Uma andorinha não faz a Primavera, mas pode anunciá-la. O surpreendente crescimento da economia no primeiro trimestre tem de ser confirmado, especialmente na segunda metade do ano. Para isso precisamos de não “embandeirar em arco”, como alertou o Presidente da República. Temos de evitar asneiras de política económica internamente e, na frente europeia, é necessário que a política seja mais compreensiva, em matéria de dívida pública, e a conjuntura económica continue a melhorar. Embora os problemas sejam, por causa da dívida, mais graves agora do que nessa altura, podemos, de facto, estar a ver a história repetir-se, com o PS de António Costa a desforrar-se do PSD de Aníbal Cavaco Silva de 1985.

Os dois anteriores pedidos de apoio ao FMI e as políticas de austeridade, na altura adoptadas, foram protagonizadas pelo PS com Mário Soares como primeiro-ministro. O primeiro acordo e ajustamento realizado com o Fundo (1977-1979) foi assinado por um governo de coligação entre o PS e o CDS, e os socialistas perdem as eleições em 1979. No segundo programa (1983-1985) é mais uma vez Mário Soares que lidera o Governo, numa aliança com o PSD, e o PS perde as eleições em 1985, ficando uma década fora do poder, com Aníbal Cavaco Silva a garantir duas maiorias absolutas (1987 e 1991).

As causas do segundo pedido de ajuda ao FMI são, ainda hoje, alvo de divergências entre os economistas. Em 1979 ocorre o segundo choque petrolífero (o primeiro foi em 1973), ao mesmo tempo que o dólar sobe e as taxas de juro também. Os governos da altura não adoptaram qualquer tipo de medidas – que teriam de ser de tipo recessivo -, que evitassem o agravamento das contas externas e, como consequência, a subida da dívida do país. Bem pelo contrário. Era Aníbal Cavaco Silva ministro das Finanças (Janeiro de 1980 a Janeiro de 1981), quando o Governo na altura liderado por Francisco Sá Carneiro resolve valorizar o escudo, agravando ainda mais as condições competitivas dos exportadores portugueses, mas dando ao eleitorado a ilusão de prosperidade.

Como se pode ler em “A economia portuguesa desde 1960”, de José da Silva Lopes, “apesar dessas condições adversas, o governo adiou enquanto pôde as medidas de correcção do desequilíbrio externo que se impunham: em 1980 foi mesmo ao ponto de, por razões de campanha eleitoral, se lançar na expansão da procura interna e de valorizar o escudo, retirando competitividades às produções nacionais”. Nessa altura Cavaco Silva era ministro das Finanças e quem lhe sucedeu também nada fez, até que Portugal ficou mais uma vez na situação de ninguém lhe querer emprestar dinheiro – na altura os mercados financeiros não estavam desenvolvidos como actualmente.

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Será Mário Soares que mais uma vez protagoniza o pedido de empréstimo ao FMI, sendo na altura Ernâni Lopes ministro das Finanças e Vítor Constâncio no Banco de Portugal na altura como vice-governador. A negociação com o FMI deste segundo resgate foi naturalmente mais dura – uma segunda crise de balança de pagamentos em menos de dez anos – e custou ao PS, apesar de coligado com o PSD, a derrota nas eleições de 1985, ano em que a economia cresceu já cerca de 3%. (Vale a pena recordar, na actual conjuntura de critica ao FMI e especialmente da má-vontade que o Governo de António Costa tem revelado, em relação à nomeação da então chefe da missão portuguesa Teresa Ter-Minassian para o Conselho de Finanças Públicas, que existiu da parte do Fundo flexibilidade nas medidas a adoptar, que poderiam ter sido mais duras, conforme testemunhos de quem participou nas negociações).

