Primeiro que tudo, absoluta claridade: se tivesse podido votar no referendo italiano, votaria “não” sem qualquer hesitação. Ou estado de espírito. E fá-lo-ia porque a reforma proposta pelo primeiro-ministro demissionário Matteo Renzi é uma reforma errada e, no caso italiano, perigosa. Muito perigosa mesmo.
O que é extraordinário em todo o psicodrama que se criou em torno desta consulta eleitoral é que enquanto os jornais, as rádios e as televisões se enchiam de previsões catastrofistas sobre as consequências de um “não”, poucos ou quase nenhuns se preocuparam em explicar o que estava em causa, o que ia ser votado, quais os argumentos a favor e contra. O guião foi sempre o mesmo: de um lado, um Renzi europeísta; do outro, um bando de populistas. Poucos se interrogaram sobre o porquê de figuras como Mario Monti irem votar “não” – essa “dissidência” não encaixa no guião do momento, em que tudo o que sai da norma é de imediato catalogado como “populista” ou mesmo de “extrema-direita”.
O Financial Times, essa bíblia da elite europeia, escrevia aqui há uns dias que “os eleitores são hoje o elo fraco da Europa”. É uma formulação verdadeiramente extraordinária, pois coloca o mundo de pernas para o ar. O elo fraco da Europa é a própria Europa, ou mais exactamente uma União Europeia construída de forma pouco democrática, para não dizer quase autocrática. Ora uma Europa onde as elites têm medo dos cidadãos não é muito diferente da França da corte de Luís XVI, a quem a plebe horrorizava – é uma Europa surda à realidade, autista na sua autossuficiência.
É por isso necessário saber separar o trigo do joio, e podemos começar precisamente por Itália e pelo seu referendo. Eu votaria “não” porque – tal com os editorialistas da The Economist e do The Observer, para citar dois jornais de orientações diferentes – penso que, primeiro, a Itália precisa sobretudo de reformas económicas; e, depois, que a solução para os bloqueios do sistema político italiano não passavam por alterações constitucionais que davam excessivo poder ao primeiro-ministro e ao seu partido.
Em Itália os governos são pouco estáveis? São: vamos para o 63.º executivo em 70 anos. Mas durante muitas décadas a Itália funcionou e cresceu mesmo com essa instabilidade governativa. Pior, bem pior, era a corrupção endémica, mas essa sofreu um rude golpe com a operação “Mãos Limpas”, que limpou o sistema político e transformou o mapa partidário. Mais: a instabilidade governativa é filha do cuidado que os autores da Constituição italiana tiveram para evitar uma excessiva concentração de poderes, pois a memória dos tempos de Mussolini estava bem fresca.
A reforma constitucional que Matteo Renzi propunha não se limitava a reequilibrar um regime constitucional que, passados 70 anos, pode precisar de um ajuste: subvertia literalmente o sistema de pesos e contrapesos que limitam o poder do executivo. Conjugada com a lei eleitoral que daria um enorme bónus eleitoral ao partido mais votado, permitiria que uma força política com o apoio de um terço do eleitorado ou pouco mais pudesse ter uma maioria absoluta na câmara baixa do Parlamento ao mesmo tempo que a câmara alta passava a ter um poder quase decorativo, como o que já hoje tem o Presidente da República, e com as regiões perderem também prerrogativas.
Não deixa de ser paradoxal que um primeiro-ministro que chegou ao poder através de uma viragem orquestrada no interior do seu próprio partido tenha querido criar um sistema próximo de uma “ditadura de primeiro-ministro”. Tal como é significativo que, ao mesmo tempo, o Renzi “reformista” tenha há muito estava desaparecido em combate, aparecendo agora a adoptar políticas populistas – isso mesmo: populistas – destinadas a tentar recuperar apoio popular a tempo de ganhar o referendo. Perdeu a sua aposta, e perdeu de forma clamorosa. E felizmente que perdeu agora, pois era pior – digo eu hoje por hoje, com aquilo que hoje se sabe – que perdesse daqui por uns tempos, em próximas eleições e para um Movimento 5 Estrelas em alta nas sondagens.
O equilíbrio de poderes é um dos aspectos mais sensíveis de uma arquitectura democrática, sendo que a democracia é o regime do governo limitado pela lei e por outros poderes que o fiscalizam e controlam. Não é o regime do chefe referendado em eleições, por mais livres e justas que estas sejam.
Escreveu-se assim direito por linhas tortas – isto é, evitou-se um mal maior através de um mecanismo referendário, o tal que por definição é susceptível de ser deturpado por argumentos populistas.
Mas não me fico por aqui. A derrota das elites europeias neste referendo, tal como a sua derrota no referendo do Brexit, não teve como consequência a catástrofe económica que logo se abateria sobre os povos mal comportados e, por arrasto, todos nós. A economia do Reino Unido continua a comportar-se melhor do que a da zona euro e, sendo ainda cedo para perceber o que se vai passar em Itália, no dia a seguir ao referendo não houve nenhuma reacção de pânico.
É pois altura de serenar e procurar separar o trigo do joio. O populismo é, não se tenha dúvida, um “espectro que paira sobre a Europa”, como notava recentemente o Journal of Democracy, mas não podemos cair da tentação de os enfiar todos nos mesmo saco, de os tratar todos da mesma forma. Pode ser muito conveniente para os que condenam qualquer desvio à ortodoxia europeísta, mas a verdade é que não existem diferentes tipos de populismos (nesse mesmo número do Journal of Democracy há mesmo um interessante ensaio do cientista político grego Takis S. Pappas a esse propósito), como há sólidos argumentos democráticos entre os cépticos da construção europeia.
Há muitos anos que venho defendendo a necessidade de as elites europeias escutarem com humildade a mensagem que lhes está a ser enviada pelos eleitorados. Mais: como a imprensa dos Estados Unidos parece começar a reconhecer, é igualmente importante que os jornalistas deixem de circular apenas entre essas elites e procurem ir ao encontro dos que não se sentem representados pelos actuais sistemas políticos – algo que só depois do choque da eleição de Donald Trump alguns parecem dispostos a fazer.
Ora o que continuo a notar é o contrário. No dia em que o candidato a direita radical austríaca recolhe 47% dos votos numa eleição presidencial, deitam-se foguetes e há mesmo quem titule que a “maré” está a virar. Esta cegueira é inquietante pois não permite perceber o que levou eleitores tradicionais, de décadas, dos sociais-democratas e dos cristãos-democratas, a votarem no candidato do FPÖ. Ou a não entenderem que a eleição de Alexander Van der Bellen, o candidato “verde”, não se deve ao seu “cosmopolitismo” europeísta, antes a um voto contra Norbert Hofer. Os sentimentos que sustentaram o crescimento do FPÖ não desapareceram de um dia para o outro e haverá um preço elevado a pagar se não o percebermos.
De resto, repito, falar de “populismos” começa a ser a forma mais confortável de certas elites europeias fazerem ouvidos moucos às preocupações reais dos eleitorados.
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