Argumentar. Contra-argumentar. Nada disso interessa. E nem sequer é útil. O que temos de fazer é estudar afincadamente a Revolução Francesa. Caso contrário isto acaba mal. O governo de esquerda, mais o bater do pé a Bruxelas sem esquecer os arrebatamentos patrióticos com a soberania… tudo isto nos conduz ao mesmo paradoxo: nada do que nos está a acontecer é racional ou sequer ideológico. O nosso problema é o iluminismo jacobino, esse período/modo de ser em que umas criaturas se achavam melhores que as outras e como tal se entendiam não só predestinadas para mandar como não aceitavam quaisquer limites à sua vontade.
Baseados nessa convicção, eles que se achavam iluminados, fecharam os olhos à loucura que em seu nome se instituía. Primeiro diziam-se contra as injustiças. Depois contra os reaccionários, contra os suspeitos fosse isso o que fosse, contra os ultra-montanos, contra os camponeses que se obstinavam em recorrer secretamente ao calendário antigo para não se enganarem nos dias das sementeiras….
Por fim, quando já não havia mais aristocratas, nem padres, nem cientistas como Lavoisier para guilhotinar, nem gentes da Vendeia para afogar viraram-se contra si mesmos, porque nunca eram suficientemente puros, porque tinham traído, porque… Não interessa. Havia sempre um motivo.
A falência do modelo socialista – e ele tinha necessariamente de falir porque foi concebido para redistribuir a riqueza e não para a produzir – fez os socialistas não só descrer de Marx como, e esse é o nosso drama actual, fê-los regredir para Robespierre. Ver os actuais líderes dos socialistas portugueses a fazerem acordos com o BE ou os socialistas espanhóis a ponderarem uma aliança com uma criatura como Iglesias não é um problema político. É um problema civilizacional.
Dir-me-ão: aqui e agora ninguém vai levantar guilhotinas nem meter cabeças em cestos. Pois não. Porque felizmente para todos nós os valores desse agora tão abominado centro se impuseram ao longo das décadas. (Contudo deixo um aviso: a tolerância da civilidade demora muito mais tempo a ser instituída do que a barbárie dos radicais a regressar). No mais as técnicas, a crescente irracionalidade e o maniqueísmo dos iluministas que andaram adormecidos pelas carbonárias e pelos movimentos extremistas estão aí, agora dominantes porque avalizados pelo exercício do poder com partidos outrora do centro.
Os falhanços, as dificuldades e os erros são sempre explicados pela fulanização odienta dos outros. Em Portugal, o esboço de orçamento levanta dúvidas? A culpa é de quem governou antes, das agências de rating e de Bruxelas. Em Madrid o lixo cresce nas ruas mas o que interessa à “alcaldesa roja” que tem umas ideias peregrinas sobre a limpeza das cidades é apagar da toponímia qualquer eco do franquismo. Quanto mais lixo no chão mais franquistas para apagar. Ainda vai inventar franquistas de tal forma cresce o lixo!
Inevitavelmente os velhos aliados de ontem tornam-se no inimigo de hoje. Veja-se como em Portugal, em poucas horas o Tribunal Constitucional se tornou no bombo da festa dos mesmos que na véspera viam no TC o salvador da Constituição e também da economia do país (na série “Contos maravilhosos e de encantar sobre o crescimento económico” foi atribuído aos vetos do TC o poder de dinamizar a economia!) Uma decisão impopular (por sinal divulgada mesmo a tempo de destruir o que restava da candidatura de Maria de Belém) bastou para reverter em negativo a imagem até então solar do TC.
Percebeu o TC a mensagem? Se não percebeu vai perceber – é assim que as coisas funcionam. Duvidam? Olhem para Catarina Martins. Ouçam-na a dizer que o Presidente da República terá de promulgar “Quer queira, quer não” os diplomas que vetou. Já agora quantos dos que criticaram Cavaco leram a fundamentação que o Presidente fez dos vetos? Pois deviam ler e perceberiam que um dia se arrependerão de não o terem feito: independentemente das posições que se tenham nestas matérias – e as minhas não são necessariamente coincidentes com as de Cavaco Silva – as lacunas nos diplomas concebidos à pressa, unicamente para marcar a agenda, virão inevitavelmente a gerar situações bem complexas. Claro que nesse dia, tal como no passado sucedeu com outras “libertações” e “marcos históricos” decididos em função da propaganda, vão dizer que não sabiam, que não era para ser assim, que foram mal interpretados. Mas agora isso não interessa nada. Agora temos é de ir com a onda – e que bem acompanhado se vai nessa onda com tantos jornalistas, actores e demais artistas todos tão progressistas, todos sempre a dizer coisas giras, que parecem tão inquestionáveis! – e fazer declarações a dizer que os diplomas vão passar exactamente como estão.
