Sempre me surpreendeu o entusiasmo com que, nos últimos anos, se anunciam pedidos de empréstimos à república portuguesa.
Expressões como, Portugal vendeu mais dívida com sucesso, nova emissão com enorme procura de títulos ou ainda, Portugal regressa hoje aos mercados em grande fazem, frequentemente, manchetes de aparente optimismo.
Na verdade, todas estas expressões significam para o português comum que o país está a fazer algo de muito positivo. Significam que, aparentemente, estamos no bom caminho. Estamos a promover, a vender, algum produto ou serviço de grande valor e com redobrado entusiasmo e, consequente, sucesso.
Acontece que, apesar da ênfase retórica e do marketing que lhe está associado, apenas estamos a pedir mais dinheiro emprestado, precisamente, porque não fabricamos produtos de grande valor acrescentado para vender nos mercados, nem temos uma economia de serviços que permitam alimentar as nossas receitas fiscais sustentando, por essa via, o Estado e as suas necessidades de financiamento.
De tanto pedir emprestado, conseguiu-se transformar algo inevitável, mas ainda assim excepcional, o recurso ao crédito, numa atividade de sucesso. É como se, de repente, alguém justifica ser um óptimo gestor apenas por conseguir obter bons empréstimos.
Dir-se-á que, tal como as empresas e as famílias, também os Estados não conseguem viver sem crédito. É verdade, mas também é verdade que isso deve ser levado a cabo sempre num quadro de moderação e com a inerente capacidade de pagamento dos respectivos custos sem pedir mais para ir alimentando a anterior. Quando essa regra não é tida em conta, quando se deixa que a dívida hipoteque o futuro, tudo pode acabar mal.
Ou seja, a dívida em si não é má. A dívida só é má quando não gera qualquer rentabilidade, ou quando serve para financiar actividades públicas sem compensação nos investimentos que geram retorno para o erário público. Sem esta compensação, entramos na espiral de gasto que acaba por levar a mais dívida e a mais impostos, a um maior empobrecimento, a menos receitas e, por sua vez, a mais dívida.
É, aliás, isso que significa a chamada regra de ouro prescrita no famoso, e por alguns odiado, Tratado Orçamental, assinado por Portugal e por mais 26 países da União Europeia (ficaram de fora o Reino Unido e a República Checa) em Março de 2012. Com efeito, não condicionando a dimensão nem as funções do Estado, o Tratado, assume, expressamente, que este tem de sustentar as suas atividades na receita dos impostos que cobra e das actividades que leva a cabo. Assume-se que o recurso ao endividamento deve ser limitado a tempos e circunstâncias excepcionais (daí o tal limite de 60% para a dívida e um défice estrutural anual equivalente a 0.5% do PIB).
A armadilha da dívida assenta assim, em termos simplistas, por um lado, na incapacidade de limitar a despesa pública e gerar recursos próprios e, por outro, no encantamento dos juros baixos (é como o álcool gratuito…sempre perigoso para os dependentes). Depois, podemos falar em armadilha de um modo mais denso, a partir de duas situações que normalmente a antecedem: a explosão do consumo e a queda abrupta da liquidez.
Vejamos primeiro a explosão do consumo. Nos EUA, por exemplo, o rendimento da população trabalhadora estagnou ou reduziu-se nos últimos anos sem interrupção, apesar do crescimento do consumo. Em 1990, a soma das dívidas das famílias nos EUA era igual a 85% do seu rendimento. Em 2007, quando rebentou a crise do subprime, esse valor tinha subido para 139%.
Depois, a queda abrupta da liquidez. Quando a mesma crise de 2007/8 se desencadeou, os empréstimos cessaram, inclusive entre os bancos, porque ninguém confiava no seu pagamento aquando do respetivo vencimento. A bancarrota dos maiores bancos (ou mesmo o fim dalguns, como o Northern Rock, o Lehman Brothers ou, entre nós, mais recentemente o BES ou o BANIF) acabou mesmo por paralisar o crédito. Como ninguém tinha dinheiro, o próprio consumo acabou por cair abruptamente. Os que ainda ganhavam, trataram de guardar a sua poupança em casa, mesmo que aí ela não rendesse juros: o medo sobrepôs-se à avidez, reduzindo-se a liquidez disponível para todos os agentes económicos.
Ora, são os efeitos conjugados destas duas situações que fazem o caminho para a armadilha que nos ocupa: a armadilha da dívida. E o pior é que, ao tentar mitigar os efeitos da referida dívida, fomos muitas vezes tentados a confundir a mesma com capital. As nossas empresas, por exemplo, cometem frequentemente esse pecado ao alavancarem a sua actividade não em capital, mas em crédito, com a agravante de as maiores e mais endividadas muitas vezes distribuírem dividendos que corroem o seu capital).
Só que, capital e dívida são duas realidades diferentes e no mundo dos Estados, das famílias e das empresas, se o PIB não cresce, isto é, se não formamos capital, o défice aumenta, a dívida sobe, o desemprego não desce e, por conseguinte, a vida do povo não melhora. Mais, quando a dívida pública cresce, a economia não deixa de sentir ainda o efeito crowding out, isto é, o Estado fica com grande parte do crédito disponível, dificultando o acesso a este por parte das empresas e das famílias.
A este propósito, Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff, no seu extenso estudo sobre a dívida (Desta Vez é Diferente – Oito Séculos de Loucura Financeira, Lisboa: Atual, 2013) concluem que, embora o problema da dívida não seja novo, o certo é que a excessiva acumulação de dívida, de dívida pública, dos bancos, das empresas ou dos consumidores, traz frequentemente consigo um risco sistémico maior (…) porque torna a economia mais vulnerável a crises de confiança.
Mas para resolver a questão não bastará, como se houve frequentemente em certos meios ideológicos extremistas, dizer que não pagamos e fazer crer que este é um problema dos malvados mercados, um problema dos nossos credores. É que, hoje em dia, a grande e nova armadilha da dívida está justamente aí.
Não se pode mais dizer eles, os mercados, mas sim, nós, os mercados. Somos nós, cidadãos que, através dos nossos depósitos bancários, através dos nossos descontos para a segurança social, através dos planos poupança reforma, através dos certificados de aforro, dos seguros de vida com capitalização, da subscrição de obrigações do tesouro, estamos, por via desses mesmos mercados, a emprestar ao Estado.
Assim, o eventual colapso do nosso endividamento, quer por restruturação quer por decisão unilateral de não pagamento, será, não o colapso dos mercados, mas o fim das diversas instituições públicas e privadas onde os portugueses aplicam as suas poupanças e o futuro das suas pensões.
Como se pode ver, estamos perante uma verdadeira armadilha da dívida. Isto é, se algo corre mal não vale a pena tentar culpar os mensageiros, neste caso os intermediários, os tais mercados, pois no final somos nós que pagamos. É este o mundo globalizado em que vivemos. Para o bem e para o mal.
Termino, citando Polónio, personagem de Hamlet, no ano em que se comemoram os 400 anos da morte de Shakespeare: não empreste nem peça emprestado — quem empresta perde o amigo e o dinheiro; quem pede emprestado já perdeu o controlo da sua economia…
Professor universitário