Jamie Dimon, CEO do JP Morgan, dizia há dias que se um trader do banco fosse apanhado a negociar Bitcoins era despedido nesse mesmo segundo. Primeiro, porque era contra as regras do banco e, segundo, porque mostrava que era estúpido. Nunca pensei que ser simpático era uma das virtudes do CEO do maior banco de investimento do mundo, mas acho a opinião dele sobre o Bitcoin demasiado benevolente.

Como gosto de relembrar as pessoas, eu não sou economista. Por isso, quando tenho fenómenos económicos à minha frente (só durante 10 ou 12 horas por dia…) posso ter algumas dificuldades em termos de metalinguagem e de formalismo. Qualquer economista principiante me dá um baile em “ismos”, em grandes autores e pensadores do passado e em grandes correntes de pensamento. Podem chamar-me de casca-grossa, mas nutro um profundo desprezo por onanismos intelectuais. Se isto traz desvantagens numas coisas, traz grandes vantagens noutras. Entre estas, tenho que entender exatamente o que significam as coisas e nunca dou por autoevidentes afirmações de alguém só porque arrasta uma considerável autoridade. E como as pessoas que trabalham comigo também têm formações em áreas quantitativas e são pouco fluentes em economês, sou obrigado muitas vezes a explicar aquilo que aprendi para que as pessoas das ciências duras, como eu, compreendam.

Um dos exemplos que costumo dar para explicar a questão dos recursos é aquilo a que chamo de paradoxo do oxigénio e que se explica da seguinte forma: quando chegamos a uma bomba de gasolina, com a patroa e a miudagem, enchemos o depósito e pagamos metade dos componentes necessários ao funcionamento do motor de combustão que a viatura usa. O outro componente, que não só é fundamental para o funcionamento do motor, como para o nosso funcionamento, da patroa, da miudagem e da senhora da bomba, nós não o pagamos. Na verdade, o oxigénio é o mais crítico de todos os componentes em jogo neste problema, nada é mais necessário (útil) para todos os agentes económicos envolvidos e, no entanto, nem sequer entra no sistema económico. Não tem valor em termos económicos.

A razão física para isso é relativamente fácil de entender, para que a gasolina chegasse à bomba, alguém trabalhou para tirar o petróleo da terra, transportá-lo para a refinaria, refiná-lo, transportá-lo para a bomba e, finalmente, vendê-lo. O oxigénio chegou ali porque sim. A conclusão que se tira é que as coisas não têm valor intrínseco, valem o trabalho que dão para as querermos. Isto é, para que seja um recurso económico, um ser humano trabalhou nele. E esta é a característica comum a tudo o que é economia, aquilo que realmente se troca: trabalho.

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Ora, as coisas não têm valor intrínseco, mas têm o valor do trabalho para que sejam consumidas. Os economistas chamam-lhes bens, incorporam coisas, mas também trabalho de muitas pessoas. Aquele que foi usado para trazer as matérias-primas, mas mais, até o trabalho de ensinar as pessoas que o fizeram, a fazer. Não o trabalho que dão por si, mas o trabalho que dão para eu, consumidor, as ter. O aeroporto de Beja deu muito trabalho, mas como ninguém quer aquilo, não tem valor nenhum. O trabalho de que falamos é económico, não é dissipação de energia.

Ou seja, as coisas podem carregar o valor do trabalho até ser trocado e a economia pode ser baseada exclusivamente na troca de bens e serviços diretamente. Em inglês chama-se bartering, mas em português chama-se chatice. Imaginem andar a fazer conversões de uma hora de canalizador para 15 minutos de programador, de uma perna de ovelha para galinha e meia. E por isso, um sujeito muito esperto da antiguidade inventou uma coisa para fazer esse transporte de trabalho de forma muito fácil de dividir e chamou-lhe dinheiro. Algo que poderia trocar todos os bens e serviços na quantidade que quiséssemos. A diferença face a tudo o resto de que falámos é que não incorpora trabalho, apenas incorpora a promessa de ser entregue trabalho em troca.

Do ponto de vista físico isto é brutalmente abstrato e é aqui aparecem os custos do entendimento do dinheiro. Quando recebemos dinheiro pelo nosso trabalho isso representa o trabalho de alguém que nos será entregue no futuro. Mas em cada dia que passa há mais trabalho feito e, por isso, mais trabalho no futuro é esperado em troca. Isto é, em cada dia terá que haver mais dinheiro. Lindo, não é? E esta é uma das questões mais abstratas e apaixonantes daquilo que podemos observar da fenomenologia económica. Isto significa que o dinheiro não tem um valor absoluto, apesar da invariância óbvia do número impresso na face de uma nota ou moeda. O valor de 10 euros impresso naquela nota com um desenho pavoroso é, de facto, variável. Vale aquilo que em cada instante compra 10 euros de trabalho que hoje é uma coisa, amanhã é outra. Mas é a forma de trocar o trabalho feito no passado por aquele que queremos seja consumido hoje. O fundamental nesta história é que o dinheiro, como coisa que é, também não vale nada, representa apenas o trabalho que comprou no passado. E esta é a natureza do dinheiro, não é defeito, é feitio.

