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O referendo em Itália era para decidir o quê?

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Resumidamente, e como o próprio título no boletim de voto indicava, o referendo deste domingo era um “Referendo Constitucional”.

A votação de 4 de dezembro foi a última de várias fases de uma caminhada que Matteo Renzi iniciou logo no início do seu mandato como primeiro-ministro de Itália, em fevereiro de 2014. Com o objetivo de evitar um novo impasse político como aquele que se verificou após as eleições de fevereiro de 2013 (aquém de uma maioria, o candidato Pier Luigi Bersani não conseguiu formar qualquer acordo de Governo, que só foi conseguido cerca de dois meses mais tarde por Enrico Letta) e assim facilitar o processo governativo, Matteo Renzi apresentou no seu segundo mês um conjunto de medidas para aprovação no parlamento.

A base do seu plano era o fim do sistema bi-cameralista italiano, em que a Câmara dos Deputados e o Senado têm virtualmente o mesmo poder. A chave da estratégia de Matteo Renzi era a diminuição do tamanho do Senado, que passaria de 315 para 100 lugares. Teoricamente, isto permitiria acelerar a aprovação de leis e do Orçamento do Estado. Mas muitos viram nesta jogada de Matteo Renzi uma tentativa de alargar o seu poder. Na oposição não faltaram aqueles que o compararam ao ditador fascista Benito Mussolini.

Outro vértice do plano de Matteo Renzi previa a alteração da lei eleitoral que facilitaria a formação de uma maioria na Câmara dos Deputados ao vencedor das legislativas. Esta lei, conhecida como Italicum, indica que quem vencer as eleições com mais de 40% dos votos fica imediatamente com 55% daquela câmara (ou seja, 340 lugares num órgão de 630 no total). Se esse número não fosse atingido numa primeira votação, seria convocada uma segunda volta, onde participariam apenas os dois partidos mais votados.

(Atualmente, a Italicum está sob apreciação do Tribunal Constitucional, que deverá chumbá-la. A decisão foi adiada para depois do referendo deste domingo. Uma nova lei terá de ser redigida e aprovada nos tempos que se seguem — seja qual for o Governo em funções.)

A verdade é que as alterações constitucionais que Matteo Renzi idealizou foram aprovadas no parlamento — mas aquém de uma necessária maioria de dois terços. Assim, foi acionado o processo de referendo, passando a decisão para as mãos do povo italiano.

E a decisão foi clara: cerca de 60% dos italianos votaram “Não” e apenas 40% disseram “Sim”.

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Quais foram os resultados? E a participação eleitoral?

Os resultados foram estes:

Sim – 40,89%
Não – 59,11%

Além disso, a participação eleitoral foi de 65,47%, um número recorde, embora próximo daquilo que foi registado noutras ocasiões. Nos outros dois referendos constitucionais de Itália, a participação eleitoral foi de 64,2% (2001) e de 61,3% (2006).

A alta afluência às urnas foi saudada pelos principais políticos italianos. Até Matteo Renzi, que saiu derrotado, falou numa “festa da democracia”.

Matteo Renzi tinha dito que se a participação chegasse aos 60%, venceria. Mas não foi assim.

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Quem foram os maiores derrotados e maiores vencedores deste referendo? E como reagiram?

O maior derrotado foi, sem dúvida, Matteo Renzi, que não só viu os italianos a rejeitaram de forma “clara” (a expressão é do próprio) as alterações constitucionais que ele idealizava desde o início do seu mandato, como não teve outra fuga senão a demissão.

“Perdi, demito-me”, disse, diretamente do Palácio Chigi, naquele que foi o primeiro discurso entre todos os líderes partidários na noite de domingo. “Como é evidente, a experiência do meu Governo termina aqui.”

Segundo o Corriere della Sera, Matteo Renzi deverá abandonar, também, a liderança do partido.

A contrastar no tom, estiveram os três vencedores da noite de referendo: Beppe Grillo, do Movimento Cinco Estrelas; Matteo Salvini, da Lega Nord; e o aparentemente sempre eterno e ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi.

