“Conseguimos! Conseguimos! A partir de hoje há, em Portugal, uma nova maioria e uma nova esperança”. Foram estas as primeiras palavras de José Sócrates gritadas no Largo do Rato, em Lisboa, pequeno demais para acolher a multidão que quis ver o novo primeiro-ministro – o único socialista a conseguir a maioria absoluta na história da democracia portuguesa.
Faz esta sexta-feira dez anos que José Sócrates venceu as eleições legislativas com 45,03% dos votos. Na noite de 20 de fevereiro de 2005, aquela foi a vitória de um homem que, mesmo não tendo “o carisma de Mário Soares”, “o prestígio internacional” de António Vitorino ou a “experiência” de António Guterres, alcançou um feito que nenhum socialista antes dele conseguira, descreveu o jornal espanhol El País na altura. Naquela noite, depois daquela vitória “verdadeiramente histórica”, caía o velho mito da política portuguesa. “O mito de que só a direita podia ambicionar ter maioria absoluta” e abria-se caminho para a restauração “da confiança dos portugueses”, garantia José Sócrates.
O “Menino de Ouro do PS”, rótulo recebido em 2008 numa biografia da jornalista Eduarda Maio, iniciava assim um percurso que só terminaria em 2011 com a demissão e a convocação de eleições antecipadas. No entanto, antes de conquistar o país, José Sócrates teve de conquistar o partido: Eduardo Ferro Rodrigues, líder do PS, tinha-se demitido, em protesto com a decisão do Presidente da República e também militante socialista, Jorge Sampaio, de não convocar eleições antecipadas, depois de Durão Barroso ter rumado a Bruxelas. Vaga aberta no Largo do Rato.
Era preciso desbravar caminho e contar espingardas, numa altura em que alguns dos pesos pesados dos socialistas, como Manuel Alegre e João Soares, já se preparavam para o combate. Mas, mais importante, também o jovem António José Seguro, então líder da bancada parlamentar, tinha vontade de pôr as suas peças em cima do tabuleiro e lutar pelo cargo de secretário-geral do PS. A ambição de Sócrates – e um telefonema de Jorge Coelho, o piloto ao volante da máquina partidária socialista – travaram as pretensões de Seguro. Conquistado o aparelho, o caminho para José Sócrates tornou-se mais fácil: foi eleito líder do partido com 80% dos votos.
O Governo de Santana Lopes cairia pouco tempo depois e José Sócrates posicionava-se no terreno como a grande esperança dos socialistas para recuperarem o poder. Um poder que lhes fugiu quando António Guterres pediu a demissão em 2002, na sequência da derrota nas eleições autárquicas, e o líder que se lhe seguiu, Ferro Rodrigues, falhou por pouco alcançar o Governo do país nas eleições legislativas seguintes. Mário Soares diria mais tarde que Sócrates era o “anti-Guterres”. O atual alto comissário das Nações Unidas para os refugiados era um homem que não sabia “dizer não a ninguém” porque “gostava de ser amado”. Sócrates não, dizia Soares.
Na campanha eleitoral, o futuro primeiro-ministro apresentou-se como o líder reformista de que o país precisava. As promessas eram ambiciosas: não aumentar impostos, criar 150 mil empregos, reduzir o número de funcionários públicos em 75 mil, deixar o país em 2009 com um crescimento económico de 3% e conduzir um referendo ao Tratado de Lisboa.
“Rigor, transparência e verdade” nas contas públicas, prometeu José Sócrates
Depois de derrotar Pedro Santana Lopes, José Sócrates tomou posse como primeiro-ministro do XVII Governo Constitucional a 12 de março de 2005. No Palácio da Ajuda, Sócrates apresentou aos portugueses as principais linhas estratégicas do Executivo socialista: “Rigor, transparência e verdade” nas contas públicas e um combate cerrado à fraude e à evasão fiscal eram as prioridades do Governo.
“Rigor, desde logo, na despesa, porque essa é a forma última de garantir a sustentabilidade de longo prazo das contas públicas. (…) Rigor, também, no cumprimento do Pacto de Estabilidade e Crescimento. (…) Múltiplos instrumentos poderão ser usados, mas o rigoroso controlo da despesa e o combate à fraude e à evasão fiscal serão, sem dúvida as traves-mestras da nossa ação“.
