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A Última Ceia de Herman faz 20 anos. Já podem rir?

Passadas duas décadas sobre a exibição de um dos sketchs mais polémicos de Herman José, Nuno Costa Santos foi descobrir como está a relação entre o humor e a religião.

“O provedor de justiça abriu um inquérito ao último Herman Zap”. Foi assim que em 1996 José Rodrigues dos Santos abriu as notícias de um telejornal. O fundamento do gesto veio logo a seguir: “Tudo porque dois cidadãos anónimos apresentaram queixa, um deles ainda antes do programa Parabéns ir para o ar.” Explica-se depois que a Provedoria esteve a visionar o programa que inclui “uma sátira” que a igreja considerou como sendo “uma ofensa gratuita”.

A sátira em causa chamava-se “A Última Ceia” e além de parodiar, tornando-a mundana, a derradeira refeição de Jesus e dos seus apóstolos satirizava o tipo de reportagem praticada pela SIC numa fase inicial das suas emissões. Maria Rueff fazia de repórter que começa por aludir ao excessivo entusiasmo dos comensais e à sua escassa superstição. “É que não sei se já repararam mas são treze à mesa.”

[veja o vídeo com a notícia da RTP]

Outro tempo. Já havia canais privados mas ainda não existia televisão por cabo. Nem redes sociais. A concorrência era menor. A circunstância de ter sido a televisão pública a transmitir o programa foi decisiva no escândalo que se gerou num país onde a voz da igreja se fazia ouvir mais alto do que acontece hoje em território de católicos costumes. Ao contrário do que aconteceu com a controvérsia ocorrida em 1988 a propósito da entrevista histórica com Santa Isabel em “Humor de Perdição” (ficaram por ir para o ar as duas últimas entrevistas por decisão do Conselho de Gerência), a direcção de Joaquim Furtado e Joaquim Vieira, no caso de “A Última Ceia”, não se amedrontou com as reacções e deixou o sketch ser emitido.

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Os organismos da Igreja Católica continuam a posicionar-se em casos semelhantes. O cartaz do Bloco de Esquerda em defesa da adopção por casais homossexuais com a imagem de Jesus e a mensagem “Jesus também tinha dois pais” foi considerado pelo porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa uma “afronta aos crentes”. Não se imagina o que diria a mesma Conferência se um dos seus membros fosse assistir ao espectáculo “God”, interpretado por Joaquim Monchique em Lisboa, a terceira cidade do mundo a acolher a representação desta peça.

O texto, adaptado para português com a verve de João Quadros, baseia-se naquilo que o humorista David Javerbaum, assumindo o papel divino, foi escrevendo na sua conta do Twitter. Tendo estreado na Broadway muito recentemente, apresenta uma corrente imparável de piadas religiosamente incorrectas – que apresentam Deus como sendo uma figura cheia de caprichos, maldades e humores. Atalhemos: como a pior invenção da humanidade.

Voltemos a “A Última Ceia”, case study de um país onde, apesar de terem passado 22 anos do 25 de Abril, estava longe de ser plural e democrático. Herman José, na altura em que o sketch foi emitido, ainda estava na casa dos 30 anos e com uma outra energia para incomodar.

“Não há nada mais risível do que ter certezas absolutas sobre determinado tema mas hoje costumo dizer que o meu colete anti-balas já não tem mais tecido”
Herman José

Não sente agora a pulsão de ser um George Carlin, autor do famoso número intitulado “Religion is Bullshit”. Nem, arrisque-se, de um Ricky Gervais, autor de um popular stand-up sobre religião. Mantém uma relação de respeito com quem ainda arrisca e se cansa, sabendo que pode criar problemas, como Rui Sinel de Cordes e João Quadros. “Eles mantêm a sua irreverência e isso é admirável e importante.” Conclui: “Não sou um tipo do conflito e é muito cansativo entrar nessas guerras.” Já não está para isso.

[“Religion is Bullshit”, de George Carlin]

https://www.youtube.com/watch?v=6RT6rL2UroE

Herman assume que arrisca mais nos espectáculos ao vivo do que na televisão. “Aí actuo mais ao gosto do ambiente”. Se houver espaço para o risco, arrisca. Em caso contrário é escusado provocar: “Se for fazer humor para uma empresa na qual 90% da administração é da Opus Dei e onde está presente o bispo de Viseu é provável que não me apeteça incomodá-los.”

As reservas

Pouca gente se lembrará mas o presidente da República eleito, Marcelo Rebelo de Sousa, conhecido pelo seu sentido de humor, durante uma visita ao cardeal patriarca de Lisboa na altura em que o sketch “A Última Ceia” foi exibido, reagiu com fortes reservas perante o momento de humor: “Vejo com preocupação que num canal de serviço público se encontrem mensagens que podem ser consideradas ofensivas de valores partilhados pela maioria dos portugueses e também ofensivas de instituições particularmente relevantes como a Igreja Católica.” Herman acha que o Marcelo desse tempo não teria a mesma reacção hoje (“ele tem muito de Mário Soares, um grande poder de encaixe”) e atribui o comentário ao facto de estar muito pressionado. “Tinha de dizer qualquer coisa.” E disse-o, sem hesitações, dirigindo-se ao jornalista e, notoriamente, a uma vasta plateia de católicos.