Beppe Grillo, que tem uma aversão aos media e prefere usar os seus meios para comunicar com o mundo, optou por reagir aos resultados do referendo com um post no seu blogue. “Venceu a democracia”, ditou. “A resposta dos italianos, tal como a afluência às urnas, tem uma mensagem clara. A propaganda do regime e todas as suas mentiras foram os primeiros derrotados desta noite Os tempos mudaram.”

Depois, deixou uma exigência: “Os italianos devem ser chamados às urnas o mais depressa possível”. E, ao contrário do que já tinha dito, defendeu que as eleições antecipadas acontecessem com a lei eleitoral aprovada em 2015 e que agora o Tribunal Constitucional pode chumbar. “A forma mais veloz, realista e concreta para ir rapidamente a votos é continuar com uma lei que já existe: a Italicum.” E disse ainda que, nos próximos dias, o Movimento Cinco Estrelas vai lançar uma votação no seu site para que seja decidido o seu programa eleitoral para as próximas eleições.

Outro vencedor foi Matteo Salvini, líder da Lega Nord, de extrema-direita. A afluência foi particularmente alta nalgumas zonas onde este partido costuma ter bons resultados. Utilizando uma expressão que faz lembrar Nigel Farage após o resultado do referendo do Brexit, falou de um “dia de libertação nacional”. E, falando numa “emergência nacional”, disse que Itália deve votar “o mais depressa possível” com “a lei eleitoral possível”.

Durante a noite eleitoral, Matteo Salvini recebeu um “bravo!” de Marine Le Pen através do Twitter.

Matteo Salvini também usou o Twitter para expressar a sua alegria perante os resultados, aproveitando para saudar outros líderes internacionais: “Viva Trump, viva Putin, viva Le Pen, viva Lega [Nord]!”.

E depois há Silvio Berlusconi, o ex-primeiro-ministro de 80 anos e líder do Forza Italia. Na noite eleitoral, preferiu ficar em silêncio. As declarações do cavaliere ficaram marcadas para segunda-feira. Seja como for, os vários representantes do Forza Italia que foram falando ao longo da noite eleitoral foram claros na sua mensagem: Matteo Renzi fez bem em demitir-se e agora o Partido Democrático deve ter oportunidade de formar um novo Governo. Mas, claro, sem Matteo Renzi.

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E, agora, quais são os próximos passos?

O primeiro passo será dado por Matteo Renzi, que na manhã desta segunda-feira irá reunir-se com o Presidente, Sergio Mattarella, para lhe entregar a demissão. Perante a clareza dos resultados (a derrota do “Sim” ronda os 20 pontos percentuais) e a firmeza do primeiro-ministro em seguir este rumo numa eventualidade de uma vitória do “Não”, o mais provável é que o Presidente aceite a demissão de Matteo Renzi.

Após aceitar a demissão de Matteo Renzi, o Presidente poderá dissolver o parlamento e convocar eleições antecipadas ou tentar reunir as condições para que seja formado um novo Governo de coligação. Este último cenário é o mais provável, uma vez que a realização imediata de eleições pode ser tecnicamente impossível — o Tribunal Constitucional está a dias de se pronunciar sobre a Italicum, a lei eleitoral vigente que deverá declarar inconstitucional.

Assim que for encontrada uma solução de Governo, uma das prioridades do executivo terá de ser chegar a um consenso relativamente à Italicum. Mesmo que não haja eleições antecipadas, os ponteiros do relógio continuarão a avançar. As eleições serão, o mais tardar, em 2018.

Enquanto isso, a oposição vai estar atenta a estes desenvolvimentos. De forma mais ativa — até agressiva — estará o Movimento Cinco Estrelas e a Lega Nord, ambos defensores da realização de eleições antecipadas com a atual lei eleitoral. Depois, está a Forza Italia, de Silvio Berlusconi. Da parte do ex-primeiro-ministro, o desejo é que o Partido Democrático forme um Governo sem Renzi e que o novo executivo arranje uma solução para uma nova lei eleitoral.

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Quem pode suceder a Matteo Renzi no cargo de primeiro-ministro?

Tudo dependerá da decisão do Presidente, Sergio Mattarella. Seja como for, entre os nomes que estão a ser avançados conta o presidente do Senado, Pietro Grasso, o ministro da Cultura e do Turismo, Dario Franceschini, e o ministro das Finanças, Pier Carlo Padoan.

