A notícia de que o Tribunal da Relação de Lisboa condenou o tenente-coronel Brandão Ferreira a uma pesada indemnização por ter chamado “traidor” a Manuel Alegre é duplamente chocante. Choca por um tribunal superior ter considerado ser crime aquilo que podemos definir como um “delito de opinião”. Por outras palavras, há opiniões que, sendo expressas em público, os juízes desembargadores consideraram ser criminosas. Mas choca ainda mais ter ficado a saber que o queixoso era Manuel Alegre. Afinal o homem que toda a vida se disse um defensor da liberdade – e foi-o, sem dúvida, em momentos importantes, antes do 25 de Abril e no PREC – sucumbiu à tentação de limitar essa mesma liberdade quando uma crítica lhe foi dirigida.

Eu sei que em Portugal ainda se dá muitas vezes mais importância ao “direito à honra” do que à liberdade de expressão, mas não se esperaria que um ícone da esquerda nacional fosse para tribunal contra alguém que o atacou politicamente. Ou talvez não: se pensarmos duas vezes verificamos que, à esquerda, e não apenas na esquerda que se identifica com o PCP, a relação com a liberdade é muitas vezes, para usar palavras doces, um bocado difícil.

Para não ficarmos pela liberdade de expressão, até para não recordarmos as tentativas de controlo de comunicação social no tempo de José Sócrates ou para não regressarmos à agressividade da actual maioria, e de algumas vozes de primeira linha do Partido Socialista, contra jornalistas que têm a ousadia de não alinharem pela sua cartilha, demoremo-nos antes por um instante na actual discussão sobre as escolas com contratos de associação.

Já escrevi, não vou voltar a argumentar: o debate sobre os contratos de associação não é o bom debate sobre esse direito constitucional que é a liberdade de educação; mas, ao mesmo tempo, o ataque aos contratos de associações nos moldes em que foi desencadeado resulta numa diminuição da pouca liberdade de escolha das famílias que podiam beneficiar desse regime.

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Por isso não vou debater contratos de associação nem liberdade de educação, pois o que me interessa neste texto é outro ponto: o encarniçamento das nossas esquerdas (incluindo uma grande parte do PS) contra a simples possibilidade de serem as famílias a escolher se queriam continuar numa escola com contrato de associação ou se preferiam a escola pública ao lado. Esse encarniçamento, como se tornou claro para quem seguiu o debate público, invocou um argumento de poupança orçamental mas, sobretudo, teve como pressuposto que todo o ensino gratuito deve ser fornecido directamente pelo Estado sem atender à sua qualidade e, muito menos, à vontade das famílias.

O princípio que foi defendido foi o do monopólio estatal, numa leitura literal do ponto 1 artigo 75º de Constituição, onde se escreve que o Estado deve criar “uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população”. Mais do que leitura literal, foi feita uma leitura dogmática: como sabemos se pensarmos no que se passa no sector da saúde, um “estabelecimento público” não tem de ser obrigatoriamente um “estabelecimento do Estado” (vejam-se, por exemplo, os hospitais do SNS de Braga, Loures ou Vila Franca, que são públicos mas pertencem e são geridos por privados).

Esta leitura literal contraria, de resto, o sentido da revisão constitucional de 1982. Antes dessa revisão, no ponto 2 do mesmo artigo 75º escrevia-se que “o Estado fiscaliza o ensino particular supletivo do ensino público”; nessa revisão a palavra “supletivo” desapareceu, passando a nova redação desse ponto a ser mais aberta a outras modalidades de ensino: “o Estado fiscaliza o ensino particular e cooperativo”.

O que isto significa é que a partir de 1982 o consenso constitucional em Portugal passou a ser que o ensino privado não pode ser apenas considerado como “supletivo” do ensino público. Assim aconteceu por vontade do PS de Mário Soares, que subscreveu a revisão constitucional de 1982, assim continuou a acontecer com o PS de todas as lideranças anteriores à de António Costa, o primeiro-ministro que neste processo não só desenterrou o conceito do “supletivo” como também foi buscar em seu apoio uma lei sobre o ensino particular e cooperativo de 1979, ou seja, anterior à revisão de 1982.

Acontece que considerar o ensino particular como “supletivo” não é apenas um detalhe: é um entorse a um outro artigo da nossa Constituição, este relativo aos direitos fundamentais, o artigo 43º, onde “é garantida a liberdade de aprender e ensinar”. Só que esse artigo é um engulho que boa parte da nossa esquerda tem dificuldade em engolir. Foi assim que a vimos argumentar, por exemplo, que essa liberdade não está em causa pois todos os que quiserem podem sempre inscrever os seus filhos em colégios particulares, pagando. Isso mesmo: pagando. O que significa que para a esquerda essa é uma liberdade que só têm os mais ricos. O que também significa que, neste ponto, a desigualdade que impede os mais pobres de escolherem a escola dos seus filhos é uma desigualdade que não incomoda essa nossa esquerda.

De novo não devemos ficar surpreendidos com esta aparente – e evidente, do meu ponto de vista – contradição. E não devemos ficar surpreendidos porque a mais forte das tradições das nossas esquerdas é a tradição jacobina, e essa sempre foi liberticida, pois nunca respeitou a liberdade dos outros.