Entrevista a Herman José

Herman José

Nuno Artur Silva, ex-director das Produções Fictícias e actual administrador da RTP, recorda com pormenor a história desse sketch. A ideia, sendo dele, foi desenvolvida em conjunto com Nuno Markl e tinha como objectivo principal satirizar a forma como os repórteres da SIC olhavam para a História. O texto original, representado na Rádio Comercial, tinha mais graça e força do que o que passou depois na televisão. Os apóstolos, após a ceia, seguiam para uma discoteca. Por serem 12 homens, desacompanhados de mulheres, não conseguiram entrar.

[Ricky Gervais sobre a Bíblia e Deus]

Quando transportado para a televisão o texto foi suavizado por Herman. A polémica foi originada pela promo, capaz de chocar as almas religiosas mais sensíveis. “Apesar de toda a contestação, o sketch não foi censurado.” Mas Herman José pagou um preço: perdeu uma série de contratos comerciais. 20 anos não são suficientes para anular os danos sofridos por quem se arrisca a tocar com humor no sagrado. “Ainda se paga um preço em Portugal por praticar coisas destas.”

Mais tarde, no programa Herman Enciclopédia, surgiu o famoso personagem Diácono Remédios que, em nome dos bons costumes, interrompia os quadros para impor ordem moral nas situações criadas, acabando por resvalar no discurso para obscenidades muitas. É de lembrar que o bordão “Não havia necessidade” foi inspirado naquilo que a mãe de Herman lhe dizia quando o via pisar o risco daquilo que considerava ser a decência.

[Aqui um sketch com o Diácono Remédios]

No caso do sketch “A Última Ceia”, até a Rádio Renascença tomou posição, protestando sem hesitações. Hoje é assim? O humorista Salvador Martinha, colaborador de uma rádio do grupo, RFM, não sente constrangimentos quando arrisca invadir temas religiosos. Martinha assume-se como estando “entre o ateu e o católico amador”: só vai à igreja em casamentos e baptizados. Sente-se confortável com a atitude dos responsáveis pela rádio em relação ao que faz.

“O facto de esta rádio contratar um humorista e de o deixar muitas vezes esticar a corda faz-me pensar que parte da igreja está virada para o futuro. Não consigo aceitar que qualquer religião não tenha sentido de humor.”
Salvador Martinha

Lembra que “a religião é um alvo de longa data do humor”, existindo, na sua opinião, novos temas que originam muito mais polémica.

Sobre esta questão, José Tolentino Mendonça, padre e poeta, tem uma posição oposta àquela que dominava o ambiente dos mosteiros medievais recriado por Umberto Eco em “O Nome da Rosa” (reeditado em 2009 pela Difel). O seu pensamento nada tem a ver com o daqueles que escondiam um suposto livro de Aristóteles sobre o riso, praticando uma série de crimes em nome da intolerância para com quem podia olhar para Deus com um ângulo cómico.

José Tolentino Mendonça, padre e poeta

José Tolentino Mendonça, padre e poeta

Para Tolentino Mendonça, “Deus tem sentido de humor, ao contrário dos crentes, muitas vezes”. Tolentino pensa que há um caminho a percorrer de parte a parte. Não se revê no muito que se vai produzindo no humor sobre religião, em particular a católica. “O humor sobre religião é, por vezes, muito básico, sem grande inteligência.” E, a seu ver, isso torna-o mais difícil de aceitar. Da parte dos crentes existe também, defende, “uma dificuldade em rir de si próprios”. Está convencido de que, quando se aprofunda a fé, o riso pode ser “purificador” e “saudável”.

Em “Nenhum Caminho Será Longo” (Paulinas, 2013), defende que “talvez tenhamos de levar mais a sério o verso brincado que o Salmo 2 nos segreda: ‘O que habita nos Céus, sorri’”. Nessa linha está a “maravilhosa imagem do Livro do Provérbios (Prov 8,30-31)” que revela assim a “Sabedoria Divina”: “A Sabedoria Divina está constantemente a brincar: a brincar na terra e a alegrar-se com os homens.”

Sabe-se que os constrangimentos do humor não estão apenas relacionados com a religião. Têm a ver com bairrismo, xenofobia e talvez sobretudo com o fundamentalismo futebolístico, equiparável ao fundamentalismo religioso. Nisto das religiões, convém não esquecer a religião do futebol, com cada vez mais adeptos por estas paragens. Filipe Homem Fonseca (autor, juntamente com Mário Botequilha, dos guiões da rubrica da TSF “Não é Mau”) chama a atenção para esse outro território sagrado: o futebol. “O grau de irracionalidade é tanta que a polémica pode ocorrer a qualquer instante”. Nuno Artur Silva reconhece que os maiores problemas que as Produções Fictícias tiveram surgiram quando se tocou na “fé futebolística”. Depois de algumas rábulas sobre determinado clube, chegou a haver telefonemas para a empresa e ameaças reais.