O ministro das Finanças cancelou a ida a Bruxelas para a reunião do Eurogrupo esta segunda-feira.

 

 

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A Itália vai sair do euro?

Para isso acontecer, muitas coisas terão de se passar pelo caminho.

Para já, Matteo Renzi ainda é primeiro-ministro. Depois de apresentar a sua demissão ao Presidente, e caso este a aceite, deixará de sê-lo até que alguém lhe suceda. Este “alguém” deverá ser o chefe de um governo de gestão, que irá perdurar até às próximas eleições.

Ora, as próximas eleições estão previstas para 2018 — ou, no caos de haver eleições antecipadas, elas podem acontecer já em 2017.

Seja qual for a data, uma coisa é bem provável: o Movimento Cinco Estrelas, que aparece em segundo lugar nas sondagens, a escassos pontos do Partido Democrático, deverá fazer campanha por um referendo para decidir a permanência de Itália no euro.

Mas há uma pedra na engrenagem do Italexit: a Constituição italiana proíbe referendos sobre matérias definidas por tratados internacionais. Como é o caso do euro.

Assim sendo, para alguma vez a Itália sair do euro, seriam necessários os seguintes passos, nesta ordem: 1) numas eleições legislativas, o Movimento Cinco Estrelas e a Lega Nord conseguiriam um bom resultado; 2) juntos, e possivelmente com a ajuda de outros pequenos partidos, conseguiriam formar um movimento para fazer um referendo ao euro; 3) teriam de conseguir alterar a constituição, permitindo a realização de referendos sobre tratados internacionais — para tal, teriam de conseguir a aprovação de 2/3 do parlamento ou vencer um referendo constitucional; 4) por fim, os italianos teriam de votar pela saída do euro.

Cada um destes passos é complexo e moroso. Como tal, um Italexit é pouco provável nos próximos tempos. O que não invalida que, agora, Beppe Grillo e outros gritem mais alto do que nunca a favor desse cenário.

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Como é que os mercados reagiram ao resultado do referendo?

O euro sofreu o impacto do resultado do referendo em Itália assim que os mercados abriram no Extremo Oriente. A moeda europeia sofreu a maior queda desde o rescaldo do Brexit, com uma descida de 1,3% em relação ao dólar. Assim que foi possível haver certezas sobre a vitória do “não”, o euro chegou a deslizar até 1,0506 dólares, o valor mais baixo desde março de 2015, mas recuperou, depois, para 1,0524 dólares.

Na manhã de segunda-feira, a bolsa de Itália abriu a cair quase 2%, com alguns bancos a não apresentarem cotação na abertura — o caso do UniCredit e do frágil Monte de Paschi.

A par deste desempenho, a bolsa de Tóquio também abriu em baixa, com o índice de referência Nikkei 225 a recuar 0,41%. A descida, na abertura do mercado japonês, não foi dramática, mas sinalizou a preocupação dos investidores com a incerteza que a situação em Itália pode gerar em toda a zona euro, apostados em largar ativos de maior risco e procurar refúgios mais seguros.

Um dos receios associados ao resultado do referendo está na perturbação que pode provocar no processo de recapitalização da Banca Monte dei Paschi di Siena, o terceiro maior banco italiano, que arrancou a 28 de novembro e que se destina a recolher um financiamento no valor de cinco mil milhões de euros. A operação, que terá de estar terminada aé ao final de dezembro, inclui a troca de obrigações por ações, uma emissão de novos títulos representativos do capital da instituição e a venda de créditos de má qualidade, registados no balanço a perto de 28 mil milhões de euros.

A operação pode estar comprometida e é esta questão que vai ser analisada nesta segunda-feira pelas instituições que estão a apoiar a recapitalização, o JP Morgan e o Mediobanca. O Governo italiano pode ser forçado a nacionalizar o Monte dei Paschi, caso a desconfiança gerada pela incerteza política em Itália afastar os investidores de que a instituição necessita para recuperar a solidez. A nacionalização evitaria o resgate sob as condições anualmente em vigor, que impõem perdas aos depositantes com contas superiores a cem mil euros.

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Como é que foi a reação internacional à vitória do "Não"?