Vamos às origens, que é mais fácil compreender. E ir às origens é ir a Robespierre, para quem “o Terror é a luta da liberdade contra seus inimigos”. De novo parece estarmos perante uma evidente contradição: como é que, guilhotinando todos os que tinham opiniões diferentes, se estava, na opinião de Robespierre, a defender a liberdade? A explicação é simples: Robespierre achava que sabia o que era bom para o povo, pelo que aqueles que se lhe opunham só podiam ser contra o povo e, por isso, merecer a guilhotina. A única liberdade que considerava digna desse nome era a liberdade da sua facção revolucionária.

Esta ideia de que há políticos que são melhores do que os demais porque são “progressistas” (uma palavra que diz muito), e que eles é que estão do lado certo da História e sabem o que é bom para o povo foi elevada a novos patamares quando o marxismo pretendeu interpretar “cientificamente” o sentido da História e determinar, por via do chamado “materialismo histórico”, não apenas quem representava o futuro, mas como seria essa futuro.

Nem todas as esquerdas são jacobinas ou marxistas, mas em Portugal essas tradições são fortíssimas e estão intimamente ligadas à cultura dominante que atribui às esquerdas em geral uma tal “superioridade moral” que estas se outorgam ora a serem polícias das opiniões toleráveis no espaço público (como sucedeu no lamentável processo desencadeado por Manuel Alegre), ora considerarem que o povo não deve ter a possibilidade de escolher por “o Estado” saber o que é melhor para ele (como se verificou nesta controvérsia sobre as escolas com contratos de associação). Estes tiques manifestam-se com especial vigor quando se suspeita que a religião pode desempenhar um qualquer papel nas opções de vida dos cidadãos – algo que vem também do jacobinismo e do marxismo e de novo aflorou neste debate.

Os que amam a liberdade, como é o meu caso, não tratam de impor as suas opiniões aos demais e não se incomodam se são contrariados ou estão em minoria. Os que amam a liberdade preferem que os cidadãos estejam o mais libertos possível de condicionamentos políticos ou burocráticos, seja para criarem uma empresa, seja para escolherem uma escola, seja para verem a televisão que lhes aprouver. Os que amam a liberdade acreditam, como eu acredito, que a concorrência, mesmo entre escolas públicas, pode fazer mais pela sua qualidade do que um rígido comando e controlo central. Os que amam a liberdade acreditam, como eu acredito, que a resultante de milhões de escolhas individuais, tomadas livremente pelos cidadãos no seu dia-a-dia, é melhor do que as mais bem intencionadas e mais “iluminadas” escolhas de quem se sente interprete do sentido da História.

Infelizmente na nossa tradição – na tradição da nossa esquerda, mas também na tradição da nossa direita – há muito pouco amor pela liberdade e, em contrapartida, há aquele tipo de paixão doentia pela igualdade para a qual Alexis de Tocqueville alertou há quase dois séculos, quando reflectia sobre os destinos diferentes da democracia na América e na França revolucionária. Há um pedaço da sua reflexão que não resisto a citar, pois aplica-se como uma luva a esta defesa do monopólio estatal da Educação:

Vejo uma multidão imensa de homens semelhantes e de igual condição girando sem descanso à volta de si mesmos, (…) Acima desses homens, ergue-se um poder imenso e tutelar que se encarrega sozinho da organização dos seus prazeres e de velar pelo seu destino. É um poder absoluto, pormenorizado, ordenado, previdente e suave. Seria semelhante ao poder paternal se, como este, tivesse por objectivo preparar os homens para a idade viril; mas ele apenas procura, pelo contrário, mantê-los irrevogavelmente na infância. Agrada-lhe que os cidadãos se divirtam, conquanto pensem apenas nisso. Trabalha de boa vontade para lhes assegurar a felicidade, mas com a condição de ser o único obreiro e árbitro dessa felicidade. (…) A igualdade preparou os homens para tudo isto, predispondo-os a aceitar este sofrimento e, até, a considerá-lo um benefício” – Da Democracia na América, Vol. II, Quarta Parte, Capítulo VI.

A versão francesa desta paixão transformada em pesadelo foi o Terror, a versão soviética foi o estalinismo e o Goulag, a versão cubana o suave empobrecimento de toda a população. O melhor exemplo da versão portuguesa têm sido as políticas de Educação, mas as nossas esquerdas (ou parte delas) não querem ficar por aí: poucos deram atenção, mas o Bloco já começou a fazer exigências na área da saúde, curiosamente aquela onde um ministro que não tem nada a ver com o seu colega da educação até já veio prometer mais liberdade de escolha aos utentes.

E não se iludam, atribuindo estas extravagâncias a trapalhadas da geringonça. O que se está a passar em Portugal é mais profundo e mais grave, pois é muito significativo que neste debate sobre a Educação se tenha regressado a termos de referência anteriores à revisão constitucional de 1982 (onde já vai a degenerescência do PS, meu Deus) e, num caso tão grave de limitação do direito de opinião como o da decisão do Tribunal da Relação, só tenhamos silêncio por parte dos habituais indignados. Tocqueville tinha mesmo razão: é sempre possível encontrar homens preparados para abdicarem da liberdade a troco do que julgam ser os benefícios de um Estado protector. Essa tem sido, demasiadas vezes, a triste história de Portugal.