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– Com ou sem gravata?
– Deixe-me ver qual é o protocolo.
Isabel Toquero, da representação da Comissão Europeia em Espanha, agarra no telefone. Faz uma chamada breve num castelhano mais rápido do que aquele que o nosso ouvido consegue reter. Curva, contracurva. Vira-se para trás e sossega Carlos Moedas:
– Sem gravata, senhor comissário.
Passava pouco das 14h30 quando Carlos Moedas aterrou no terminal 4 do aeroporto de Madrid. Quarta-feira desassossegada de um calor que lembra que o verão madrileno está à beira do fim. Ainda que mais quente do que o de Lisboa, duas horas depois de o comissário europeu ter descolado de Bruxelas. Com tecnologia e empreendedorismo na agenda para os próximos dois dias e com as declarações do comissário Oettinger a agitar os meios de comunicação social em Portugal. Há ou não há suspensão de fundos? Começa o briefing.
– Sr. comissário, vamos ao hotel ou diretos para a South Summit?
– Vamos diretos, que assim posso aproveitar melhor o tempo lá.
Fomos.
O comissário europeu com a pasta da investigação, ciência e inovação chega à Nave — edifício onde decorre a South Summit — a tempo de visitar o salão onde estão expostas as 100 startups mais promissoras do Sul da Europa. À porta, vestida com as cores da bandeira espanhola, está Maria Benjumea, presidente e fundadora do Spain Startup, entidade que se dedica a promover o ecossistema de empreendedorismo e inovação em Espanha, e que em parceria com o IE Business School e a Comunica+A organiza a conferência tecnológica.
Dois beijinhos, sorrisos — “Seja bem-vindo senhor comissário” — e a energia de Maria Benjumea não para. Conhece os cantos às startups de cor, apresenta empreendedores, explica conceitos. Junta-se Francisco Marín, diretor-geral do Centro para o Desenvolvimento da Tecnologia Industrial de Espanha. Vira para a esquerda. Vira para a direita. A comitiva segue-lhes os passos já com medo de os perder de vista. Breve paragem para cumprimentar a realeza.
– Sabe com quem é que o comissário está a conversar?
– Não.
– Com o príncipe Constantino, da Holanda.
A monarquia juntou-se à comitiva europeia, com o príncipe que quer fazer da Holanda “a Costa Oeste [West Coast norte-americana] europeia de startups fantásticas”. A conversa segue apressada, sai do espaço onde empreendedores, jornalistas e investidores trocam ideias que confundem o espanhol com o inglês e passa para o quinto andar da Nave. Chamam-se os elevadores. No primeiro, segue Carlos Moedas, o príncipe Constantino, Maria Benjumea e Francisco Marín.
Aguardamos.
Quando chegamos ao quinto andar, não há sinal de nenhum deles. Espera-se um pouco. Fazemos perguntas. Telefonamos. “Mas onde é que eles estão?” Dez minutos depois, a resposta: estavam entre andares, presos no elevador. Num evento onde se celebra a inovação e a tecnologia, são as mãos de Carlos Moedas que impedem que o programe atrase. O comissário consegue abrir as duas portas (como o Super Homem, brincaria mais tarde) e, assim, toda a gente sai. “Era preciso alguém fazer alguma coisa”, diverte-se.
Na verdade, seguiu o exemplo do seu antigo primeiro-ministro. Enquanto desce as escadas, recupera o episódio em que ficou preso num elevador, na Suécia, com Pedro Passos Coelho, o diretor do Grand Hotel de Estocolmo e dois membros do staff do anterior Governo PSD-CDS. Em Estocolmo, a situação foi salva (e as portas abertas) pelo primeiro-ministro.
Como a filha de Lord Byron definiu a economia digital no séc. XIX
Recuperados do susto, é hora de cumprir o programa. Quando Carlos Moedas subiu ao palco Eureka, pouco antes das 16h, disse às crianças na sala que o mais importante é não ter medo. “Inovar não é mais do que criar algo novo, que seja útil às pessoas. Mas, para fazê-lo, é preciso não ter medo. Há 30 anos, era preciso estudar muito e ter muitos anos de carreira, hoje não. A vossa geração tem uma liberdade enorme. A ciência já não é só dos cientistas, é sobretudo de quem tem paixão“, atirou.
