“O mundo não seria maravilhoso se as bibliotecas fossem mais importantes do que os bancos?” é a frase de uma das personagens da série de banda desenhada “Mafalda”. Felipe, apaixonado e esperançoso, o garoto que por vezes acredita que os sonhos são realidade. Mais ou menos o que passava pela ideia de quem criou um dos mais acarinhados projetos da história da Fundação Calouste Gulbenkian, as bibliotecas itinerantes. O programa foi extinto em 2002 mas agora que a Fundação cumpre 60 anos, tentámos saber mais: o que aconteceu às bibliotecas e porque não regressam?
Começaram como qualquer outra iniciativa, com a ambição de mudar algo — neste caso, a vontade maior era a de promover a leitura pública e a cultura em Portugal. Num país onde a taxa de analfabetismo era alta e o Estado Novo reprimia o que era escutado e lido, 1958 tornou-se o ano em que as bibliotecas iam começar a percorrer o país. Sem que as “fronteiras” ou as más condições do alcatrão fossem um entrave.
A ideia surgiu com o escritor Branquinho da Fonseca, que depois de adaptar uma carrinha para a distribuição de livros em Cascais, decidiu formalizar a iniciativa com a Fundação Calouste Gulbenkian. A proposta foi feita a José de Azeredo Perdigão, primeiro presidente da instituição, que aceitou de bom de grado e moveu esforços para que as bibliotecas itinerantes correspondessem às expectativas.
“Em maio de 1958, trabalhavam 15 bibliotecas itinerantes por todo o país. Mais tarde, em dezembro de 1959, havia 81 340 leitores espalhados por 118 concelhos”, esclarece Maria Helena Borges, diretora-adjunta do Programa Gulbenkian Língua e Cultura Portuguesas.
Desde Trás-os-Montes até ao arquipélago dos Açores, o projeto pretendia colocar os livros em pé de igualdade com as pessoas: aproximar uns dos outros, sem medos ou ideias preconcebidas. No fundo, demonstrar que tanto o agricultor, o aluno de uma escola primária ou o empresário podiam percorrer livremente os livros de uma carrinha Citroen HY. “O princípio era o de as pessoas terem livre acesso às estantes”, afirma a diretora-adjunta. “Nas bibliotecas itinerantes, os leitores encontravam não só os livros mas também a ajuda de um encarregado”, tudo para poderem tomar as melhores decisões na hora de requisitar os livros e descobrir pequenas curiosidades literárias.
Maria Helena Borges teve um percurso curto no projeto: substituiu Vasco Graça Moura, quando o escritor foi eleito para deputado no Parlamento Europeu e teve de abandonar o cargo de responsável pela biblioteca. No entanto, o tempo foi suficiente para ainda hoje lhe dizerem o quanto as bibliotecas deixaram saudade. “Onde quer que se vá, há sempre alguém que já foi leitor das bibliotecas itinerantes e que começou a ler com o projeto”, diz-nos.
Além dos leitores e dos funcionários, vários nomes da cultura portuguesa foram elementos importantes no programa especial da Calouste Gulbenkian. Os então jovens poetas, Herberto Hélder e Alexandre O’Neill, trabalharam com as bibliotecas itinerantes, como encarregados, orientando as leituras e as escolhas quando as dúvidas dos leitores eram mais que muitas. Hoje “fazem parte da História de um dos projetos mais icónicos da Fundação”, diz Maria Helena Borges. São nomes que não passam pelos pingos da chuva dos arquivos da Gulbenkian e que reforçavam a importância de ter pessoas especializadas a trabalhar.
Trabalhar nas bibliotecas itinerantes
Esteve em Santarém, no arquipélago dos Açores e por quase todos os sítios onde as bibliotecas itinerantes tiveram um ponto de passagem. Armando Fernandes, de 70 anos, foi um dos inspetores-chefe do projeto. O funcionário tinha como tarefa garantir que o serviço corria sem sobressaltos, ao mesmo tempo que registava as fragilidades e as virtudes que as carrinhas encontravam, para depois as comunicar à sede em Lisboa.
“De Melgaço até ao Corvo [ilha]” é o que responde quando lhe perguntamos por onde andou. Tornou-se um “saltimbanco” à boleia das bibliotecas itinerantes da Gulbenkian, mas tem noção que o amor à camisola “lhe custou alguns momentos pessoais e familiares”.
Entrou ainda jovem, com apenas 18 anos, para a Fundação Calouste Gulbenkian e não tarda em referir “a revolução cultural” a que assistiu quando as bibliotecas itinerantes foram introduzidas. “Havia um acervo documental de milhares de livros em Lisboa, que prestavam auxílio às carrinhas que andavam por todo o país”, diz Armando Fernandes.
