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Nem os movimentos de Jagger nem a pinta de Lennon nem a pose de Dylan. Simon nunca teve nada disso. Para ser justo, também não teve o génio deles, mas não lhe faltam propriamente grammys, obras na Biblioteca do Congresso e inclusões nas listas dos maiores de sempre da Time e da Rolling Stone e da Billboard. A verdade, porém, é que teve sempre aquele ar discreto de senhor da papelaria. Outras lendas dos anos 60 subiam ao palco como quem ia liderar a revolução, conquistar o mundo, fazer amor com tudo quanto mexesse num raio de dez quilómetros; Paul Simon aparecia sempre com aquele ar pacato de quem ia animar o serão do grupo de jovens cristãos (ainda que, na realidade, seja judeu). É, muito provavelmente, a estrela com o ar mais anónimo de sempre – e isso, por muito que não se queira ser superficial, não ajuda na altura de nos lembrarmos dos maiores. E, no entanto, escreveu algumas das canções que mais nos têm acompanhado a vida inteira. Nasceu a 13 de Outubro de 1941. É fazer as contas.

“The Sound of Silence”

Paul Simon e Art Garfunkel conheceram-se aos 11 anos quando participaram na mesma produção de “Alice no País das Maravilhas” no teatrinho da escola. Começaram a cantar juntos logo aos 13, mas, depois, pararam para ir fazer coisas sérias como ir para a universidade estudar literatura, no caso de Simon, e matemática, no de Garfunkel. Quando se voltaram a encontrar, aos 22 anos, Simon trazia esta canção no bolso, então com o título no plural: “The Sounds of Silence”. Sob o nome Tom & Jerry ou, ocasionalmente, Kane & Garr, o duo tocou-a ao vivo em clubes, até ao dia em que Tom Wilson estava na plateia. “The Sounds of Silence” foi justamente o tema que convenceu o produtor a levá-los para a Columbia e assinar contrato para um álbum de estreia… na condição de passarem a assinar com os verdadeiros nomes. Assim nasceu oficialmente o duo Simon & Garfunkel e se evitou uma batalha jurídica com um gato e um rato da banda desenhada que não ia ser bonita de se ver.

Só que o dito LP de estreia foi um fracasso. “Wednesday Morning 3 A.M.” não vendeu mais umas miseráveis três mil cópias, Simon achou que era melhor ir pregar para outra freguesia – Londres, este caso – e Garfunkel uma boa altura para ir ensinar à miudagem com quantos paus se faz uma raiz quadrada.

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Estavam assim os artistas postos em sossego quando, sem que nada o fizesse adivinhar, “The Sound of Silence” foi rodando nas madrugadas das rádios de Boston. Depois, foi descendo a Costa Leste até à Flórida, captando a atenção dos ouvintes mais noctívagos: os estudantes. Talvez tivesse qualquer coisa a ver com a letra, densa e simbólica (não era em vão a formação de Simon em Literatura – e, já agora, o ser filho de uma professora do ensino primário e de um professor universitário). Se algo de indiscutível prevalece nas suas canções até hoje, é a evidente qualidade dos poemas. O tema estava a tornar-se num pequeno fenómeno de culto. Tom Wilson volta então ao estúdio e, sem que os intérpretes originais fizessem a menor ideia, faz uma nova gravação do tema, com um overdub em que adiciona novos instrumentais executados pelos músicos com quem gravara “Like a Rolling Stone” para Bob Dylan: Al Gorgoni e Vinnie Bell nas guitarras, Bob Bushnell no baixo e Bobby Gregg na bateria. O processo não é fácil, já que se deparam com erros no tempo da gravação original, que acabam por solucionar parando num dterminado momento da canção para permitir que as vozes os apanhem e que há de escandalizar Simon da primeira vez que ouvir a gravação. Todavia, o que importa é que “The Sound of Silence” é relançado em Setembro de 1965, cerca de um ano depois do lançamento original, e agora sim dispara para as estrelas: primeiro lugar da Billboard, luta taco a taco no topo das vendas com o “We Can Work it Out” dos Beatles. Dos Beatles, Jesus Cristo.