Três filhos, 46 anos e uma carreira que passou pela banca de investimento (Goldman Sachs e Deutsche Bank) e pelo Governo (Carlos Moedas foi secretário de Estado Adjunto de Pedro Passos Coelho entre 2011 e 2014) antes de aterrar na Comissão Europeia. O homem que é responsável pelo maior programa-quadro reservado à investigação e à inovação da história, o Horizonte 2020, abre o palco principal da South Summit para dizer às centenas de jovens que o ouviam que nunca o mundo foi tão aberto como no período que antecedeu a Primeira Guerra Mundial — onde as moedas de ouro eram divisas quase universais e onde as pessoas circulavam sem passaporte.
Surpresa? Nem por isso. Carlos Moedas pega na história da matemática Ada Lovelace, filha do poeta Lord Byron, e conta como uma mulher, em pleno século XIX, conseguiu definir aquilo que hoje é a economia digital. Porque, há mais de 200 anos, Ada dizia-nos “que para ser um grande inovador na era digital é preciso estar nas interceções das disciplinas”. “E ela estava. Estava entre as artes e as ciências. E isso é o fundamental”, afirmou.
As interceções, o confronto, a diversidade, a autoconfiança. A receita passa por cada um encontrar o ponto de equilíbrio entre a arrogância e a ignorância. “Se não fores confiante, ficas no centro da tua disciplina e só trabalhas naquilo que sabes, porque tens medo de estar nas interceções”, diz. Outra vez o medo, esse requisito essencial à inovação, diz o homem cujo trabalho é quase sempre “eliminar barreiras” entre fronteiras, entre regulações. “É ter a quantia de dinheiro certa, no sítio certo, para que as pessoas possam utilizá-lo.”
Antes de se despedir do palco principal da South Summit, um minuto para citar Walter Isaacson, biógrafo de nomes como Benjamin Franklin, Albert Einstein ou Steve Jobs e que lançou recentemente o livro “Os Inovadores — uma biografia da revolução digital”.
“A próxima fase da revolução digital vai trazer uma fusão verdadeira da tecnologia com as indústrias criativas, como os media, a moda, a música, o entretenimento, a educação, a literatura e as artes. Esta inovação há-de vir de pessoas que sejam capazes de ligar beleza à engenharia, humanidade à tecnologia e a poesia aos processadores.”
“Não temos outra alternativa senão a inovação para crescer”
Entramos no carro, a Nave ficou para trás. Pergunto se corremos riscos com a euforia que se está a viver em Lisboa em torno do ecossistema de startups. Responde que não, que é uma euforia positiva, que é a euforia do futuro. “Passámos anos muito difíceis, em que muitos dos políticos e primeiros-ministros da Europa não olhavam para a inovação como a grande alavanca do crescimento. Neste momento, na Europa, não temos outra alternativa senão a inovação para crescer”, diz o homem que lembra o primeiro telemóvel que teve em 1994. “Era um daqueles Nokia que parecia um pedregulho com uma antena.”
Em 20 anos, o que muda? Muda a juventude “radicalmente”, diz. Moedas lembra-se de estar no Técnico e de não ver ninguém ao seu lado a construir empresas e que, entretanto, tudo isso mudou. O que falta? As interceções. Novamente as interceções. “O sistema educacional europeu tem evoluído, mas não no sentido de baixar barreiras entre disciplinas”, explica. É daí que vem o medo de falhar, o medo de apostar. São essas barreiras que têm de mudar. O medo, outra vez o medo.
Do medo europeu para o outro lado do Atlântico. Se nos EUA as universidades permitem uma maior permeabilidade entre disciplinas, a revolução é contrária à europeia. “Os EUA estão a fazer uma viagem do digital para o físico — com empresas como a Google ou a Amazon que hoje constroem satélites –, e nós, europeus, estamos a fazer uma viagem do físico para o digital. Este cruzamento tem de ser feito de uma maneira em que as nossas indústrias tradicionais consigam ir-se digitalizando”, diz.
