A investigação aos contratos da EDP e da REN pode não levar a lado nenhum, mas pode mesmo assim ter uma enorme virtude: recordar-nos como em Portugal os maiores negócios e os maiores lucros envolvem quase sempre dinheiros públicos e custos para os contribuintes ou para os consumidores. E também para nos recordar como houve, e ainda parece haver, quem fique sempre a ganhar, sendo que o circuito do dinheiro teve estações obrigatórias e “rentistas” habituais.

António Mexia, o poderoso presidente da EDP, deu uma conferência de imprensa para se defender e garantir que tudo o que fez era legal e no interesse da empresa. Não duvido. A empresa saiu a ganhar, e muito. E quanto às leis, estas foram feitas à medida. Não estou a dizer que houve corrupção – estou apenas a dizer-vos que boa parte dos lucros milionários da EDP só são possíveis porque nas nossas facturas de electricidade vêm umas parcelas, relativas aos chamados custos de interesse geral, que apenas lá estão para garantir que a empresa não perde dinheiro. Na prática, para ter a certeza de que ganha muito dinheiro.

O tema é técnico e complexo, passa por algumas siglas estranhas, mas vale a pena tentar explicá-lo brevemente.

Tudo começou há mais de duas décadas, era ministro Mira Amaral e pretendia-se atrair investimentos estrangeiros para construir centrais eléctricas. Isso foi feito através de mecanismos que incluíram fórmulas de “project finance” (onde é que já ouvimos isto?) e contratos, designados CAE, que asseguravam aos investidores a rentabilidade dos seus investimentos. Esse tipo de contratos foi depois alargado à EDP.

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Os CAE, no essencial, eliminavam o risco do investimento e garantiam os lucros futuros. Houvesse ou não clientes para a energia produzida nas centrais da EDP, o Estado (via consumidores de eletricidade) pagava a diferença. Ou seja, a EDP (que então ainda era pública mas que se queria vender bem cara na privatização), tal como os outros operadores, investiam sem risco, pois este ficava para os contribuintes ou para os consumidores.

Ou seja, a lógica destes contratos não era muito diferente da lógica das PPP rodoviárias: nestas, se houvesse tráfego e os concessionários cobrassem portagens, os lucros eram deles; se não houvesse tráfego, o Estado garantia a diferença e a chamada “rentabilidade do investimento”.

Quando em 2004 o Estado quis renegociar estes contratos em nome da liberalização do mercado ibérico, a EDP acabou a trocar os CAE pelos CMEC. Não vale a pena ligar muito às siglas, o essencial é perceber que o mecanismo de compensação se tornou mais complexo, tão complexo que hoje a EDP garante que ele é neutro por comparação com os CAE, enquanto há quem jure que ele é muito mais favorável para a EDP. O essencial manteve-se: estejam ou não as centrais da EDP a funcionar (ou as duas centrais privadas ainda abrangidas pelos CAE), existam ou não consumidores a ligarem os seus frigoríficos ou micro-ondas, o Estado, via preços inflaccionados de eletricidade, garante um pagamento que cobre todos os custos e ainda o retorno, com juros generosos, do investimento inicial. São estes pagamentos que constituem as famosas “rendas” do sector eléctrico.

Perguntar-se-á: mas que necessidade havia? Afinal alguns dos equipamentos abrangidos por estes contratos eram velhas centrais hidroeléctricas, não era necessário atrair investimento estrangeiro, as barragens já lá estavam há décadas, e isto só para dar um exemplo.

Há várias explicações, nenhuma delas boa.

A primeira já referimos atrás: este tipo de contratos sempre assegurou os lucros futuros da EDP, o que significou que a empresa sempre valeu muito dinheiro em qualquer das fases da sua privatização. Um Estado sôfrego de receitas para abater na dívida pública acabou sempre a sacrificar o futuro em nome do presente, e isso foi feito por vários governos e vários ministros das Finanças. A EDP era o porco que as rendas engordavam para que depois pudesse ser vendida mais cara — a portugueses como a chineses.

A segunda explicação tem a ver com o timing do fecho do contrato dos CMEC, 2007. Nessa altura o Governo de José Sócrates tinha dois problemas para resolver: por um lado, queria evitar um aumento de 16% nas tarifas eléctricas, um aumento que decorria da necessidade de recuperar o défice tarifário numa altura de liberalização do mercado, da alta do preço dos combustíveis e da factura das renováveis; por outro lado estava, como sempre estão os governos, sequioso de dinheiro para assegurar as metas do défice, e a EDP oferecia-se para pagar mais 750 milhões de euros pela prorrogação das licenças de exploração de dezenas de barragens. De novo a lógica foi pague-se no futuro (contribuintes e consumidores) o que eu preciso de gastar hoje, para mais com a vantagem adicional de evitar um aumento das tarifas politicamente impopular.