Wilson, claro, estava louco e preparou logo um contrato para um segundo álbum. Simon apanhou o primeiro avião de regresso a Nova Iorque. Garfunkel, sentado no carro com o amigo a fumar substâncias ilegais, ouvia a rádio a passar a canção e a dizer os nomes deles e tinha a sensação de que deviam estar a falar de outras pessoas quaisquer. De uns tipos muito grandes e muito bem-sucedidos. Não podiam ser eles, eles que contiuavam a ser os mesmos de sempre, aqueles dois discretos rapazes de Newark e de Queens, que continuavam a não ter onde caírem mortos.

Surpreendentemente simples na estrutura, com apenas três, por vezes quatro, acordes, permanece enigmática e, portanto, aberta a múltiplas interpretações quanto ao sentido do poema. “The Sound of Silence” foi tocada até à exaustão, adaptada e glosada. Não há criatura que não se lembre dela quando alguém vai pôr uma música que não entra ou quando o silêncio, simplesmente, se abate sobre um grupo de indivíduos. Simon, que não é tipo de se levar muito a sério, nunca embarcou em grandes teorias sobre o assunto. Limitou-se a negar fosse acerca do assassinato de JFK porque, garante, a escreveu antes disso e que, acima de tudo, queria falar da incapacidade das pessoas se fazerem entender umas perante as outras, de comunicarem. Assim parece, com efeito.

And the people bowed and prayed
To the néon god they made
And the sign flashed out its warning

“Mrs. Robinson”

O sucesso demorou a chegar para “The Sound of Silence”, mas, quando veio, ficou difícil de se ir embora. Em 1967, Mike Nichols estava a terminar o em breve célebre “The Graduate”, com Dustin Hoffman e Anne Bancroft respectivamente nos papéis do jovem Benjamin Braddock e da senhora Robinson, a mulher mais velha que o vai seduzir, antes de o ver perder-se de amores pela filha Elaine (Katharine Ross). Durante a rodagem, Nichols usou “The Sound of Silence” para banda sonora de algumas cenas, apenas pensando, que depois, a substituiria por uma banda sonora escrita à medida. Só que depois já não conseguia imaginar as cenas sem a canção, de maneira que mandou comprar os direitos e a inseriu amplamente na versão final, prolongando, ainda mais o tempo de vida de “The Sound of Silence” nos tops.

Ao contrário do que era – e ainda é – habitual no cinema, “The Graduate” não teria assim uma canção original que alavancaria para o sucesso; estava alavancado logo à partida por uma canção de sucesso… Para mitigar a questão, que não agradava nem ao realizador nem aos músicos, Nichols encomendou-lhes mais duas canções originais para incluir na banda sonora do filme. Simon e Garfunkel apresentaram-lhe “Punky’s Dilemma” e “Overs”, mas, como Nichols não parecia nada convencido, Garfunkel disse a Simon: “Não lhe queres mostrar a ‘Mrs. Robinson’?” Perante a perplexidade do realizador – “Vocês têm uma canção chamada ‘Mrs. Robinson’ e não me diziam nada?” – Simon explicou-se: a canção não era para o filme. Era algo em que estavam a trabalhar e que ainda nem sequer tinha letra completa. Ia ser sobre uma mulher e, por causa do ritmo, tinha de ter um nome com três sílabas. Costumavam cantar “Mrs. Roosevelt”, mas, agora, por causa da personagem do filme, brincavam e chamavam-lhe “Mrs. Robinson”.

É claro que a coisa já não foi a mais lado nenhum e saltou direitinha para a fita. Como Simon ainda não tinha o poema completo, encheu a coisa com sons: “du, du-ru-ru du-du, du-ru-du du-du, du-ru-ru-ru”, mas até disso Nichols gostou. Para já não falar do “hey, hey, hey”, do “wow, wow, wow” e do “goo-goo-gajoob” (com que, neste caso, citavam “I am the Walrus”, cantiga da autoria de uns rapazes de quem já aqui falámos e que atendiam pelo nome de Beatles). Foi todo um bonito caminho que se abriu à pop e que conheceria alguns dos seus expoentes máximos no “Walk on the Wild Side” de Lou Reed, “Tom’s Diner” de Suzanne Veja, “125 Azul” dos Trovante ou, dum modo geral, na obra de Fernando Girão onde só de quando em vez a beleza da onomatopeia é interrompida pela abrupta intromissão de uma palavra.