Dos líderes europeus, apenas um silêncio que alguns preferirão chamar de “ensurdecedor” e outros de “cauteloso”. Por um lado, a demissão de Matteo Renzi e a miragem de eleições antecipadas ou de mais um Governo de gestão podem ser sinónimos de instabilidade e incertezas em Roma. Mas, por outro, ainda pode ser cedo para falar, e alguns líderes estarão dispostos a respeitar os passos institucionais que se seguem — sobretudo a conversa que decorrerá segunda-feira entre o Presidente, Sergio Mattarella, e o primeiro-ministro demissionário, Matteo Renzi — e só depois falar.

A contrastar, estiveram as reações de alguns líderes europeus à vitória do ecologista Alexander Van der Bellen nas presidenciais, que derrotou o candidato da extrema-direita, Norbert Hofer. Os resultados foram rapidamente saudados pelo vice-chanceler alemão, Sigmar Gabriel; pelo Presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk; pelo Presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz; e também pelo Presidente francês, François Hollande.

Seja como for, houve duas reações de dois políticos europeus que não se fizeram tardar: Nigel Farage, o ex-líder do partido eurocético britânico UKIP; e Marine Le Pen, candidata da Frente Nacional às eleições presidenciais francesas de 2017.

Pouco depois de serem conhecidas as sondagens à boca das urnas — que deram logo a vitória do “Não” —, o eurodeputado britânico escreveu: “Espero que as sondagens à boca da urna em Itália estejam corretas”. E depois fez uma apreciação do resultado: “Esta votação é para mim muito mais sobre o Euro do que sobre uma alteração constitucional”.

Foi também por esse diapasão que afinou Marine Le Pen. Num primeiro tweet, deu diretamente os parabéns ao líder da Lega Nord: “Bravo ao nosso amigo Matteo Salvini por esta vitória do NÃO!”.

E depois deixou a sua interpretação dos resultados, atribuindo-os a questões que em muito ultrapassam aquelas que estavam no boletim de voto: “Os italianos revogaram a União Europeia e Renzi. É preciso escutar esta sede que as nações têm de liberdade e de proteção”.

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As sondagens voltaram a estar enganadas ou desta vez acertaram no resultado?

Se é certo que as sondagens acertaram na hipótese vencedora das eleições, também é evidente que erraram na margem desta vitória.

Desde 20 de outubro que todas as sondagens previam uma vitória do “Não” — e mesmo antes dessa data essa tendência já era clara. Ainda assim, as margens dessa vitória variavam entre cerca de um a dez pontos percentuais. A maioria dos casos previa uma vantagem do “Não” entre os cinco e os sete pontos.

A verdade é que a vitória do “Não” foi muito mais folgada do que isso. Com 99% dos votos contados, a opção defendida por Silvio Berlusconi e Beppe Grillo vencia com praticamente 20 pontos de vantagem. Ou seja, 1/5 dos votos.

É uma diferença abissal, que as sondagens não previram.

As sondagens e a sua eficácia são hoje cada vez mais colocadas em causa, depois de alguns desaires: entre os mais recentes, estão as eleições legislativas do Reino Unido em 2015 (tudo previa uma maioria simples do Partido Conservador e um jogo de coligações, mas os tories tiveram uma esmagadora maioria absoluta); o referendo do Brexit (além das sondagens, também as sondagens à boca das urnas falharam, o que levou a que o mundo acordasse no dia seguinte com notícias bem diferentes daquelas com que se deitou); as eleições dos EUA (Donald Trump venceu em estados onde Hillary Clinton era dada como vencedora quase certa e agora o magnata vai para a Casa Branca); as eleições primárias da direita francesa (a escolha parecia ser entre Nicolas Sarkozy e Alan Juppé, quando afinal de contas venceu François Fillon); e até noutra votação deste domingo, as eleições presidenciais na Áustria (as sondagens diziam que Norbert Hofer deveria ganhar por pouco, mas Alexander Van der Bellen venceu com alguma facilidade).

O caso do referendo em Itália e das suas sondagens não é tão grave como estes que referimos — afinal de contas, o vencedor foi previamente identificado. Mas a diferença entre a margem prevista nas sondagens e aquela que realmente se verificou não poderá deixar de ser alvo de preocupação para as agências que as fazem e para os media que a elas recorrem.