“Mas também a transparência. A transparência e a sustentabilidade das contas públicas são essenciais para a credibilidade externa e interna da governação. Finalmente, a verdade. Pagar impostos é obrigação de cidadania; mas conhecer a verdade sobre as contas do Estado é um direito dos cidadãos. O país conhecerá a verdade sobre a situação orçamental”, prometeu o primeiro-ministro no discurso de tomada de posse.
A mensagem de Sócrates tinha um destinatário claro: o anterior, curto e muito atribulado Governo de Santana Lopes. Ainda durante a campanha, o ex-ministro de Guterres acusara Santana de esconder a verdadeira dimensão do buraco orçamental e prometera em Bruxelas que, se fosse eleito primeiro-ministro, iria pedir uma auditoria às contas nacionais.
O mesmo Santana Lopes que, poucos meses depois da vitória de Sócrates, e recuperado das feridas da batalha, viria a elogiar o novo primeiro-ministro. Na altura, em entrevista à TSF, o ex-presidente da Câmara da Figueira da Foz reconheceu que José Sócrates era um “homem inteligente e esperto”, com “algumas qualidades” e com um “estilo” que assumiu apreciar.
Ainda mal tinham passado três meses desde que chegara ao Palácio de São Bento e a comissão independente liderada por Vítor Constâncio, então governador do Banco de Portugal, antecipava para 2005 um défice nas contas públicas de 6,8%, bem acima dos 3% impostos pelo Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC), caso não fossem tomadas medidas de correção.
“O agravamento do défice é um elemento de alguma surpresa”, foi obrigado a admitir Vítor Constâncio. Então, os alarmes soaram no seio do Governo: um dia depois de ser anunciada a dimensão potencial do défice, foi convocado um Conselho de Ministros extraordinário para discutir medidas para travar a derrapagem do saldo orçamental. A promessa de não aumentar os impostos, uma das bandeiras de José Sócrates durante a campanha eleitoral, foi a primeira a cair.
Dessa reunião saíram, entre outras medidas, o aumento do IVA de 19% para 21%, o agravamento fiscal em IRS, o congelamento dos suplementos de ordenados de milhares de funcionários públicos e o fim das progressões automáticas das carreiras.
À margem do Conselho de Ministros, Luís Campos e Cunha, então com a pasta das Finanças, viu-se obrigado a assumir: em 2005, “o crescimento económico não será tão risonho como gostaríamos”. Ele que, poucos dias depois de ser escolhido para ministro das Finanças, já tinha admitido que o aumento de impostos era “praticamente inevitável” face à conjuntura económica e financeira do país.
Na altura, as palavras de Campos e Cunha caíram como uma bomba no Governo socialista e obrigaram José Sócrates a decretar “blackout” a todos os membros do Executivo. Seria ele o primeiro a falar com a comunicação social, seria ele o primeiro a dar uma grande entrevista. Até lá, silêncio, exigia o primeiro-ministro.
Mas a verdade é que o prenúncio de Luís Campos e Cunha se viria a revelar acertado: o aumento de impostos passou de “praticamente inevitável” a realidade; o crescimento da economia portuguesa de 3% até ao final da legislatura nunca viria acontecer; e a criação de 150 mil empregos nunca sairia do papel – estas duas últimas medidas eram “as” grandes bandeiras eleitorais de José Sócrates e tinham lugar de destaque no Programa de Governo apresentado.
E quanto a Campos e Cunha? Foi a primeira baixa do Executivo socialista. Deixou o Governo ao fim de apenas quatro meses por “motivos familiares” e esgotado com a pressão do cargo.
No entanto, houve quem garantisse que não foram só esses os motivos que levaram à saída do antecessor de Fernando Teixeira do Santos: na altura, fontes socialistas revelaram que o ministro saía em divergência com Mário Lino, por discordar da forma como as grandes obras públicas (aeroporto da Ota e o TGV, por exemplo) estavam a ser geridas. Publicamente, as diferenças de opinião eram visíveis: se o ministro das Finanças pedia caldos de galinha face à difícil situação dos cofres portugueses, o ministro das Obras Públicas garantia que recuar “jamais”: a decisão já estava tomada.
