a essa ideia. O filho, de 21 anos, estará algures, com demasiado medo para regressar. Talvez ferido, mas vivo. Não há rede de telemóveis e a assistente social que visitou a aldeia esta manhã disse não ter qualquer informação que confirme o pior. Os vizinhos, que se juntam em assembleia para reviverem juntos o que aconteceu na noite anterior, acenam com a cabeça. “Esperemos que ele ande bem. Se Deus quiser, ele está bem”.
Os habitantes de Nodeirinho estão revoltados com o que dizem ter sido a negligência dos bombeiros e da proteção civil. É difícil distinguir onde acaba a racionalidade de uma crítica legítima e onde começa o desespero de alguém que tenta encontrar a todo o custo uma explicação para o que aconteceu. Dizem que ninguém os socorreu. Nem INEM, nem bombeiros, nem proteção civil. Foram abandonados, queixam-se. “Deixaram-nos entregues à nossa sorte e a Deus”, diz Eugénio Santos. “Uma porra de uma ambulância tinha resolvido isto. Uma porra de um autotanque tinha resolvido isto. Nada. Liguei mais de 30 vezes e nada. Deixaram-nos aqui para morrer. Sabe o que eu lhe digo? Eles que vão para a puta que os pariu!”.
Nunca pensaram em fugir. “Íamos para onde? Diga-me: íamos para onde!?”, interroga Manuel da Costa, enquanto bate com a boina no banco da paragem do autocarro. “Corríamos o risco de morrermos como os outros”, completa Eugénio Santos, sem esconder o desespero.
“Os outros” eram seus vizinhos. Numa aldeia onde todos se davam bem, “apesar das chatices normais entre vizinhos”, foi Manuel quem ajudou a proteção civil a encontrar os corpos. Nunca é demais repetir: numa aldeia com pouco mais de 30 habitantes, morreram 11 pessoas e há uma desaparecida. A conversa só é interrompida quando começa novo foco de incêndio num terreno a escassos metros das habitações. Os vizinhos, cinco, seis, sete, todos homens, apressam-se a tentar apagar o fogo. E conseguiram. Pelo menos, para já.
Lá ao longe, pouco abaixo da casa de Eugénio, uma figura masculina guarda a casa que era sua. Não deixa ninguém aproximar-se. Nem jornalistas. Sabemos pelos vizinhos que está a guardar o corpo da namorada, que morreu no incêndio. Num cenário pintado a cinzento, o lençol branco que cobre o cadáver destaca-se. Já passaram mais de doze horas e ainda ninguém chegou para tratar condignamente do corpo.
Não é o único. Cacilda Nunes Henriques, de 75 anos, guarda a entrada da aldeia quando nos aproximamos. Apoiada num cajado, tem uns estranhos óculos de lentes cor de laranja que lhe enfeitam a cara. São espelhados, “óculos de cachopos”, como diz. Esteve a noite toda a tentar combater como podia o incêndio e, por isso, teve de usar a primeira coisa que lhe protegesse os olhos vermelhos e cansados — cansados do fumo e de chorar. As lágrimas escorrem-lhe quando conta ao Observador que um “menino de dois anos morreu ali em cima” e que uma “menina de quatro anos e a avó morreram naquela estrada ao lado”. Morreram mais, mas Cacilda perde-se nos detalhes. Está exausta.
Perdeu o curral e os “30 ou 40 bicos de galinha” que mantinha para sobreviver. Parte da casa foi consumida pelas chamas, mesmo depois de “ter passado a noite toda a acartar água sozinha”. “Moro sozinha, não tenho filhos, nem netos”. Cacilda tem 75 anos. “Se chegar ao dia 18 do próximo mês, faço 76 anos”, comenta, enquanto pede desculpa por não ter os dentes todos na boca. Perdeu a prótese durante o incêndio.
Cacilda confessa que não come nada há horas. “Ainda tenho medo de me aproximar do fogão e a assistente social disse para não me aproximar das partes queimadas, porque podem cair. Mas também não quero sair daqui”. A custo, lá diz que, depois de conversar com o Observador, “vai comer uma sopinha à casa da vizinha”. “Tem de ser, não é?”.
A ameaça do fogo ainda não desapareceu. A toda a volta há pequenos focos, que, com o vento que se faz sentir e as temperaturas altas, podem transformar-se e crescer. Cacilda não quer sair. “A gente tem medo de deixar a casa, não é?”.
O incêndio em Pedrógão Grande fez pelo menos 61 mortos. As autoridades já assumiram que o número de vítimas mortais vai ser maior. E ainda que as informações estejam a ser atualizadas periodicamente por via oficial, basta conversar com um dos muitos bombeiros que estão a prestar socorro na região para perceber que a catástrofe tomará proporções ainda maiores. “Há aldeias a que ainda não conseguimos chegar. A cada novo metro que percorremos encontramos corpos carbonizados”, comenta sob anonimato um dos bombeiros ouvidos pelo Observador.
A situação na Santa Casa da Misericórdia, onde foi criado um ponto de informação e de acolhimento, também não é melhor. “Há pessoas que vêm cá perguntar pelos familiares desaparecidos, porque foram encontrados os carros mas não havia ninguém lá dentro. Agarram-se a essa esperança”, diz uma técnica da Segurança Social.
No lar para onde foram encaminhados muitos dos desalojados, o ambiente é pesado e duro. “Desta vez tocou a todos”, comenta uma enfermeira, de olhos postos no chão. O Observador acabou por ser convidado simpaticamente a sair. Nenhuma das pessoas — na sua grande maioria idosos que viviam sozinhos e foram resgatados — estava em condições de falar. “Isto está absolutamente caótico. Desculpem”, lamentou a psicóloga responsável pelo encaminhamento e tratamento dos internados.
O fumo é que não dá tréguas. Pedrógão Grande e a região circundante estão, neste momento, rodeadas pelo fogo. E o calor é absurdo. Resta esperar que a noite, desta vez, não seja tão má.