Bem mais dependentes do que daquilo que possuem, os povos são produto da forma como pensam. Uma dose necessária de pessimismo permite constatar não ser raro que as ameaças à vitalidade de um pensamento coletivo genuíno e saudável resultam do empenho das elites académicas, intelectuais ou culturais. Nisto, a sociedade portuguesa tem sido suficientemente fértil. Ilustrar a questão torna dispensável o recurso a exemplos de países onde hoje se espraiam fundamentalismos religiosos ou revolucionários.

Supondo que vivemos num tempo em que se tolera a liberdade de pensamento, muito em particular num espaço institucional protegido e formalmente destinado a tal propósito, a sala de aula, sugiro um modelo de sessão em que um adulto (docente) dirige um grupo de adolescentes (alunos), por hipótese entre os 14-15 anos (não necessariamente), aos quais é fundamental que se transmitam valores ou princípios que sustentem a viabilidade e qualidade da vida coletiva. É sobretudo para isso que serve a escola.

Comece-se por escrever no quadro da sala de aula dois conjuntos distintos (ou caixas) contendo princípios que servem para orientar a forma como os governos (e demais poderes) tutelam ou regulam as respetivas sociedades. De um lado, Deus, Pátria, Família, Autoridade, Ordem. Do outro lado, Democratizar, Descolonizar, Desenvolver, Liberdade, Direito de Participação Política.

Dispensando introitos (explicativos, doutrinais, normativos, filosóficos ou historiográficos), isto é, sem qualquer ‘lavagem cerebral’ prévia com o propósito de levar ao limite o respeito pelo próximo – pela sua sensibilidade, intuição, liberdade de pensamento, bom senso, inteligência de senso comum –, no passo seguinte o adulto solicita, em jeito de dilema, à plateia adolescente que opte por um dos conjuntos e que justifique as suas escolhas.

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É provável que o adulto que dirige a sessão se depare com escolhas para os dois campos, em qualquer dos casos sustentadas em argumentos convincentes e, por isso, legítimos. Mais do que isso, o adulto pode ser confrontado com a recusa de alguns participantes em separarem, por exclusão de partes, um conjunto do outro por se revelarem inábeis em identificar maniqueísmos no que lhes está a ser proposto.

À maneira dos países com forte propensão revolucionária ou ‘progressista’, em Portugal é bastante plausível supor que, no passo seguinte, a sessão entre numa fase em que o adulto se descarta do esforço de neutralidade para vestir, com orgulho, a pele de ‘missionário da consciência cívica’. Passa a convencer pelo maniqueísmo ou, em bom rigor, a distorcer no pior sentido a riqueza e a diversidade das escolhas dos adolescentes. Para isso, a plateia é confrontada com um rol de argumentos ‘histórico-científicos’ imbatíveis.

Em linguagem maoísta, passada a primeira fase em que se deixaram ‘desabrochar cem flores’, entra-se no ‘grande salto em frente’ no qual o adulto comprova aos adolescentes que o primeiro conjunto é negativo (‘mau’) e o segundo positivo (‘bom’). A sessão termina em apoteose: a glorificação dos ‘Valores de Abril’.

Não é de admirar, por isso, que ao longo de muitos e muitos anos de frequência escolar os alunos que à partida se identificavam com a utopia oficial sejam os intelectualmente mais ativos. Porém, esse grupo pode ser residual comparativamente a uma maioria que habitualmente não se pronuncia porque, desde o pré-escolar à universidade, a escola demonstrou os erros das suas intuições ou seu elementar bom senso. Os que imaginam compensar essa frustração fora da escola sabem ser quase impossível ou até arriscado.

Numa sociedade que gere o pensamento desta forma, não é de admirar também que à medida que as crianças e adolescentes se tornam adultos o seu pensamento crítico tenda a limitar-se a certos estereótipos em prejuízo da qualidade da vida cívica. Assim se percebe por que razões certas sociedades pensam como pensam, bem como por que razões umas sociedades são mais férteis, equilibradas e viáveis do que outras.

Não menos, torna-se extraordinariamente difícil perceber e explicar o elementar. Por um lado, os obstáculos a uma regulação mais saudável da vida social não estão nos princípios ou valores referidos, antes naquilo que determinados regimes políticos fizeram, fazem ou poderão fazer a partir deles. Por outro lado, a melhor forma de nos livrarmos de regimes políticos perversos é a de resgatarmos deles valores ou princípios de regulação da vida social que o simples bom senso considera úteis no presente. Caso contrário, a pretexto de se condenarem regimes políticos ilegítimos, afundamos as sociedades no seu todo com eles.

Já agora, se a ditadura de Salazar valorizava os exames nacionais compete a um ‘verdadeiro democrata’ odiá-los para sempre. Será isto razoável?

Em suma, na relação dos portugueses com o seu passado residem os enigmas que explicam os bloqueios coletivos do presente.