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Verdade ou Consequências? Nestas eleições, falta uma e temem-se as outras

Mais de metade dos americanos não confiam em Clinton ou Trump. E o que acham os habitantes de Truth or Consequences, no New Mexico? Uns queixam-se da falta de verdade, outros temem as consequências.

Reportagem em Truth or Consequences, New Mexico (EUA)

Porque é que uma terra haveria de chamar-se Hot Springs, por causa das suas termas, quando na verdade pode chamar-se Truth or Consequences? Ou, traduzido para português, para quê ser-se Nascentes Quentes quando há hipótese de se dizer que vive no bem centro de Verdade ou Consequências?

Foi essa a pergunta que muitos nesta vila de 6.400 habitantes, perdida algures no sul do New Mexico, colocaram nos idos de 1949. Foi já no final daquele ano que Ralph Edwards, o apresentador do programa de rádio “Truth Or Consequences”, lançou a proposta a todo o país: todas as terras que quisessem mudar o seu nome para Truth Or Consequences podiam mandar a sua proposta para a produção do programa, que depois faria a sua escolha.

Em troca, a cidade escolhida seria presenteada todos os anos com uma festa de arromba na data de aniversário do programa. Assim, a 1 de abril de todos os anos, uma cidade estaria em permanente festa. Enquanto isso, o país inteiro, incluindo as 41 Springfield, as 25 Madison ou as 22 Greenville dos EUA, estariam sentadas no sofá a assistir em direto e a maldizer as suas vidas monótonas e aborrecidas.

Em 1950, a vila que então se chamava Hot Springs foi a votos para dizer se queria ou não mudar o nome para Truth or Consequences. Uma esmagadora maioria de 1 294 pessoas concordaram com a sugestão e apenas 295 quiseram manter o nome.

Reza a lenda que a equipa de produção viu a carta de candidatura de Hot Springs, um produtor partiu logo para o local para avaliá-lo. Quando regressou, contou a Ralph Edwards como milhares de pessoas iam até às termas daquela vila para tratarem algumas das suas maleitas. Para o apresentador, que já tinha ajudado a angariar milhões de dólares para entregar a hospitais ou ao estudo de doenças cardíacos ou cancro, a escolha ficou logo feita. “Tal como o programa, a cidade é um local para recreação e tem o desejo e os meios para ajudar o próximo”, disse.

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A partir daí, só faltava a aprovação dos habitantes. Fez-se um referendo a 31 de março de 1950 para saber quantos aceitavam que Hot Springs passasse a ser Truth or Consequences. A votação foi clara: uns meros 295 opuseram-se, ao passo que uma esmagadora maioria de 1.294 disseram “sim”.

Mais de 66 anos depois, há uma outra votação que toma conta das conversas um pouco por todo o lado e pela qual todos suspiram de cansaço: as eleições presidenciais de 8 de novembro, terça-feira, disputadas entre o republicano Donald Trump e a democrata Hillary Clinton. Umas eleições que não têm sido particularmente um hino à verdade — uma sondagem recente da ABC diz que apenas 46% dos americanos confiam em Donald Trump e só 38% acreditam em Hillary Clinton — mas que, certamente, terão consequências significativas para os EUA e para o resto do mundo.

Truth or Consequences é uma terra de passagem. Duas horas para norte, fica Albuquerque, a maior cidade do New Mexico. A outras tantas para sul, está El Paso, Texas, de onde até nos dias em que a ventania levanta as areias do deserto de Chihuahua dá para ver sem qualquer esforço Ciudad Juarez, no México. Foi precisamente por estar no meio deste vai-vem que Ryan, de 61 anos, ganhou uma certeza à cerca destas eleições: “É tudo uma mentira”.

Ryan, que tem 61 anos e recusa ser fotografado, trabalha no Windshield Doctor, uma oficina especializada em pára-brisas dos carros. Além disso, também vende gasolina para quem precisar dela a meio da viagem. Ao longo das últimas semanas, Ryan tem feito um esforço para ouvir as conversas alheias de quem passa. “Eu estou aqui, metido na minha vida e no meu trabalho, mas depois eles falam das eleições, Trump para aqui, Hillary para ali… É aí que as minhas antenas… Pim!”, diz, erguendo o indicador junto à orelha direita.

Mas, afinal, “é tudo uma mentira” porquê? “Porque as eleições já estão feitas”, responde. Feitas para quem? “O que eles dizem é que o Trump já lá está, que isso já foi tudo decidido pelo Congresso”, responde. Por isso, assegura Ryan, Donald Trump não precisa de se preocupar com as eleições desta terça-feira, que ele tem dito várias vezes estarem “arranjadas”. “Ele já lá está, as eleições vão ser só fachada”, assegura.

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O patrão de Randy é apoiante de Donald Trump e demonstra-o com um jipe militar à entrada de Truth or Consequences.

