Existe em Portugal um “poder obscuro”, de “puro arbítrio e despotismo”. Esse poder impõe uma “limitação infundada e desproporcionada de direitos fundamentais” mas “não durará”, pois “é precário como todos os poderes assentes no medo”.

Este diagnóstico não foi feito por José Sócrates antes do 25 de Abril, período onde não se lhe conhece nenhuma actividade de resistência ou de oposição. Foi feito agora, 40 anos depois da revolução, num regime em que as últimas modificações importantes das leis penais foram feitos num período em que ele próprio era um todo-poderoso primeiro-ministro, com mais poder concentrado no seu círculo de íntimos do que qualquer outro primeiro-ministro da democracia.

Os sinais de que José Sócrates estava a preparar-se para se apresentar como um mártir da liberdade já estavam por aí, mas nunca se tinham manifestado de forma tão aberta como nas respostas que, esta sexta-feira, deu a algumas perguntas da TVI. Na carta que escreveu a Mário Soares, por exemplo, invocou por duas vezes René Char, um poeta francês que também foi um resistente, e citou uma passagem do seu diário dos tempos do maquis, “Feuillets d’Hypnos”. O paralelo com a sua própria condição era óbvio, mesmo que ainda não explícito.

Certas almas mostraram-se solidárias, quase atormentadas. Aconteceu mesmo a um colunista, ao passar pelo Natal em frente à prisão de Évora, dar-lhe para recordar o destino do seu pai, várias vezes preso pela PIDE. Faltou-lhe apenas dizer o que veio agora proclamar o preso número 44: “este processo, pela sua natureza, tem contornos políticos. E digo mais: este processo é, na sua essência, político”. Ou seja, ele, José Sócrates, é um preso político, um resistente que se preocupa com “o poder, os seus limites e o seu exercício”.

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É sempre possível haver inocentes presos. Direi mesmo que está sempre a acontecer. Há até inocentes que são condenados. O que é mais raro é alguém sobre quem recaem fortes suspeitas considerar que, no fundo, tudo não é mais do que política. Porque é isso que está claramente escrito nas respostas que enviou para a TVI, até por nelas referir que desconhece “as motivações deste estranho processo sem indícios nem provas”. Mais: por insinuar a “suspeita de perseguição política”.

E aqui chegamos ao ponto em que esta missiva acaba por ser um acto falhado. É que se é possível admitir que neste processo não existam ainda todas provas, ou algumas provas sejam frágeis, o país inteiro sabe que se há coisa que não faltam são indícios. Na verdade só alguém como José Sócrates pode pretender que, depois de ter dito que era a mãe que lhe pagava algumas despesas, depois de ter afiançado que sobrevivera em Paris graças a um empréstimo da Caixa-Geral de Depósitos, acreditemos agora que era afinal um benemérito amigo que lhe emprestava dinheiro, empréstimo que tenciona pagar “apesar da informalidade da nossa relação”.

O antigo primeiro-ministro sempre foi assim (há mesmo quem testemunhe discussões na sua adolescência em que já era assim): tem sempre um argumento novo, tem sempre uma desculpa nova, passa sempre ao ataque, não tolera que não se aceite a “sua verdade” mesmo quando a relação desta com a verdade verdadinha é muito, muito longínqua.

O que este “preso político” nos conta agora é que está a ser perseguido porque as autoridades judiciais não acham normal que um seu amigo de mais de 40 anos tenha acumulado tantos milhões apesar de não se perceber como; que não acham natural que esse amigo lhe tenha emprestado, sem recibo ou qualquer documento ou registo, centenas de milhares de euros para despesas correntes, dívida que certamente pagará apesar de ele, José Sócrates, garantir que não tem fortuna; que não acham normal que as transações entre estes dois velhos amigos tivessem tomado por regra a forma de notas dentro de um envelope (as malas de dinheiro são um exagero, meu deus!), apesar de no país, no século XXI, mesmo os remediados dos remediados utilizarem cheques, cartões e transferências bancárias (o primeiro-ministro do “choque tecnológico” é afinal um conservador que prefere guardar o dinheiro no colchão); que também não acham normal que um empresário com negócios banais em Portugal tenha oportunamente decidido realizar um investimento num andar “a precisar de obras” em Paris, mesmo a tempo de o emprestar ao amigo que, parece, estava com “algumas dificuldades de liquidez”; e por aí adiante.

Haverá gente capaz de acreditar sempre na verdade do engenheiro, haverá gente capaz de negar sempre mesmo os mais gritantes indícios, haverá gente capaz de jurar sempre pela sua inocência. Não faço parte desse grupo. Não creio que esteja inocente. Não acredito na história da carochinha.

Mas adiante, que há mais pontos importantes nas suas respostas. Em especial a ideia de que há em Portugal um poder intolerável: “o poder de deter para interrogar” e “o poder de prender preventivamente”. Ora aqui mistura-se o que é razoável debater – será que em Portugal o processo penal dá demasiados poderes às polícias, aos procuradores e aos juízes, apesar de por regra sempre se ter dito que dava era muitas garantias aos acusados? – com o disparate atoleimado e pessoalizado.

É por isso que. apesar de estes momentos nunca serem os mais indicados, pela sua carga emocional, para discutir reformas no sistema, não posso deixar de acrescentar umas breves notas:

  • Não sei se se deve restringir mais as condições da prisão preventiva, mas noto que, ao contrário do que tem sido sugerido, se trata de um regime menos utilizado hoje do que no passado: em 1996 havia 4.977 reclusos em prisão preventiva, em 2013 já só havia cerca de metade, 2.592.
  • Não me parece correcto dizer que em Portugal, e neste caso concreto, se “prende para investigar”: José Sócrates estava a ser investigado há mais de um ano e nesse período nunca teve qualquer limitação à sua liberdade de movimentos.
  • Repugna-me a ideia de qualquer limitação à liberdade de expressão, mesmo de um preso, mas antes de formular juízos definitivos recomendo que se dê atenção à leitura mais cautelosa de Francisco Teixeira da Mota (um advogado da liberdade de expressão por excelência), que escreveu que, “provavelmente – ignoramos as diligências de prova em causa – haverá motivos para justificadas restrições na liberdade de expressão do ex-primeiro ministro enquanto durar a prisão preventiva”. Só que, “em abstracto, parece duvidoso que tais motivos possam justificar uma total proibição das entrevistas”. Pelo que se está ver, também de pouco serviu.
  • Cinco quilos por mês é uma limitação intolerável do direito a um recluso receber encomendas? Talvez. Mais intoleráveis pareceram-se as declarações incendiárias de um advogado que, afinal, desconhecia a lei.

Vivermos num regime que pode ser aperfeiçoado, num regime imperfeito como são sempre os regimes democráticos, não autoriza ninguém a atacá-lo como se fosse uma ditadura só porque, afinal, “eles”, “essa gente”, teve “a coragem” de o prender.

Neste caso, muitos antes de qualquer violação do segredo de justiça, o que nunca faltaram foram indícios, alguns deles deixados de forma impante, quase exibicionista, como se a impunidade estivesse garantida para todo o sempre, como se certas cúpulas amigas da máquina judicial estivessem lá para a eternidade. E se não sei se “falta provar rigorosamente tudo” (mas desconfio que não), essa fanfarronada só reforça o meu desejo, a minha exigência, de que a investigação criminal e a justiça actuem de forma rigorosa e competente.

De resto, não sou hipócrita: um ex-primeiro-ministro será sempre julgado na praça pública, e como se está a ver meios de defesa e palco não lhe faltam. Falta-lhe é capacidade para nos fazer acreditar no inverosímil.