Já tive ocasião de aqui referir o extenso artigo de Andrew Brown, no ‘The Guardian’, que saiu no Público de 24-12-2017 com o título “A guerra contra o Papa Francisco”. Contudo, não aludi à acusação que aí se faz ao cardeal Raymond Burke que, segundo Brown, “chegou o mais perto possível de acusar o Papa de heresia”. Na realidade, das dúvidas – ou ‘dubia’, em latim – que Burke e outros três cardeais respeitosamente apresentaram ao Papa Francisco, não se deduz nenhuma acusação pessoal, muito menos a de uma alegada heresia papal. Por sua vez, os signatários de uma posterior ‘correcção filial’ a Francisco – que também já comentei numa anterior crónica – questionaram publicamente a ortodoxia da ‘Amoris Laetitia’ (AL), não porque seja directamente contrária à fé católica, mas porque, na sua opinião, insinua e encoraja interpretações que seriam, de facto, heréticas.

É sabido que muitos fiéis católicos, por viverem maritalmente com alguém com quem não casaram canonicamente, não se podiam confessar, nem receber a comunhão. Esta situação era vista com preocupação pelos seus párocos e bispos, pois a sua exclusão da eucaristia podia levar ao abandono da Igreja. Os dois sínodos, realizados em 2014 e 2015 no Vaticano, procuraram encontrar uma solução pastoral que, sem negar o princípio da indissolubilidade matrimonial, nem o da necessidade de estar na graça de Deus para receber a sagrada comunhão, permitisse, nalguns casos, a vida sacramental dos católicos ‘recasados’. São João Paulo II e Bento XVI tinham insistido em que uma tal prática só seria viável se esses fiéis se se comprometessem à abstinência dos actos próprios da vida conjugal e vivessem como irmãos, solução que, contudo, nem sempre é factível.

Não obstante a expectativa gerada e os dois sínodos consecutivos, não foi possível encontrar a desejada solução: enquanto uma parte do episcopado, nomeadamente centro-europeu, defendia abertamente a admissão dos ‘recasados’ aos sacramentos, outra era a opinião da maioria dos bispos. Assim sendo, o Papa Francisco decidiu chamar a si as conclusões dos sínodos e elaborar uma exortação pós-sinodal sobre esta matéria, a que deu um título sugestivo: ‘A Alegria do Amor’, ou seja, em latim, ‘Amoris Laetitia’ (AL). Segundo Brown, trata-se de um “documento longo, reflexivo e cuidadosamente ambíguo”. A sua alegada ambiguidade reside na ausência de uma resposta clara ao dilema que se propunha resolver. Com efeito, o Papa Francisco nunca diz que os fiéis ‘recasados’ podem confessar-se e comungar, como também não o nega … Que diz, então?!

Partindo do princípio de que é teoricamente possível, embora muito improvável, que um fiel, casado pela Igreja mas que vive maritalmente com outra pessoa, “possa viver na graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida da graça e da caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja” (AL 305 e 301), o Papa Francisco, em brevíssima nota de rodapé, diz que esse apoio eclesial pode também “incluir a ajuda dos sacramentos” (AL 305, nota 351). Quer isto dizer então que todos os ‘recasados’ já podem comungar? De modo nenhum! Quer dizer, pelo contrário, que nenhum o possa fazer? Também não. Como averiguar então os casos em que a prática sacramental, nomeadamente penitencial e eucarística, estaria permitida aos fiéis ‘recasados’?

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Muito embora o Papa Francisco não tenha respondido às dúvidas dos quatro cardeais – nem pessoalmente, nem através do seu perfeito para a Congregação da Doutrina da Fé – reagiu muito favoravelmente à interpretação que da AL fizeram os bispos argentinos, dizendo que era a única interpretação possível à sua exortação pós-sinodal. Francisco fez até publicar, no órgão oficial da Santa Sé, essa interpretação do episcopado argentino, elevando-a à condição de magistério da Igreja universal. No entanto, continua sem se saber quais as condições objectivas que podem fazer moralmente lícita a convivência de um casal de fiéis não unidos pelo sacramento do matrimónio, ao ponto de se lhes permitir o acesso aos sacramentos da reconciliação e da comunhão eucarística.

Ao contrário dos seus dois últimos antecessores, o Papa Francisco, mais do que teólogo é sobretudo pastor e, portanto, em vez de dar uma resposta dogmática à questão, propôs uma solução casuística. Não criou uma nova doutrina, nem uma nova normativa canónica, nem sequer uma nova disciplina sacramental, mas apenas um novo método, essencialmente pastoral, de resolução destas situações. Será, portanto, caso a caso que os pastores, em diálogo com os fiéis em situação especial, ou irregular, encontrarão a solução mais de acordo com a lógica, misericordiosa e exigente, do Evangelho: bastantes, infelizmente, terão que continuar afastados da prática sacramental; outros deverão ser convidados a viver em continência; mas alguns, se a autoridade eclesial competente assim o permitir, poderão retomar as práticas da confissão e da comunhão, desde que não haja contradição com os princípios da indissolubilidade matrimonial e da necessidade do estado de graça para a eficaz e salutar participação na eucaristia.

Concluindo e resumindo, pode-se dizer que a AL não contradiz a doutrina da Igreja, pois pode e deve ser interpretada em sintonia com o precedente magistério eclesial, como aliás fizeram os teólogos José Granados, Stephan Kampowski e Juan José Pérez-Soba, em obra cuja tradução portuguesa foi prefaciada por D. Nuno Brás, bispo auxiliar do patriarcado de Lisboa (cfr. ‘Acompanhar, discernir, integrar’, Aletheia 2017). Mas também é verdade que se gerou alguma confusão quanto à sua aplicação, e que se corre o risco das várias dioceses, e de cada um dos seus pastores, interpretarem e executarem diversamente a AL. É igualmente certo que algumas leituras mais permissivistas do texto pontifício deram azo a abusos e, até, a sacrilégios. Se estes deploráveis excessos levarem a Santa Sé a dar instruções que evitem a aplicação discricionária da AL, será caso para dizer, com São Paulo, que, mais uma vez, “tudo contribui para o bem daqueles que amam a Deus” (Rm 8, 28).