Curva, contracurva, em plena hora de ponta, seguida de cinco minutos de paragem no hotel. Entretanto, o telefone não descansa entre chamadas. António Guterres venceu a última votação para secretário-geral da ONU e será aclamado no dia seguinte. “Parabéns a toda a diplomacia portuguesa”, diz num dos telefonemas. Mas é quando chega à entrada do hotel que atende a chamada mais demorada. “É o primeiro-ministro”, dizem os membros do staff. Dos 15 minutos em que esteve ao telefone com António Costa nem uma palavra. Voltamos a Lisboa e à euforia de Lisboa. E à Web Summit. E aos desafios que aí vêm.
[Veja o vídeo em que Carlos Moedas fala sobre a Web Summit]
E se falamos de Web Summit, voltamos à euforia. E às políticas. Sobre a Estratégia Nacional para o Empreendedorismo, o Startup Portugal, Carlos Moedas diz que é um programa cujas políticas vão todas na boa direção: “Sei que o João Vasconcelos é um homem com uma energia extraordinária e que ele consegue, realmente, aquilo que é preciso no empreendedorismo — manter o nível de energia alto à sua volta”, diz. Energia era precisamente o que começava a escassear, por volta das 19h, em Madrid.
“O mundo físico já não tem a importância que os políticos pensam”
Depois de uma breve passagem pelo hotel, a comitiva segue para um cocktail no palácio de Liria. Retomamos a Europa do digital, a mesma Europa que vive sob a ameaça do terrorismo, a crise dos refugiados, com o espanto do Brexit. Nem de propósito, os britânicos elegeram recentemente Carlos Moedas como a quarta pessoa mais influente nas universidades do país. O que sente quando sabe que tem este impacto na vida dos jovens? Ri, contando que soube da notícia pelos jornais. “Ninguém me telefonou a dizer nada.” As notícias não precisaram de porta-voz.
Ainda assim, tem uma palavra a dizer. “Acho que o que contribuiu aqui foi o orçamento da União Europeia para a ciência e inovação, porque é essencial para as universidades britânicas. É bom não esquecer que o Reino Unido, no último programa-quadro, recebeu mais de 7 mil milhões de euros. Por isso, não é a pessoa Carlos Moedas que é influente, mas a responsabilidade que tem um programa desta envergadura numa altura em que a relação que o Reino Unido vai ter com a Europa será diferente daquela que tivemos”, diz. Chegámos ao gancho para o Brexit.
– Que impacto é que o Brexit vai ter?
– O impacto só o veremos daqui a muitos anos, mas é negativo para a Europa e para o Reino Unido. Vivemos num mundo em que devíamos estar a baixar barreiras e vimos que os políticos querem fechar-se sobre si próprios. No fundo, defendem um mundo que não existe.
– Que mundo é esse?
– Os políticos pensam que o mundo ainda é feito de fronteiras físicas e de uma soberania que, no fundo, era a soberania de poder declarar a guerra, ter fronteiras, emitir moeda, cobrar impostos. E hoje vivemos numa soberania que não tem nada a ver com isto, que é uma soberania de conectividade. Quem é mais soberano é aquele que consegue criar maior conectividade entre os seus cidadãos e o mundo.
Carlos Moedas questiona o papel que o digital tem nesta soberania — os países que mais apostarem na conectividade entre pessoas serão os mais soberanos, diz, rematando que existe uma desconexão entre o mundo da geopolítica e da geoeconomia. “Essa dessincronização é que cria problemas hoje, os políticos pensam que o mundo físico ainda tem uma importância que, na verdade, já não tem. Quando deviam estar a apostar na inovação, na ciência, no digital, em saber como vamos estar conectados.”
Mas nem sempre a conexão e a inovação se estabelecem de ânimo leve. E Portugal viveu-o na pele com as manifestações dos taxistas contra a regulamentação de plataformas como a Uber e a Cabify. Pergunto ao comissário europeu que sempre defendeu abertamente a regulamentação destas plataformas o que achava da nova proposta do Governo. Na resposta, um pedido: “Um mundo justo para plataformas e taxistas”.
