São quatro mil páginas que ainda exigem tempo para ser digeridas. Mas tudo o que delas já resulta não deixa lugar a muitas dúvidas: a investigação do Ministério Público demorou muitos meses, mas produziu acusações pesadas e sólidas.

Desde o dia em que José Sócrates foi detido no aeroporto de Lisboa sabíamos que não seria fácil. O que logo nessa altura se percebeu sobre a complexidade da teia em que se apoiava e os mecanismos usados para disfarçar a forma como lhe chegava o dinheiro era suficiente para perceber que os investigadores teriam um trabalho árduo e que, se era fácil demonstrar que o antigo primeiro-ministro tinha um modo de vida de todo incompatível com o que declarava serem os seus rendimentos, ou os seus “empréstimos”, seria muito mais difícil provar a relação entre esse dinheiro e decisões que tivesse tomado enquanto primeiro-ministro.

Quase três anos depois, muitas contas bancárias passadas a pente fino e uma investigação que se alargou a outros centros de poder – em especial o que tinha à frente o antigo “dono disto tudo”, Ricardo Salgado –, temos hoje um despacho de acusação com pés e cabeça. Vai ser possível provar tudo em tribunal? Veremos, conhecendo como conhecemos a dificuldade de o fazer no nosso país (e antecedentes históricos como os casos Isaltino e BPN). Mas há que reconhecer que o Ministério Público foi muito mais longe do que alguma vez fora no passado.

Será no entanto um erro reduzir este caso à sua componente jurídica e à troca de argumentos entre advogados e juristas. O que este despacho de acusação nos revela – no fundo, o que esta investigação trouxe à luz do dia – foram os detalhes de como o concubinato entre o poder político e o poder económico criou o caldo de cultura ideal para projectos de poder que não olham a meios nem têm limites éticos.

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Nos anos em que José Sócrates foi primeiro-ministro assistiu-se em Portugal a um esforço de concentração de poder sem paralelo na nossa história democrática. O primeiro-ministro não tolerava quem lhe fizesse frente, fosse no partido, fosse no Governo, fosse na comunicação social, fosse até na economia.

A memória dos povos tende a ser curta, a minha não. Recordo-me bem daquele que foi, porventura, o primeiro sinal de que Sócrates atropelaria quem fosse preciso atropelar para alcançar os seus objectivos: a nomeação de Armando Vara para a administração da Caixa Geral de Depósitos, uma nomeação que foi o pretexto próximo para a demissão do seu primeiro ministro das Finanças, Campos e Cunha. Colocou na CGD um amigo e cúmplice, Armando Vara – e hoje começamos a conhecer, graças a este processo, até onde ia essa cumplicidade –, e ao mesmo tempo via-se livre de uma voz incómoda no Conselho de Ministros.

Também me recordo bem como foi controlando ou desvitalizando os organismos independentes, do regulador da comunicação social ao da energia; como meteu no bolso – não consigo encontrar termo melhor – o presidente do Supremo Tribunal de Justiça e o procurador-geral da República, que lhe prestariam inestimáveis serviços noutros casos em que esteve envolvido (lembram-se da destruição das escutas?); como tratava a comunicação social, chegando a conseguir que a notícia sobre a sua licenciatura, dada inicialmente pelo Público que eu então dirigia, fosse silenciada durante uma semana; como intimidava os que discordavam dele dentro do PS, uma história ainda por contar; ou ainda como comandava ferreamente, a partir do seu gabinete, toda a comunicação do executivo.

Mais importante e mais relevante, não posso esquecer a forma como os seus trataram de tomar conta do sistema bancário, com o assalto do BCP, para onde passou o sempre inestimável Armando Vara; e como depois disso usou esse poder para tentar fechar um dos poucos órgãos de informação que então o incomodavam, o Sol; como procurou instrumentalizar a PT para que esta comprasse a TVI e calasse uma jornalista desalinhada; como usava as “golden shares”, nessa PT ou na EDP, para prosseguir os seus projectos mitómanos; e por aí adiante.

Neste percurso deu-se um cruzamento improvável de interesses: os de um primeiro-ministro todo-poderoso com o chefe de uma família de banqueiros habituada, porventura como nenhuma outra família em Portugal, ao concubinato com o poder. O que resultou desse cruzamento de interesses resultou num desastre para Portugal – a queda do Grupo Espírito Santo quando desapareceu o amparo dos contribuintes e a virtual destruição de um grupo como a PT, engolida por um negócio ruinoso no Brasil que fora imposto pelo próprio José Sócrates.

Esta espécie de “duovirato” durou vários anos, envenenou a política portuguesa, contaminou o sistema económico e contribuiu para uma claustrofobia que poucos tiveram a frontalidade de denunciar. Só a crise acabaria por separar o “animal feroz” do “dono disto tudo”, mas nessa altura a dimensão dos problemas já escapara ao controlo e à capacidade de ambos.

Agora que conhecemos o “saco azul” por onde passaram muitos dos milhões que olearam estas relações, os seus negócios e os seus interesses, é importante ter bem presente que, antes de o dinheiro circular, havia quem prosseguisse uma concentração de poder que não era boa para o nosso sistema democrático e que era péssima para o nosso tecido económico. E quem pudesse levar vida de rico sem ter rendimentos legítimos para isso.

Estou convicto que aquilo que já sabemos, tal como aquilo que o Ministério Público já pode mostrar para sustentar a acusação, é apenas uma parte, porventura uma pequena parte, dos abusos que foram cometidos na busca de mais e mais poder – ou de mais e mais dinheiro. Sinceramente gostaria de não me enganar quando penso que a procissão ainda vai no adro. Isto é, que os muitos segredos que esta teia ainda tem por revelar não ficarão esquecidos e serão um dia revelados.

De resto, este foi um bom dia para a nossa democracia. Não por essa democracia ter tido um primeiro-ministro que caiu desgraçadamente nas malhas da Justiça – mas por a Justiça ter feito o seu trabalho, sem se intimidar e sem esmorecer. Que assim possa continuar a acontecer.