Reformar, Cortar e Privatizar. O Primeiro PEC e o impulso reformista de Sócrates
A 9 de junho de 2005, José Sócrates, que anos mais tarde, viria a dizer em entrevista ao Expresso que “era o chefe democrático que a direita sempre quis ter”, apresentou no Parlamento um ambicioso Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC). A receita do primeiro-ministro para pôr ordem na casa passava por um conjunto de medidas de choque para recuperar a “credibilidade” do país. Eram quatro as principais frentes de combate: reforma da administração pública e da segurança social, contenção da despesa pública e as privatizações.
O que era isso da Bolsa de Supranumerários?
Quanto à administração pública, o Governo fixava como objetivo a “redução, ao longo da legislatura, de 10% dos consumos intermédios do conjunto da Administração Central”. Se esta medida, por si só, não causou grande polémica, a “dinamização da Bolsa de Supranumerários”, não foi tão simples assim.
Na prática, o Governo socialista propunha que “os trabalhadores considerados excedentários ou inadequados ao serviço” aguardariam “colocação alternativa” sem poder “recusar uma proposta de colocação (…) sob pena de perder o vínculo à função pública”. Se, passados três meses, os funcionários não conseguissem colocação, perderiam o chamado “vencimento de exercício”, ou seja, um sexto do vencimento anterior.
Progressão salarial? Só com avaliação de desempenho
“O atual sistema de carreiras e remunerações dos funcionários públicos é de extrema complexidade e rigidez, com cerca de 1050 carreiras profissionais diferentes, imperando os mecanismos automáticos de movimentação na carreira e de progressão salarial, de forma independente do desempenho profissional”.
José Sócrates queria pôr termo a uma situação que, considerava, tornava demasiado pesada a máquina do Estado e era a principal responsável pela derrapagem da despesa pública com o pessoal. Progressões na carreira? Só com avaliação de desempenho positiva, era o lema do primeiro-ministro.
Até lá, “dada a complexidade desta reforma, e o processo negocial que ela implica” e “para evitar a derrapagem das despesas com pessoal”, o Governo suspendia “todas as progressões automáticas de funcionários públicos” e passava substituir apenas parcialmente os trabalhadores que abandonavam o ativo – por cada dois funcionários que deixassem o serviço ativo, era contratado um único novo funcionário.
Reformar antes dos 65? Pense duas vezes
“A esperança de vida à nascença, atualmente superior a 77 anos, tem crescido de forma sustentada, cerca de 10 anos nas últimas três décadas. (…) No caso de cidadãos que tinham 65 anos de idade em 2000, o número de anos de vida adicionais esperados era de 15,3 e 18,7 anos, respetivamente para homens e mulheres. Os valores correspondentes para cidadãos que tinham 60 anos nessa data eram de 19,0 e 23,0 anos. (…) Ora, é previsível que o aumento da esperança de vida prossiga no futuro”.
Foi este o principal argumentário utilizado por José Sócrates, quando decidiu aumentar de “forma graduada” a idade legal de reforma dos funcionários públicos de 60 para 65 anos. Sócrates propunha-se também eliminar, ou pelo menos reduzir significativamente, todos os regimes especiais que permitiam a aposentação/reforma antes dos 60 e dos 65 anos, respetivamente. O objetivo? Travar o aumento do número de pensionistas e da pensão média, a única forma de “combater a deterioração da situação financeira da segurança social”.
Entre outras medidas, o Governo queria ainda “reduzir significativamente a prática de concessão de reformas antecipadas por motivos que não a invalidez do trabalhador”.
“As reformas antecipadas (…) têm normalmente um custo financeiro elevado para a Segurança Social (porque os beneficiários deixam de trabalhar e contribuir em idades relativamente baixas, passando a receber uma pensão durante períodos de reforma excepcionalmente longos)”, defendia o Executivo socialista.
Mas as propostas do novo Governo demorariam tempo a dar frutos – a conter a derrapagem orçamental, leia-se – e o próprio primeiro-ministro admitia-o. Por isso, e para evitar a “deterioração da situação financeira da segurança social”, o Executivo anunciava o aumento do IVA para 21%, do Imposto sobre os produtos petrolíferos (ISP) em função da inflação e 2,5 cêntimos por litro em 2006 e o Imposto sobre o Tabaco.
Quanto ao IRS, o Governo propunha ainda a “criação de um escalão adicional, com uma taxa marginal de 42%, a ser aplicada a rendimentos anuais superiores a 60 mil euros”.