A terceira e última explicação decorre de conhecermos os grandes protagonistas deste acordo: o primeiro-ministro José Sócrates, o seu ministro da Economia Manuel Pinho e o presidente da EDP António Mexia. A cumplicidade entre os três era notória como se pode ver ao minuto 2.01 deste vídeo:

Mas na verdade os três mosqueteiros eram quatro, pois em Janeiro de 2006, antes de concluído o processo dos CMEC, o Banco Espírito Santo tomou uma participação qualificada na EDP. Ricardo Salgado, que em breve seria conhecido como o “dono disto tudo”, entraria assim na EDP três meses antes de Mexia ser nomeado CEO – um Mexia que, mesmo que indicado por Paulo Teixeira Pinto do BCP, tinha sido administrador do BESI entre 1990 e 1998 e erada confiança de Salgado. Tudo isto na mesma EDP onde o Estado ainda era o principal accionista, sendo que o ministro da tutela, Manuel Pinho, também era um quadro do BES. Quanto a António Mexia, passariam poucas semanas até este começar a desempenhar um papel central – sem se perceber muito bem a que título – no assalto ao BCP, um processo que culminaria com a nomeação de Carlos Santos Ferreira e Armando Vara para a administração do banco fundado por Jardim Gonçalves e que era o principal concorrente do BES.

Nada disto foi feito às escondidas, assim como não foi às escondidas que Manuel Pinho, depois da cena dos “corninhos”, foi dar aulas para a Universidade de Columbia, em Nova Iorque, num curso subsidiado pela EDP. Foi feito tão às claras que mais tarde a própria EDP convidaria um conjunto de jornalistas para irem a Nova Iorque a um evento que, imagine-se lá, “coincidiu” com uma palestra de José Sócrates na mesma universidade, palestra essa que passaria à história como a do “bad english”.

Claro que tudo isto podem ser coincidências. E também pode acontecer que a investigação agora em curso não se refira apenas às condições em que EDP passou os seus CAE a CMEC, mas à forma como desde então foram contabilizadas as compensações a pagar pelo Estado nos preços de energia. Não sabemos. Mas temos memória e não nos esquecemos desse tempo em que ocorreu uma rara concentração de poder político nas mãos de um primeiro-ministro, José Sócrates, e e uma não menos rara concentração de poder económico nas mãos de um banqueiro, Ricardo Salgado.

O que aconteceu nesses anos – e que terminaria com o país na bancarrota e o grupo Espírito Santo destroçado – foi apenas o expoente máximo daquilo a que os anglo-saxónicos chamam “crony capitalism” e que, para nossa desgraça, é a variedade de capitalismo que tem vingado em Portugal: aquela em que o sucesso empresarial depende mais das boas relações com o poder político do que do mérito dos projectos e do livre jogo do mercado. De resto, sem os gigantescos lucros em Portugal, dificilmente a EDP teria conseguido lançar-se nos seus investimentos internacionais.

Neste caso, repito, contratos como os CMEC, que pesam todos os meses na factura da electricidade, são em tudo semelhantes a muitos contratos das PPP rodoviárias, cuja factura cai todos os anos no Orçamento de Estado. O risco fica sempre do lado Estado, os lucros do lado dos felizardos que assinam esses contratos.

Agora encalhámos na EDP e as atenções voltaram-se para António Mexia, o que nos faz recordar toda a teia de relações existente nos tempos de Pinho, Sócrates e, claro, Salgado. Ou seja, encalhámos nos mesmos. Mas que não são os únicos, bem pelo contrário, já que boa parte dos grandes empresários portugueses sempre necessitou de se encostar ao Estado para singrar – foi assim no século XIX quando perdemos a Revolução Industrial, foi assim em grande parte do século XX, quando éramos “pobretes mas alegretes”, ainda continua a ser assim neste trista século XXI de estagnação e desilusão.

Economias assim chamam-se “economias extractivas”, onde só uns poucos, protegidos por instituições corruptas, beneficiam de sugarem a riqueza colectiva. São também economias condenadas à pobreza relativa, como bem se explica em “Porque Falham as Nações”, a obra de Daron Acemoglu e James Robinson que já recomendei muitas vezes e que, se ainda não leram, bem podem aproveitar os descontos da Feira do Livro.

É que da EDP não deverão esperar qualquer desconto – como até a troika percebeu, todos estes contratos estão blindados. As “rendas” vieram para ficar por muitos e longos anos. Algumas por mais dez anos.