O funcionário teve também uma pequena experiência como encarregado de biblioteca, portanto as cores dos livros ainda continuam vivas na memória: “A História tinha uma fitinha vermelha, a literatura tinha uma fitinha azul…”, recorda. Até os métodos de requisição de livros permanecem intocáveis na coleção de memórias, tal como as artimanhas que alguns casais de namorados utilizavam para trocarem declarações de amor, sem necessitarem de pagar o selo dos correios. “Havia raparigas que chegavam às bibliotecas e diziam ao encarregado para guardar o livro, com uma carta dentro, porque vinha o namorado buscar”, diz.
Os 44 anos de atividade das bibliotecas itinerantes permitiram a vários funcionários assistir de perto às mudanças sociais que ocorreram em Portugal. Desde o 25 de abril até à tecnologia em constante evolução, Armando Fernandes tem noção que o projeto foi o corolário da passagem do tempo, principalmente dos fenómenos políticos. “Depois do 25 de Abril, muitos encarregados descobriram que tinham fichas na PIDE”, refere o antigo funcionário. Os episódios de Portugal sob o olhar atento da ditadura não escaparam ao projeto: no Minho, foram queimados pela população vários livros numa espécie de “auto de fé” e um livro de educação sexual teve a sorte de ser agraciado com um abaixo-assinado para ser retirado do arquivo.
Muitos “temiam que as bibliotecas itinerantes se tornassem abismos para a religião católica”, o que motivou “ações muito intempestivas por parte dos locais”. O poeta António José Forte, na altura encarregado de biblioteca, escreveu uma carta a Branquinho da Fonseca em que suplicou “mandem armas”, quando verificou que parte do arquivo tinha sido incendiado; outros funcionários utilizavam táticas mais tranquilizadoras, como mostrar aos leitores a fotografia de Salazar no dia em que as bibliotecas passavam pela primeira vez em determinado lugar.
Os agentes da polícia política faziam algumas visitas inesperadas e mandavam retirar algumas obras, como o livro de Tomás da Fonseca — pai de Branquinho da Fonseca — “Filha de Labão”: “Ironicamente, teve ser o próprio filho a retirar o livro do pai das estantes das bibliotecas”, afirma Armando Fernandes.
O regresso esperado que (dificilmente) acontecerá
António Quadros foi também um dos inspetores-chefes do projeto das bibliotecas itinerantes. Assumiu funções depois da morte de Branquinho da Fonseca em 1974. A filha, Mafalda Ferro, hoje responsável pela Fundação António Quadros, em homenagem ao pai, foi também uma leitora ávida do serviço. Além de observar com curiosidade os outros leitores, seguiu com atenção as pisadas do pai. Para Mafalda, as bibliotecas itinerantes da Gulbenkian revelam-se tão ou mais necessárias do que em 1958. “Vivo numa pequena aldeia do Ribatejo onde grande parte da população, mesmo vivendo apenas a 3 quilómetros da cidade de Rio Maior, continua a comprar peixe, pão, bolos, fruta em carrinhas porta-a-porta e que ainda se sentem pouco à-vontade numa grande biblioteca”, refere.
Quando a Fundação Calouste Gulbenkian extinguiu o serviço das bibliotecas itinerantes em setembro de 2002, cerca de 250 pessoas trabalhavam no projeto. Umas aproveitaram o momento para tratarem da reforma, outras continuaram a trabalhar na Fundação. “Para mim, foi um desgosto, mas foi um desgosto controlado”, confessa Armando Fernandes. Na altura, a razão apontada para o fim deveu-se à introdução da leitura pública pelo Estado, através das bibliotecas municipais e escolares.
“Deixou de haver público para o nosso serviço: as aldeias estavam a ficar vazias e as crianças já tinham bibliotecas nas escolas. Depois, a Fundação sempre teve o lema de não atuar onde o Estado está presente”, afirma Maria Helena Borges.
De forma a não perder o vínculo com as localidades, uma das soluções encontradas foi entregar uma parte do arquivo da Gulbenkian às autarquias e às novas bibliotecas fixas que surgiram. Algumas bibliotecas itinerantes idealizadas mais tarde, a título individual, também receberam livros da Fundação. Hoje, o projeto parece revelar-se necessário, mas “em moldes diferentes”. “Julgo que não erro se disser que ainda há lugar para as bibliotecas itinerantes. Tinham era de funcionar num modelo completamente distinto. Sejamos realistas: hoje é impensável trabalhar sem internet, vídeos ou cinema”, explica Armando Fernandes.
Um regresso do projeto, embora aguardado por muitos, não é ponderado pela Fundação Calouste Gulbenkian, de acordo com Maria Helena Borges. Mas essa quase-certeza não vai fazer com que a pergunta chave deixe de ser feita a alguns funcionários da instituição: “então quando voltam?”.