A canção foi um sucesso instantâneo, subindo a número um de vendas noos Estados Unidos e entrando no top 10 de mais uma série de países. Também teve, ao longo dos anos, direito a muitas versões, de uma quase imediata pela voz – passe a redundância – de Frank Sinatra, à já bem mais tardia e rockeira dos Lemonheads. Se em “The Sound of Silence” já se pressentia, tornava-se agora bem mais nítido um traço de Paul Simon: o pessimismo que contrastava com a promessa dos amanhãs cantados por boa parte dos seus congéneres dos anos 60.

Refira-se, a terminar, que “Mrs. Robinson” não ficaria conhecida pela Mrs. Robinson propriamente dita, isto é, por Ann Bancroft, ou sequer pela associação a “The Graduate”, mas pela referência a Joe DiMaggio, grande figura do baseball, ícone do desportivismo e da conduta ética, ex-marido de Marilyn Monroe e homem que, durante 20 anos, mandou depositar diariamente um novo ramo de rosas vermelhas sobre o túmulo da actriz. DiMaggio teve oportunidade de agradecer a referência a Simon e Simon, muitos anos depois, tocaria uma outra vez a canção durante as cerimónias fúnebres no estádio dos Yankees.

Where have you gone, Joe DiMaggio?
Our nation turns its lonely eyes to you

“The Boxer”

Se “Mrs. Robinson” foi o delírio dos du-ru-rus e do “ei-ei-eis”, “The Boxer” foi a loucura dos “lalalás”. Sim, os “lalalás”. Está por escrever o seu papel na salvação de muitas noites em concertos e discotecas. O “lalalá” salva vidas, desinibe, solta, cura, junta-nos à multidão, leva ao transe, à ascese, fusão, sortilégio dessa coisa da música para as massas. “The Boxer” é, certamente, um dos “lalalás” mais épicos da história dos “lalalás”. E, mais uma vez, a onomatopeia só lá estava a preencher o vazio enquanto o poeta ainda não sabia o que colocar e lá ficou, por direito próprio, segundo uma espécie de usocapião da melodia.

Parece pouco para alguém que defendemos que era melhor poeta do que os outros? Talvez. A verdade é que, ao redor dos eieieis e dos lalalás, estavam quase sempre grandes poemas. E que, no caso concreto de “The Boxer”, fica a distinta sensação de que o poeta simplesmente acusou a pressão de não conseguir escrever melhores versos do que os restantes para uma zona da canção, o refrão, que, estupidamente, parece sempre exigir melhores versos do que os restantes. Ah! Vale a pena acrescentar: muita gente pensou que o “lalalá” fosse, na verdade, um “lie-la-lie” escondido. Uma acusação de mentira, de fraude, que alguns até quiseram ver como um ataque a Bob Dylan. Simon, que, como já dissemos, não se levava muito a sério, disse que aquilo era mesmo só um lalalá. Quanto a Dylan, deve ter ficado tão ofendido que cantou ele próprio a música em diversas ocasiões.

“The Boxer” foi o single de avanço do quinto e último álbum com Garfunkel. Saiu na primavera de 1969 e não falava do boxer-short nem do boxer-enquanto-cachorro, mas dum pugilista que, apesar de tudo, continua a lutar, imagem não assim tão idealizada dum poema realista e assumidamente autobiográfico, em que um homem arrasta a tristeza e a solidão pelos becos de Nova Iorque.

No, it isn’t strange
After changes upon changes
We are more or less the same

“Bridge Over Troubled Water”

Vejamos: enquanto todos os outros tipos estavam a fazer capas de discos cheias de estilo, Art Garfunkel e o metro e sessenta de Paul Simon apresentavam-se no que pareciam fotos de pai e filho num passeio de domingo. Não – corrigindo. Pareciam as fotos de um homem e do filho da namorada (a quem tinha de aturar porque… enfim, por causa das coisas) – e a capa de Bridge Over Troubled Water é disso um belíssimo exemplo. À luz de hoje, tipo que olhe para aquilo distraído pensa que é uma foto do Octávio Machado em jovem com aquele senhor da Logoplaste. O que é que eles estariam a fazer juntos numa foto dos anos 60/70? Não fazemos a menor ideia. Isso são lá as vidas das pessoas.