É preciso nunca esquecer que a vitalidade da civilização humana promove a convivência entre a religião e o riso”, diz Nuno Artur Silva.

Considera que, apesar de tudo, é bom canalizar os sentimentos guerreiros para o desporto. “É melhor que a violência se jogue num campo do que na violência doméstica, por exemplo.” Voltando à questão religiosa, Nuno Artur Silva reconhece o direito à ofensa tal com o direito à liberdade do humorista. Sublinha a sua reflexão sobre a “comédia religiosa” com esta pista: “Fazer humor é da área do profano”. Regressando à sua defesa de uma liberdade sem restrições nesta área ainda melindrosa em Portugal: “É preciso nunca esquecer que a vitalidade da civilização humana promove a convivência entre a religião e o riso”. Ocorre-lhe a propósito evocar um livro de António Alçada Baptista, “O Riso de Deus” (reeditado em 2009 pela Presença).

Fora do país

Não é só em Portugal que existem reacções das instituições católicas às investidas humorísticas sobre religião. Também no Brasil, país que associamos a uma maior liberdade de costumes, o humorista Gregorio Duviver alude, numa crónica do livro editado em Portugal no ano passado pela Tinta da China, à reacção no Twitter do Cardeal arcepisbo ao especial de Natal da Porta dos Fundos (classificou-o de “péssimo mau gosto”). Traz à conversa os nomes de Galileu e Giordano Bruno, queimado vivo pelas suas heresias. Um dos autores do sketch “A Ceia” ironiza sobre o assunto noutro texto, “A Religião dos Outros”: “Tem que rir das religiões menores, as religiões de preto, de judeu. Não tem graça rir da fé da maioria do povo brasileiro”. E ainda avança: “Acho que é isso: quando eu digo religião, eu tô falando a religião da maioria. Aí é que perde a graça.”

[veja o sketch “Ceia”, dos brasileiros Porta dos Fundos]

A situação em Espanha é comentada pelo autor Andrés Barba, considerado pela revista Granta um dos melhores da sua geração em língua espanhola e escritor de um livro editado em Portugal pela Elsinore, “Na Presença de um Palhaço”. Barba lançou recentemente um ensaio sobre os limites do humor. “Espanha tem sido nos últimos anos um país ambivalente”, diz. Por um lado pode afirmar-se que durante a última década a Igreja Católica tem suportado bastante bem – ou de uma forma resignada – o humor sobre o Papa, a pedofilia, os preservativos. Mas há um contraponto: a população católica espanhola tem reagido com violência em situações como aquela que aconteceu a propósito do cartaz do Bloco de Esquerda: na designação da palavra “família” para classificar as uniões homossexuais.

Barba acha que o aparecimento de um líder menos ortodoxo como o Papa Francisco fez relaxar o ambiente. Apesar de o mesmo ter dito, a propósito do caso “Charlie Hebdo”, que ninguém pode estranhar que se responda com violência quando se ridiculariza as religiões dos outros. Filipe Homem Fonseca também nomeia o temperamento do líder mundial dos católicos como causa para o facto de a Igreja Católica estar mais afastada do foco do humor. “Ainda me lembro de quando o cartoonista António desenhou o Papa João Paulo II com um preservativo no nariz. Agora parece haver uma adequação mais fundamentada do catolicismo ao mundo actual.”

Continuam no entanto a existir pontos que merecem ser alvo de sátira: “As questões de pedofilia na Igreja, essas, são, e continuarão a ser enquanto houver notícia de novos casos, um campo onde a crítica, por via não só do humor, se mantém e deverá manter”. O fanatismo das seitas e o radicalismo de outras religiões são agora, segundo o coautor de “Não é Mau” e um dos elementos da equipa do histórico Contra-Informação, áreas com mais matéria-prima. O objectivo de Homem Fonseca nunca foi o de atacar o catolicismo em si. “Não vejo sentido nem mérito na piada feita, por exemplo, aos sacramentos católicos, de uma maneira geral, mas sim quando o que está em causa são ideias feitas de crenças que resultam em imposições que afectam directamente a vida e a liberdade dos indivíduos.” Os devotos e aqueles que não o são.

Nuno Costa Santos, 41 anos, escreveu livros como “Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco”, “Às Vezes é um Insecto que Faz Disparar o Alarme” e “Vou Emigrar para o Meu País”. É autor de, entre outros trabalhos audiovisuais, “Ruy Belo, Era Uma Vez” e de várias peças de teatro. Recentemente estreou-se nos romances com “Céu Nublado com Boas Abertas”.

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