Mas se só o trabalho tem valor económico, as coisas não têm valor intrínseco, porque é que as pessoas associavam o valor do dinheiro ao ouro? Na verdade, nunca o fizeram. Aquilo que faziam era associar o valor do dinheiro ao trabalho que dava escavar uma mina, limpar o mineral, fundir e filtrar o ouro e transportá-lo até um banco central. Porque o ouro, por si só, não tem valor e se fosse tão abundante como o oxigénio teria o mesmo valor económico, zero, sem ter sequer a mesma utilidade prática. Quando isto era complicado, mas possível, era simplesmente uma forma difícil de ter um standard para que as pessoas dissessem “pode valer trabalho no futuro, mas se não valer, vale ouro”. Temos que compreender que tudo na história tem o seu caminho para fazer e até o dinheiro teve que fazê-lo. Mas como o planeta é finito, o trabalho que dá trazer o ouro de uma mina para um banco central foi crescendo à medida que as reservas foram sendo esgotadas. Portanto, o referencial que dava valor aos 10 euros ia crescendo e a mesma nota de 10 euros ia comprando uma quantidade cada vez maior de trabalho, não porque representasse mais trabalho do passado, mas porque o dinheiro era mais caro. Ou seja, o trabalho que dava fazer dinheiro era maior que o trabalho que este deveria comprar. Ou seja, era estúpido.

E por falar em estúpido, voltemos ao Bitcoin, a cryptomoeda que é comprada e vendida a 17 mil dólares no instante em que estou a escrever. Daquilo que redigi acima, podemos perceber que o dinheiro, sendo uma invenção humana, tem também um papel extremamente abstrato e cuja compreensão não é fácil, tal como, aliás, boa parte dos mecanismos económicos. Nada impediria, à partida, o Bitcoin de ser uma moeda de facto, mas o facto é que não é. Para o ser precisava de representar trabalho humano do passado, precisava de ter comprado trabalho no passado para conseguir ser uma promessa de trabalho futuro. E para isso precisava de ser produzido à medida que crescesse o trabalho que eu, consumidor, preciso. Diz-se escasso.

O Bitcoin confunde o conceito económico de escassez com raridade. Mais raro que o aeroporto de Beja seria difícil e, no entanto, não vale nada. Escassez é um conceito abstrato (mais um) que reflete a necessidade que tenho de consumir algo que, normalmente, se reduz à medida que consumo. Mas cuja ligação a raridade não existe. Ora o senhor que inventou o Bitcoin achou que se o dinheiro usava o ouro como padrão era porque o ouro era raro e, portanto, o fabrico de Bitcoins é muito difícil e consome quantidades de recursos computacionais gigantescos. Devo dizer que muitas cabeças bem-pensantes acreditam a mesma coisa, por isso devo ser suave nas minhas críticas, dizendo que isto é apenas pateta (afinal já posso ser CEO do JP Morgan porque também consigo ser simpático).

O Bitcoin é apenas um bem sem qualquer utilidade, cuja produção é cara como foi o aeroporto de Beja. Sim, custou muito a produzir, até deu muito trabalho, mas não serve para nada. O valor económico de um Bitcoin é, pois, igual ao do aeroporto de Beja. Então como explicar que seja transacionado àquele valor? Pois, não tem explicação. Tal como as obrigações do subprime eram enroladas em matemática com um ar sofisticado, o Bitcoin é enrolado em tecnologia com um ar sofisticado, o blockchain, que há muitos anos se diz o futuro, mas cuja utilidade prática parece difícil de encontrar. Muita gente tem feito a analogia entre esta bolha especulativa em torno do Bitcoin com a crise das túlipas na Holanda do século XVII. As semelhanças são grandes, mas os bolbos de túlipa, pelo menos, serviam para alguma coisa.

Sabe-se hoje que a energia necessária para manter o sistema Bitcoin, com uma implantação residual, é hoje equivalente a 3 milhões de casas americanas, ou seja, quase tanto como o consumo de todas as casas portuguesas. Para ter uma ideia do que isto significa, a rede VISA que funciona há décadas e tem uma implantação global, consome tanta energia como as casas de Cascais. Por isso, até do ponto de vista tecnológico, parece estarmos perante um completo disparate.

Mas, se é verdade que a história não se repete, também é verdade que a estupidez humana atravessa gerações de forma imparável. Esta história tem tudo o que o subprime tinha, tem tudo o que a Dona Branca tinha, mas com um ar simultaneamente tecnológico e revolucionário. Um pouco como a fotografia do Che num iPhone. Sabe-se que os períodos em que as taxas de juro são excessivamente baixas dão origem a fenómenos deste tipo. O que parece crescer é o nível de absurdo. Mas até entre os agentes económicos terá que haver seleção natural e espero que nesta, ao contrário da do subprime, não necessite que seja eu a pagá-la no fim.

PhD em Física, Co-Fundador e Partner da Closer