Recorro, ou socorro-me, de uma lapalissada para contextualizar o problema. A urgência hospitalar tem um propósito claro, que hoje poucos saberiam identificar: tratar casos urgentes. Se agora é mais difícil perceber o verdadeiro intento das urgências hospitalares, não o era na 1ª Grande Guerra, quando o serviço se generalizou — o seu propósito era tratar feridos de guerra, casos de vida ou de morte que requeriam tratamento imediato. O que naturalmente exclui gripes ou dores de cabeça.

O último relatório sobre o acesso ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), intitulado “Relatório Anual sobre o Acesso a Cuidados de Saúde nos Estabelecimentos do SNS e Entidades Convencionadas de 2014”, afirma que 40% dos pacientes atendidos em urgência hospitalar não eram casos urgentes. Isto coloca diversos problemas no SNS. Em primeiro lugar, o custo/hora de uma urgência hospitalar é significativamente superior ao de uma consulta prestada fora da urgência. Mais importante ainda, o recurso permanente aos serviços de urgência põe em causa a boa prestação de cuidados a casos efectivamente urgentes, no sentido em que mobiliza recursos humanos e físicos para casos não-urgentes. Mesmo considerando que a triagem de Manchester garante alguma priorização, é inegável o impacto na qualidade dos serviços prestados.

Como resolver o problema? Diferentes países recorrem a diferentes métodos para moderar o acesso às urgências hospitalares. Em alguns hospitais franceses era necessária uma prescrição médica para aceder aos cuidados de urgência, quando não fosse óbvia a premência do caso. Na Suécia a mediação é feita através da prestação de cuidados urgentes, acessíveis mediante um contacto telefónico com uma linha semelhante à da Saúde 24, que os autoriza (ou não). Os cuidados urgentes são um ponto intermédio entre os casos não-urgentes, que podem ser prestados por cuidados primários, e as emergências decorrentes de acidentes rodoviários ou um AVC, que requerem auxílio imediato.

O caso português requererá, porventura, uma abordagem própria. Embora a rede de cuidados primários tenha vindo a ser reforçada, em particular com a criação das Unidades de Saúde Familiares (USFs) e com a atribuição de médico de família, o recurso às urgências hospitalares está socialmente institucionalizada. Como tal, há que internalizar isto na estratégia a ser seguida. Neste sentido, uma solução possível consistiria na referenciação interna no serviço de urgência para uma USF ou centro de saúde nas imediações do hospital, que dê seguimento imediato ao tratamento não-urgente. Adicionalmente, diferenciar de forma mais pronunciada as taxas moderadoras para cuidados urgentes e não-urgentes, criando um incentivo económico à utilização dos cuidados primários em detrimento dos cuidados urgentes. Finalmente, e porque os centros de saúde não prestam serviço nocturno, incorporar a capacidade instalada disponível no sector privado, negociando pacotes de prestação de cuidados primários não-urgentes. Por forma a evitar que cuidados desnecessários sejam prestados, o gateway de acesso continuaria a ser o sistema de referenciação das urgências, ou, em alternativa, a linha de Saúde 24.

Nenhuma destas propostas resolverá integralmente o problema, mas poderá ajudar a minorá-lo. A Organização Mundial de Saúde (WHO) é contundente na prescrição: para garantir a sustentabilidade futura dos sistemas nacionais de saúde é imperativo — urgente — fomentar o recurso aos cuidados primários e libertar recursos nos hospitais. E isso requer garantir que as urgências servem o seu propósito basilar: casos urgentes.

Professor da Universidade do Porto, doutorando em economia da saúde

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