[Veja o vídeo em que Carlos Moedas fala sobre a regulação de plataformas como a Uber]
Como podemos reinventar as profissões do futuro?
— Por acaso não guardei esse telemóvel que tinha nos anos 90. Tenho pena, hoje seria uma relíquia.
São 8h15 da manhã em Madrid. Primeira paragem, um encontro com os principais reitores das universidades espanholas e portuguesas. Uma mesa redonda para discutir o estado no ensino na Europa. Segue-se o centro de Investigação Cardiovascular, cujo presidente é um dos conselheiros de Barack Obama. Apresentações, laboratórios, máquinas. “Hipocondríaco” assumido, brinca que é melhor nem pensar muito nas doenças do coração. Ou nos medicamentos.
A manhã vai a meio, mas o dia de Moedas em Madrid está quase no fim. Antes de apanhar o avião de regresso a Bruxelas, há uma visita ao Google Campus da capital espanhola. Respira-se criatividade entre os quatro andares do edifício que combina tecnologia e arte. Aqui não se fala da interceção entre as disciplinas. Ela já lá está, sentada numa mesa com cerca de 20 empreendedores (e a aspirante de mês e meio que acompanha a mãe). É cedo, mas a agenda é apertada. Ainda agora chegámos e já estamos com o relógio em contagem decrescente.
Carlos Moedas não estranha o ritmo. Viveu em França, nos EUA, em Londres. Hoje, vive com a família em Bruxelas. Conta que, de todas as redes sociais, aquela que os filhos mais gostam de utilizar é o Instagram. “Sei que se eles quiserem ver alguma coisa da minha vida tenho de publicá-la no Instagram, nem vale a pena pôr no Twitter“, diz, acrescentando que acha a rede de 140 caracteres mais interessante. “Mas já percebi que vai cair em desuso na nova geração.”
Filhos e novas gerações parece um bom arranque para falar de futuro. Como é que a tecnologia vai moldar o mundo daqui a uns anos? “Acho que a forma como nós imaginamos o futuro nunca é o futuro”, explica, quando em cima da mesa — neste caso, é do banco do carro — está em causa a inteligência artificial. Diz que não acredita que seja capaz de substituir a mente humana. “Mas também não acredito que consigamos ir mais longe sem a máquina. Elas vão ser complementares. Até que ponto conseguimos uma relação simbiótica entre a máquina e a pessoa?”, questiona.
Na ausência de respostas, exercícios de imaginação. Não há carros voadores tal como se imaginava no filme “Regresso ao Futuro”, de 1985, mas há uma internet que ninguém conseguia prever há 30 anos. E se o avanço tecnológico vai fazer com que se percam efetivamente 5 milhões de empregos, como estima o Fórum Económico Mundial, o comissário europeu com a pasta da inovação responde que não, apesar de o principal desafio estar precisamente no mercado de trabalho. Para Carlos Moedas, não são os países que têm o maior nível de escolaridade que vão sofrer com a globalização. Nem aqueles que estão na base da pirâmide.
“Penso que o grande desafio é saber como podemos reinventar as profissões do futuro, como é que a tecnologia vai poder inventar as novas profissões e que profissões são essas. Vão conseguir compensar a perda de profissões mais tradicionais? Isto vai acontecer sempre. Aconteceu em todos os saltos tecnológicos, desde a revolução industrial“, explica, não sem antes deixar nova crítica ao sistema de ensino europeu. “As nossas universidades continuam a preparar os nossos jovens para profissões que não vão existir no futuro”, diz, rindo, porque não quer fazer aquilo que tinha dito que não se devia fazer: prever o futuro.
Quando saímos do Google Campus madrileno, a conversa tem mais futuro do que passado. Mas tem também uma viagem relâmpago para fazer até ao terminal 4 do aeroporto de Madrid. António Guterres já é o novo secretário-geral da ONU, o Instagram continua a ser a rede social preferida dos filhos de Carlos Moedas e ele continua a preferir o Twitter. Como é que o jovem Marty McFly e o cientista Doc Emmet Brown não previram isto, no “Regresso ao Futuro”?