“Bridge Over Troubled Water”, tema-título do quinto e último álbum da dupla, é erradamente percepcionado como uma canção de Garfunkel. Na verdade, Simon foi sempre o compositor de quase toda a obra da banda; aqui, entendeu simplesmente que a canção funcionaria melhor com Garfunkel a fazer os solos. O próprio Garfunkel, na verdade, não se sentia bem e queria que fosse Simon a cantá-los, mas o amigo insistiria. Quando se zangaram e separaram, pouco tempo mais tarde, Simon arrependeu-se – confessadamente – mas o que estava feito estava feito. E bem feito.

De inspiração muito gospel, tocada ao piano e equilibrada no fino fio da voz de Art Garfunkel, “Bridge Over Troubled Water” tornou-se a canção mais bem-sucedida da história da dupla, vendendo mais de um milhão de cópias no Estados Unidos e de seis milhões em todo o mundo. Foi o terceiro e último número um americano para a dupla, varreu os Grammys em 1971 com cinco prémios, integrou múltiplas listas para as melhores canções de sempre e transformou-se num hino interpretado ao longo dos anos por mais de 50 artistas, incluindo Elvis Presley, Johnny Cash ou Aretha Franklin.

Curiosamente, é um dos poemas mais simples de Simon – na verdade, a roçar o banal. Inspirava-se nos versos de uma canção de 1958 chamada “Mary Don’t You Weep”, que Claude Jeter tocava com os Swan Silvertones: “I’ll be your bridge over deep water / if you trust me”. Reconhecendo-o, Simon pagou, ao longo dos anos, uma determina quantia que acordou com Jeter como uma espécie de direitos de autor. Esteve envolvida numa polémica a propósito de um verso em que alguns viam uma referência a um drogado hardcore dialogando com a sua seringa – “Sail on, silvergirl” – e que era, na verdade, uma dedicatória de Simon à sua mulher de então, Peggy, que descobrira dias antes os primeiros cabelos brancos. No essencial, porém, era a canção de alguém que estava lá para o que desse e viesse. O amigo de que Simon precisava no tempo de “The Boxer”.

I’ll take your part
When darkness comes
And pain is all around you
Like a bridge over troubled water

“50 Ways To Leave Your Lover”

Paul Simon faz 75 anos e continua a trabalhar, lançando discos, fazendo concertos e até, de quando em vez, voltando a umas reuniões com Art Garfunkel, mas as suas grandes canções estão todas escritas há muitos anos. Na década de 80, “Graceland”, com uma inspiração muito afro-sabe-se-lá-porquê-happy que foi moda então, recolheu, de novo, os prémios e a aclamação da crítica e do público. A canção que escolhemos para fechar este top5 das essenciais, porém, não vem daí, vem de antes e foi, na verdade, o maior sucesso que Simon conheceu a solo.

“50 Ways to Live Your Lover” é mais útil à nossa vida. Saiu no Natal de 1975 como segundo single de Still Crazy After All These Years. Vendeu mais de um milhão de cópias e, volta e meia, aparece numa nova versão pela mão de gente tão díspar com Brad Mehldau, Eminem ou Miley Cyrus. Simon escreveu-a já depois da separação de Peggy “Silvergirl” Harper e ainda alguns anos antes do breve casamento com Carrie Princesa Leia Fischer. É o inesperado diálogo entre um homem e a amante, a cómica lista de conselhos que ela lhe dá acerca de como se libertar da legítima.

Era Simon definitivamente mais velho, quando já não queria mudar o mundo com o seu pessimismo. Adaptara-se, rendera-se, aceitara. Mais leve, certamente mais cínico, mais maduro, mais irónico, provavelmente mais feliz. Já não queria converter-nos com a sua descrença nem que a sua descrença parecesse séria o bastante para que alguém o convertesse a ele. Era já só um tipo a viver. Até hoje.

Parabéns, Mr. Simon. Entre “lalalás” e poemas, cá vamos levando a vida.

“The problem is all inside your head”, she said to me
The answer is easy if you take it logically
I’d like to help you in your struggle to be free
There must be
fifty ways to leave your lover

Alexandre Borges é escritor e guionista. Assinou os documentários “A Arte no Tempo da Sida” e “O Capitão Desconhecido”. É autor do romance “Todas as Viúvas de Lisboa” (Quetzal).