Mesmo à entrada da oficina do Windshield Doctor pode ver-se uma jipe camuflada, quase da altura de um camião. É do patrão de Ryan, que, ao contrário do seu empregado, é um homem que não tem problemas em dizer em quem vai votar. Mesmo ao meio do jipe destaca-se um cartaz com as letras TRUMP e ao lado outro, para um candidato local — em dia de eleições presidenciais, os EUA também vão votar em referendos locais e para escolher os seus representantes autárquicos. E logo em baixo, pode ver-se uma cartolina onde está escrito à mão: “Qualquer pessoa apanhada a destruir propriedade privada será processado!”.

O aviso não está lá por acaso. Pelas contas de Ryan, já roubaram três cartazes de Donald Trump. “Ainda não sabemos quem foi”, diz ao Observador. “Mas isso, um dia, vai mudar. E quando o meu patrão descobrir quem foi, vai esfolá-lo”, diz, arregalando os olhos perante as consequências em vista.

Aqui, os porcos voam

É precisamente por esta animosidade que parece estar no ADN destas eleições que Kay Thomson, de 57 anos, se recusa a falar de política com os seus clientes.

Kay é dona de uma loja de artigos em segunda mão e vintage. Vende roupa, tabuletas e anúncios, discos e livros usados e tem uma secção inteira de doces do antigamente — de onde destaca os cigarros de chocolate. Abriu portas há três anos, depois de ter sonhado muito tempo com aquele dia. Em tempos, dizia que só teria uma loja “quando os porcos voarem”. Mas abriu-a. Por isso, chamou-a de “When Pigs Fly”. Lá dentro, não se fala de política, nem que a vaca tussa — a não ser, claro, que apareça um jornalista vindo do outro lado do mundo.

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Kay Thomson vai votar em Hillary Clinton, mas, se pudesse escolher, a primeira mulher Presidente dos EUA seria a ex-apresentadora Oprah Winfrey.

“Está fora de questão eu alguma vez eu dizer aos meus clientes em quem é que eu voto” sublinha. “Não posso dizer que não gosto do Donald Trump, porque, sinceramente, isto é um sítio muito pequeno e acho que os ânimos estão demasiado exaltados. Há gente que pode ficar ofendida e a minha loja não pode ser um lugar para isso”.

Mas, já que não está nenhum cliente à vista, Kay abre o livro e começa a falar de Donald Trump. “Eu não aguento aquele homem, é impossível pensar que um homem que tem preconceitos contra meio mundo alguma vez possa vir a ser Presidente dos EUA”, queixa-se. “Não respeita as mulheres, não respeita os latinos, não respeita os muçulmanos… Ele é tóxico. Eu nem quero imaginar as consequências de ter um homem daqueles como Presidente.”

Kay vai votar em Hillary Clinton, mas avisa logo que não gosta dela. “Ela é mentirosa, há demasiados mistérios em torno dela, ninguém sabe muito bem o que esperar”, diz. “Mas olhe para o outro tipo! Assim a escolha fica mais fácil”, desculpa-se. Ainda assim, para esta mulher que apoiou Bernie Sanders nas primárias do Partido Democrata, votar em Hillary Clinton deixa-lhe um sabor amargo na boca. “Eu queria ter uma mulher Presidente, mas não queria que esta fosse a primeira. Mas não tenho outra escolha!”, diz. E depois apresenta aquela que, para si, poderia ser uma “excelente” primeira mulher Presidente: “A Oprah Winfrey. Ela faria um excelente trabalho”. Talvez um dia isso aconteça, quando os porcos voarem.

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Depois de vários anos a sonhar — e a dizer que era impossível —, Kay Thomson abriu a sua loja de artigos usados e vintage.

Acima de tudo, Kay está farta das eleições. “Isto tem sido um pesadelo para os americanos. Nós sentimos que o resto do mundo está a rebolar no chão a rir do que se está a passar aqui”, diz. Desde que tem idade para votar, Kay já escolheu candidatos dos dois lados — duas vezes em Jimmy Carter e desde 1984 que vota sem exceção no candidato vencedor, começando em Ronald Reagan e acabando em Barack Obama. Gosta de política, segue-a avidamente mas, agora, é um longo suspiro que apresenta quando olha para o calendário e aponta para o dia 8 de novembro. “Está tão perto, mas tão longe…”, diz, com a voz cansada.

“Mentiras! Mentiras! Mentiras!”

Gary Lane, reformado de 67 anos, até pode ter um olhar afável, um sorriso fácil e uma cadela caniche no colo. Mas quando fala de Hillary Clinton, a voz sobe-lhe de uma maneira que poucos poderiam esperar: “Ela não diz a verdade sobre nada!”. Shadow, a cadela que é da sua mulher mas que hoje é por ele passeada, até salta para fora do colo. “Mentiras! Mentiras! Mentiras!”