Mas deixemos a matéria dos vetos e passemos aos vetos em si mesmos e ao “Quer queira, quer não” de Catarina Martins. Que não lembre a uma dirigente partidária que se acha primeira-ministra de facto de Portugal tendo obtido, em 2015, um quarto dos votos com que Cavaco Silva foi reeleito em 2011 e um quinto dos votos que o mesmo Cavaco Silva obteve em 2006, repito que não lhe lembre que o Presidente da República tem o poder de vetar não causa espanto: nos radicais a ignorância e a má fé confundem-se. Também não admira que o BE e seus compagnons das redes sociais recuperem o estilo das páginas do Père Duchesne, esses panfletos em que a infâmia sobre Maria Antonieta foi levado ao extremo e que no seu espalhar de ódio nos mostram como o facebook não inventou nada. Mas que o PS se associe a essa gente e que boa parte do centro direita viva entre o desconcertado e o quase incomodado o que define como “mais esta teimosia do Cavaco” dá bem conta da regressão no sentido darwiniano do termo que estamos viver.
É como se de cada vez que o BE e a ala jacobina do PS anunciam uma nova causa ou fulanizam num novo ou velho alvo o seu ódio tenhamos de viver esse momento com o fatalismo com que nos tempos da Revolução Francesa a moderação e o bom senso se calavam mal se ouvia o ruído das agulhas das tricoteuses.
Desde os tempos de Robespierre e do seu Comité da Saúde Pública (o jacobinismo é indissociável de uma ideia sanitária da sociedade) que se sabe que os radicais, invariavelmente minoritários, conseguem de facto mandar porque os desmandos dos revolucionários são aceites com fatalismo quer pelos moderados, que lhes reconhecem uma óbvia superioridade política, quer por aqueles que num passado recente se destacavam a denunciar os abusos e os falhanços do poder conservador e que perante a pesporrência e a mediocridade dos revolucionários se calam. Uns temerosos. Outros cúmplices.
A explicação do sucesso de Robespierre não está portanto no terror imposto pela guilhotina, nem nas festas ao Ente Supremo e à Deusa Razão nem sequer nas forquilhas da populaça. O seu sucesso radica em algo acontecido anos antes. Num acontecimento hoje quase esquecido: a queda de Turgot.
Contra Turgot, o homem a quem Luís XVI confiou a reforma da França revoltaram-se os aristocratas, o clero, os comerciantes, os proprietários… As reformas iniciadas por Turgot punham em causa velhos privilégios e proteccionismos. Entre os primeiros a conspirar contra as reformas de Turgot contava-se a própria familia de Luís XVI.
Ao fim de algum tempo Turgot foi afastado e substituído por um muito medíocre Clugny de Nuits que criou a Lotaria, suspendeu os chamados Éditos de Turgot, não mexeu nos direitos adquiridos de ninguém e sobretudo deu por boa a intenção da França de entrar em guerra com a Inglaterra que é mesmo que dizer que a França falida resolveu apoiar a Revolução Americana. Logo Clugny de Nuits apenas saiu do cargo porque morreu. Inesperadamente é certo mas sem ser contestado.
Anos depois veio a Revolução e todos aqueles que anos antes tanto tinham contestado a alteração da velha ordem trazida pelas reformas do moderado Turgot ficaram mudos perante as pilhagens, os impostos crescentes e as perseguições levadas a cabo pelo revolucionários.
Desde então qualquer candidato a Robespierre sabe duas coisas. A primeira diz-lhe que o seu principal aliado é o fatalismo das élites que aceitam a lógica revolucionária com a submissão inversa à energia com que pouco antes rejeitaram todas e quaisquer reformas. A segunda é que os radicais não têm de respeitar a legitimidade dos outros poderes. Os seus limites são apenas aqueles que ele e a sua gente traçam. Em conclusão: o problema não é Catarina Martins dizer que o Presidente da República terá de promulgar “Quer queira, quer não”. O problema é à esquerda e à direita aceitar-se essa alarvidade como um direito natural.
Aqui chegados espero que tenham percebido porque de facto não sei fazer desenhos.