De repente todos falam de crise do regime. Ou mesmo de fim do regime. Na entrevista que ocupa boa parte do livro que lhe é dedicado, Rui Rio quase coloca uma data para o evento: “O anterior regime caiu em 1974, com 41 anos (a partir da Constituição de 1933). Nós já comemorámos há algum tempo os quarenta anos deste…”

Tenho dificuldade em compreender a ligeireza com que se aborda assim o nosso regime – que é, afinal, a nossa democracia. Será que apenas se pretende uma mudança das regras, uma eventual passagem desta nossa III República para uma eventual IV República? Ou será que se acredita mesmo que é a democracia que está em risco? São coisas substancialmente diferentes – e não se percebe a vantagem de nenhuma delas.

Primeiro: será que a democracia corre realmente perigo? Ou que o estado de direito está em causa? Bem sei que, na emoção da detenção de José Sócrates, houve quem se precipitasse a falar de um “fim de regime” se a Justiça tivesse falhado, mas foram excitações desejavelmente momentâneas que, creio, em breve serão esquecidas.

Mais sério é o receio de que a situação de crise que vivemos – e vamos continuar a viver – possa por em risco a democracia. É uma preocupação que faz sentido, pois recordamo-nos como, no século XX, graves crises económicas antecederam derivas autoritárias em muitos países europeus. Acontece que três anos depois da chegada da troika, e ultrapassados os piores períodos, não creio que devamos temer a breve chegada de um proto-ditador. Os sinais, felizmente, não são esses.

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Bem sei que há quem defenda que já não vivemos sequer em democracia. Bem sei que há quem defenda que tudo o que sai do Governo é “antidemocrático”, tal como sei que há quem pense que democracia sem “democracia social” (seja o que for que isso signifique) não é democracia. Sei, mas não concordo: democracia é sobre regras, não sobre políticas. Em democracia os eleitores podem escolher políticas mais liberais ou mais socialistas, sem que dessas opções resulte qualquer dano para o regime desde que se cumpra a sua regra essencial: quando o povo desejar, pode substituir os seus governantes e escolher outras políticas de forma pacífica.

A discussão sobre se necessitamos de outro “regime”, ou de outra “república”, no sentido de mudar algumas das nossas regras de governo, é mais interessante e mais importante. Primeiro, porque é indiscutível um certo desencanto, quando não descontentamento, dos eleitores com o nosso sistema de partidos e a forma como funciona a democracia. Depois, porque o nosso modelo institucional, com os seus equilíbrios consagrados na Constituição e nas leis, nem sempre favorece os consensos necessários ao prosseguimento de políticas reformistas. É nesse sentido que muitas vezes se fala de “bloqueio” ou de “pântano”.

Regresso por isso à entrevista de Rui Rio, pois nela defende-se a necessidade de uma ruptura, mas não uma ruptura qualquer, pois Rio diz não acreditar que essa ruptura possa ser feita por pequenos passos”. Para ele “a ruptura terá de ser constituída por muitas medidas, umas pequenas outras maiores, mas que, no seu conjunto, transformem por completo, num curto espaço de tempo, a nossa realidade política”.

Não é claro, nem resulta claro da entrevista, que modelo alternativo de regime defende o antigo presidente da Câmara do Porto, mas o método é quase revolucionário. Sendo que também não se percebe muito bem os objectivos de tão radical ruptura. Há uma proposta reformista para o país? Qual? Há bloqueios insuportáveis? Quais? Há aliados? Só nos diz ser necessária a convergência entre o Presidente da República e o líder de um dos grandes partidos, o que é pouco.

Na verdade não é difícil identificar medidas capazes de melhorarem o nosso regime. No sistema eleitoral. No equilíbrio entre o poder legislativo e executivo e o poder judicial, a começar no Tribunal Constitucional. No financiamento dos partidos. Nas regras de pagamento aos altos quadros da administração e aos titulares de quadros políticos. Na descentralização e nas competências relativas do poder central e do poder local. A lista é longa, mas a prudência aconselharia a mudanças graduais, capazes de permitir que se fossem percebendo as consequências e avaliando o melhor caminho a seguir. Em democracia o gradualismo, a possibilidade errar e corrigir o erro, não é defeito, é virtude.

Se pensarmos com frieza, e sem pulsões revolucionárias, é difícil perceber, por exemplo, se ficaríamos melhor com um regime mais presidencialista ou trocando o sistema eleitoral proporcional por um maioritário. Onde é que essas mudanças nos ajudariam a melhorar a qualidade dos quadros políticos? Onde é que elas nos ajudariam a tornar o país mais governável, no sentido de o fazer mais propenso a aceitar reformas? Onde é que clarificariam tanto as condições do debate político como a possibilidade de construir políticas assentes em amplos consensos?

É que, apesar de tudo, os sinais de crise e ingovernabilidade até não são tão graves em Portugal como por vezes se diz, sobretudo quando nos comparamos com o que se está a passar noutros países europeus, onde o sistema de partidos está à beira da implosão, onde surgiram populismos e extremismos de todas as cores, onde há riscos de independentismos e onde os costumes são frequentemente violentos.

Em contrapartida, quando tentamos perceber porque é tão difícil fazer reformas em Portugal somos capazes de encontrar razões bem diferentes daquelas que colocamos sob do chapéu da “mudança de regime”. Um bom exercício é ler o livro que ex-ministro Álvaro Santos Pereira acaba de publicar, “Reformar sem medo”. Não para procurar os detalhes da intriga (que também são importantes), não para concordar com todas as reformas que propôs ou promoveu, mas para procurar perceber como é tão grande, tão enorme, a dissonância entre o que preenche os espaços de debate público e o que muitas vezes está em causa na acção governativa. Para perceber como a ideia de que tudo tem de ser público e “transparente” acaba por criar uma espécie de pano de cena que separa o que muitas vezes interessa do que são apenas prestações teatrais para consumo dos media, algo que é verdade no Parlamento ou na Concertação Social.

Do testemunho de Álvaro Santos Pereira resultam duas questões que nos deviam preocupar mais do que imaginar “rupturas”. A primeira, e talvez a mais importante, tem a ver com a dificuldade em construir não apenas consensos, como em governar em coligação. Se o actual governo chegar ao termo do seu mandato, será o primeiro governo de coligação que vai até ao fim em 40 anos de democracia (e sabe-se como isso esteve para não acontecer), e esta simples estatística mostra que temos um problema. Por outro lado, para além de problemas políticos conjunturais, era importante tentar perceber porque razão os nossos partidos de governo tendem a ser radicais na oposição e, depois, resultarem demasiado iguais no poder (algo que foi especialmente evidente nestes anos em que o PS que assinou o memorando de entendimento se transfigurou em anti-memorando). Isso é corrosivo para a relação entre eleitos e eleitores.

O outro ponto importante é o da permeabilidade das nossas instituições ao poder dos lóbis. Lóbis que tanto podem ser interesses rentistas de grandes empresas, como poderes sindicais fáticos. A transparência que há a mais na acção política do dia-a-ddia transforma-se aqui em opacidade.

Creio que será muito mais útil debater este tipo de problemas, e encontrar as boas soluções, do que falarmos, etérea e perigosamente, de grandes rupturas de regime. Até porque muitos dos nossos problemas são de cultura política e mediática, pelo que não desapareceriam de repente apenas por via de uma mudança do número de círculos eleitorais ou de uma nova lei de segredo de justiça. Não atiremos areia para os nossos próprios olhos.