Aníbal Cavaco Silva ganha as eleições em 1985 herdando uma economia que, passada a cura recessiva, estava equilibrada na frente interna e externa. Mas além disso é protegido pela sorte e beneficia de um choque petrolífero “ao contrário”: o preço do petróleo cai para quase metade (de 28 para 15 dólares o barril) e o dólar desvaloriza. Foi possível assistir, por exemplo, à queda simultânea da taxa de desemprego e da inflação. E em 1986 a economia estava a crescer 4% quando em 1984 tinha caído cerca de 2%. Paralelamente começam a entrar os fundos europeus com a adesão de Portugal à então CEE, a 1 de Janeiro de 1986 (com o tratado assinado no ano anterior ainda com Mário Soares como primeiro-ministro). Em 1987 Aníbal Cavaco Silva consegue a sua primeira maioria absoluta.

Olhando hoje para trás percebe-se que a vitória eleitoral de Cavaco Silva se fez à custa das políticas que Mário Soares teve de aplicar, para evitar a bancarrota, e graças a um conjunto de eventos externos favoráveis que “enriqueceram” conjunturalmente o país – a queda simultânea do petróleo e do dólar e a entrada de fundos europeus. Teve a sorte do seu lado.

Uma história que parece estar a repetir-se. Como se Mário Soares se estivesse a desforrar de Aníbal Cavaco Silva, através de António Costa. E que só pode dar ao PS um enorme prazer. As semelhanças são enormes, com a pequena grande diferença do peso da dívida, pública e privada.

O actual primeiro-ministro recebeu das mãos de Pedro Passos Coelho uma economia reequilibrada na frente externa, com as contas públicas mais disciplinadas e com o sector exportador e do turismo já em alta. Mas, na frente externa, a política europeia, a perspectiva de o BCE começar a deixar de comprar dívida pública e uma conjuntura económica muito instável não faziam prever que António Costa pudesse desforrar Mário Soares. Foram aliás esses os três principais factores que justificaram as preocupações levantadas, há um ano, com a política orçamental de António Costa. Pressupôs-se que nem Bruxelas nem os investidores financeiros iriam dar a Costa margem de manobra para retirar benefícios desse reequilibro da economia.

Mas a hipótese de “ceteris paribus”, tão usada pelos economistas, não se confirmou. Bruxelas ficou mais flexível e o Governo soube capitalizar essa flexibilidade, no domínio orçamental mas também na frente europeia em geral – a eficácia da sua acção está bem exemplificada na capitalização da CGD sem classificação de ajuda externa. O BCE manteve as compras de dívida pública e o Governo, assim que pode, foi alargando a base de aquisições do banco central, antecipando amortizações ao FMI com dívida de mercado – os resultados começam agora a ver-se com a queda dos juros. Finalmente, apesar do Brexit e de Donald Trump, as economias europeias estão finalmente a recuperar.

Claro que as mensagens de confiança, eficazmente transmitidas pelo primeiro-ministro e com actos basicamente limitados à recuperação de rendimentos da função pública, também contribuíram para essa reanimação da economia. Mas o optimismo, só por si, sem nada de objectivo em que se apoiar, não funciona. Veja-se a última fase do Governo de José Sócrates, quando apesar de todos os discursos, a economia afundou vítima de estrangulamento financeiro por excesso de dívida.

António Costa está assim a aproveitar o bom estado em que recebeu a economia e o enquadramento externo favorável – tal como Cavaco Silva em 1985 – para conquistar eleitores. Porque é que só agora se consegue ver isso? Exactamente porque os ventos externos se tornaram mais favoráveis. Também Cavaco Silva em 1985 não teria atingido aqueles objectivos se o petróleo e o dólar não tivessem caído – com uma política expansionista arriscávamo-nos a ter cá de novo o FMI.

É interessante como a história se parece repetir. O PS de António Costa parece agora ter condições para fazer ao PSD de Pedro Passos Coelho aquilo que o PSD de Aníbal Cavaco Silva fez ao PS de Mário Soares. Claro que os desafios são hoje maiores por causa da dívida e é preciso esperar pelo segundo semestre para se confirmar totalmente esta desforra do PS. Mas que a história parece repetir-se, isso parece. Com o PS e o PSD a trocarem de papéis.