Saúde, Educação e Justiça. As reformas prioritárias e os maiores inimigos
Se o primeiro PEC apresentado pelo Governo liderado por José Sócrates pouco acrescentava em relação às medidas concretas de reforma nos três setores prioritários, a atualização do documento, apresentada em dezembro do mesmo ano, colocou o Executivo debaixo de fogo.
Na Saúde, José Sócrates propunha mão pesada para os gestores dos hospitais da rede do Serviço Nacional de Saúde (SNS) que não cumprissem as regras de boa gestão. O objetivo? Eliminar “as sucessivas derrapagens orçamentais do SNS” e dar transparência deste serviço.
Quanto ao setor da Educação, o Governo tirava da gaveta duas medidas que dariam muita controvérsia: primeiro, o encerramento de escolas do 1º ciclo com menos de 10 alunos e, mais tarde, o polémico modelo de avaliação de professores, que colocou a ministra da Educação, Maria de Lurdes Rodrigues, com um pé fora do Governo, tal era o tom das críticas ao sistema de avaliação. O ensino da língua inglesa desde o 1º ciclo e as aulas de substituição, essas, foram saudadas pela generalidade dos portugueses, mesmo que sob protesto de sindicatos e alunos.
Na altura, um dos homens que mais tarde viria a estar de costas voltadas com José Sócrates, não se encontrava entre a lista de inimigos do socialista. As relações entre São Bento e Belém eram saudáveis: Maria de Lurdes Rodrigues, por exemplo, era presença assídua na residência oficial do Presidente da República, que gostava de discutir as reformas em curso na Educação. No entanto, a relação foi-se deteriorando com o tempo e o caso das escutas em Belém em 2009 foi a gota de água: Cavaco perdeu a paciência com Sócrates e, pelo caminho, a confiança.
Outro campo de batalha do primeiro-ministro foram as reformas feitas na área da Justiça. Um mês depois de chegar ao cargo, Sócrates anunciou a decisão de reduzir as férias judiciais de dois para um mês e a revisão do mapa judiciário. Com a redução das férias judiciais, “centenas de milhares de processos deixarão de estar literalmente parados por um tão longo período de tempo” e dar-se-ia um “contributo decisivo para uma maior celeridade processual”, defendia o primeiro-ministro.
Plano Tecnológico. A maior ambição de José Sócrates
Voltar o país para o futuro. Era essa a “prioridade” do antigo ministro do Ambiente de José Sócrates. Foi inclusive um dos slogans da campanha socialista, escrito em letras garrafais em vários cartazes.
“O Plano Tecnológico é a peça central da política económica do Governo e consiste num conjunto articulado de políticas e de medidas transversais, ao serviço da visão de, a médio prazo, transformar Portugal numa moderna sociedade do conhecimento”, podia ler-se no programa de Governo socialista.
Os trunfos, esses, foram jogados em várias frentes: o programa Parque Escolar, o Simplex, mas também o computador Magalhães e as grandes obras públicas como o TGV e o novo aeroporto.
Os elogios do primeiro ano de governação, contudo, ao homem que se propôs a governar “ao centro”, rompendo com um socialismo em que não “acreditava”, não fizeram eco durante toda a governação. Desapareceram as palavras simpáticas e surpreendentes da direita, de figuras como Santana, Rui Rio ou Dias Loureiro, para quem “o otimismo de Sócrates fazia bem ao país”. Até os autarcas do PSD preferiam não repetir a graça de elogiar o então primeiro-ministro.
Pelo meio, sucederam-se casos uns atrás dos outros: primeiro o “Freeport”, depois a “Face Oculta”. E também a história da licenciatura concluída num domingo ou a polémica com Manuela Moura Guedes e o fim do telejornal de maior audiência da TVI, as casas da mãe, o Taguspark e o caso Monte Branco.
O “Menino de Ouro do PS”, entretanto transformado em “animal feroz”, perdeu a maioria absoluta nas eleições de 2009. Não quis fazer coligações e seguiu o seu caminho com um Governo minoritário fragilizado. Seguiu-se o pedido de auxílio externo em 2011, a demissão e a convocação de eleições antecipadas. Foi a eleições, mas caiu quando os portugueses escolheram Pedro Passos Coelho para seu sucessor.