Gary diz que foi “criado como democrata”, da mesma maneira que alguém diz que foi “criado como católico”. “Os meus pais eram democratas e eles sempre me fizeram crer que o Partido Democrata era a melhor escolha para as pessoas como nós, que podem não ter ido à universidade mas que são trabalhadoras”, explica. E ainda hoje diz que é democrata. “Sou, sou democrata, sim senhor.” Mas quando fala da candidata do seu partido, não encontra nada de simpático para dizer.

“Eu nem sei como é que ela consegue dormir à noite. Ora é com os e-mails, ora é bom Benghazi, ora é com isto, ora é com aquilo… Ela está a sempre a mentir”
Gary Lane, reformado de 67 anos, sobre Hillary Clinton

“Eu nem sei como é que ela consegue dormir à noite”, diz. “Ora é com os e-mails, ora é bom Benghazi, ora é com isto, ora é com aquilo… Ela está a sempre a mentir”, acrescenta. Gary Lane gesticula muito com a mão direita, ao mesmo tempo que mantém a segunda firme na trela da cadela da mulher, não vá ela fugir.

“Ela até já disse que quer as fronteiras abertas”, diz, referindo-se a um discurso que Hillary Clinton fez num evento privado de um banco brasileiro, onde disse que o seu “sonho” eram fronteiras abertas. Naquele contexto, a democrata falava no contexto de trocas comerciais e não de imigração. Porém, esta afirmação tem criticada por vários republicanos, que a descontextualizam. “Eu vejo a Fox News de vez em quando e eles dão-lhe cá de uma maneira…”, diz Gary. Ao seu lado, Gordon Gagne, de 60 anos, concorda. “Ó se dão!”, diz. “Não lhes escapa nada!”

Tanto um como o outro não votam há vários anos. Tantos que a memória não lhes chega para dizerem qual foram as últimas eleições em que votaram. “O mais provável é ficar em casa, só seria capaz de ir votar se fosse alguém de que eu gostasse muito, ou alguém que fosse muito importante”, justifica Gordon.

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Gary Lane e Gordon Gagne vivem em Truth or Consequences. Não votam há “vários anos” e ainda não sabem se o farão este ano.

A apenas três metros atrás do banco onde estão sentados, Gary e Gordon têm o restaurante El Faro, que parece ser consensualmente o melhor sítio para comer comida mexicana em Truth or Consequences. A pouco mais de 210 quilómetros para a frente, têm o México. E isso é algo que os dois aceitam — mas que também os preocupa. “Se a Hillary Clinton abre as fronteiras, como é que isto vai ser aqui?”, pergunta Gary. “Os políticos lá em Washington D.C. falam muito mas não sabem como as coisas são aqui.”

Uma dessas coisas é, explica Gary, a droga. “Há montes de droga aqui”, refere, varrendo o dedo em volta. “Eles vêm do México, passam tudo para cá e depois passam-nas a outras pessoas aqui em Truth or Consequences”, explica. “Depois, vão para todo o lado.” Gary conta isto com alguma tristeza, tendo em conta as notícias que teve da sua mulher. “Ela veio contar-me que ouviu por portas e travessas que o nosso neto anda metido na droga”, explica.

“Anda a fumar marijuana, o patife. É como o pai dele. Era um miúdo direitinho e agora deu nisto”, explica. O seu maior receio é que o neto siga o caminho do seu pai, que “anda a entrar e a sair da prisão há já 20 anos”, por posse de droga e violência doméstica. “Sabe-se lá o que vem a seguir? Começa com marijuana, depois experimenta outras coisas piores…”

“Se tivéssemos um muro na fronteira com o México cortava-se logo o mal pela raiz”, diz Gordon, o amigo do lado. Gary concorda a 100%.

"As coisas que ele diz fazem sentido. Faz sentido construir um muro, faz sentido obrigar o México a pagar por lee, faz sentido trazer os empregos de volta à América, faz sentido baixar os impostos às empresas."
Gary Lane, reformado de 67 anos, sobre Donald Trump

Donald Trump, diz Gary, “é o mal menor”. Na verdade, ele nem gosta do candidato republicano. “Ele é um palhacinho, às vezes parece mesmo um idiota. Fora isso, também não é nenhum anjo”, queixa-se. Depois começa a enumerar as coisas de que gosta em Donald Trump. “Mas as coisas que ele diz fazem sentido. Faz sentido construir um muro, faz sentido obrigar o México a pagar por ele, faz sentido trazer os empregos de volta à América, faz sentido baixar os impostos às empresas…”, enumera.

E, do lado de Hillary Clinton, é difícil retirar esse mesmo sentido. “Ela nem fala destas coisas. Não fala de nós, não quer saber de nós para nada. E quando se lembra de falar das pessoas como nós, é tudo mentira”, queixa-se.

“Hillary Clinton é mentirosa.” Esta é a verdade de Gary. E, no final da conversa, choca de frente com a sua consequência: “Porra… Afinal de contas, agora sou republicano!”.

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