Recentemente os portugueses tiveram conhecimento de uma nova proposta comercial: vá ao supermercado e ganhe um plano de saúde. E parte do que gastar em saúde pode ainda consumir em supermercado. Uma opção comercial de duas grandes marcas que decidiram colaborar. Aparentemente a bem dos portugueses. Aparentemente, digo eu.

O que agora foi assumido é que o valor da saúde passou a ter um equivalente em pacotes de leite ou quilos de arroz ou em qualquer outro produto comercializado em supermercados. Já se trocava litros de gasolina por produtos vários e vice-versa. Já se dava desconto em bilhetes de cinema ou em conjunto de talheres. Mas agora o processo comercial resolveu evoluir. Passou a assumir a doença como um vulgar produto comercial de consumo fácil e por troca com outros produtos.

Já algumas tentativas haviam sido feitas de banalizar o ato médico e mesmo o ato de saúde em geral. Trocar acesso por qualidade. Trocar qualidade por quantidade. Atos altamente diferenciados a preços irrisórios. A massificação dos cartões de saúde, que garantem, um acesso livremente condicionado, a uma rede de prestadores médicos, coloca do lado de quem gere a rede a decisão última na aceitação da realização de um determinado acto médico. Sem qualquer controlo de qualidade.

Tudo na vida tem um valor. Um valor não comercial mas intrínseco. O conceito de que a vida não tem preço é disso um bom exemplo. Mas tem sempre um custo.

Tratar um doente tem sempre um custo. Com uma componente tangível e uma intangível. Um custo em que se deve incorporar a diferenciação do profissional, a responsabilidade da decisão, as implicações da incerteza e do erro, o tempo e o custo de formação, o tempo de maturidade e a penosidade de um desempenho sem horários. Para já não falar do custo de instalações, idade e diferenciação dos equipamentos utilizados e as necessárias condições associadas.

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Tratar um doente junta arte e ciência. Junta saber e destreza. Junta experiência e estudo. Junta meios e recursos.

Tratar um doente implica dominar o conhecimento de um ser complexo por natureza ao que se acrescenta não existirem dois seres iguais. Implica ter capacidade de decisão sobre um puzzle de incontáveis variáveis. Tratar um hipertenso com diabetes é diferente de tratar um hipertenso com um tumor da supra-renal. E infindáveis podem ser os exemplos e as combinações.

Tratar um doente exige um elevado conhecimento e uma dedicação total.

Estas são verdades indesmentíveis.

Não se leia, no entanto, nestas palavras quaisquer tendências pseudo-elitistas ou de procura de um endeusamento qualquer como resquícios de um passado longínquo. Não se entenda destas palavras uma qualquer tentativa de aumentar ou valorizar artificialmente o valor do ato médico.

O ato médico é um ato por demais complexo para poder ser assumido como um qualquer produto comercial.

Todos concordamos que o direito à saúde e à proteção na doença são direitos inquestionáveis e que constituem inequivocamente marcas de civilização e de desenvolvimento. Por isso devem ser universais. Mas não podemos querer que essa universalidade se faça a qualquer preço e de qualquer forma.

A vida não tem preço mas a saúde tem um custo. E quando queremos baixar o custo abaixo de certos limites corremos riscos desnecessários e inaceitáveis. Tudo na vida tem um valor. Pode ser maior ou menor mas não pode ser menor do que ele próprio. Baixar um ato abaixo daquele que é o seu custo real só se consegue pela eliminação de partes relevantes de um todo e com óbvios e indexáveis quebras de qualidade.

Concordo plenamente com todas as formas de o melhorar e de o libertar de burocracias desnecessárias ou de ineficiências indesejáveis. Concordo em encontrar novas formas de prestação, mais viradas para uma sociedade mais tecnológica e isolada. Concordo que a relação médico-doente pode ser mais dessacralizada e encontrar novas formas de relacionamento.

Mas não posso aceitar que o ato médico seja um simples ato comercial, onde se privilegie o número de atos em detrimento da sua qualidade.

Melhorar o acesso não implica promover o acesso e o consumo. Assistimos a uma muito questionável massificação da Medicina tentando fazer crer aos mais incautos que ao facilitar o acesso se dá melhor acesso. Tal facto não é possível. Não é possível baixar o valor do ato médico abaixo de certos valores. Não se pode exigir aos médicos que sejam profissionais altamente diferenciados e simultaneamente exigir-lhes que prestem cuidados do tipo produto branco de um qualquer supermercado.

Como incompreensível é que o consumo de “produtos de saúde” possa dar desconto num qualquer supermercado. Como incompreensível é pensar que um ato médico possa ser traduzido em quilos de batatas ou vales de gasolina. Quem sabe se um doente mais grave poderá mesmo comprar um qualquer electrodoméstico mais barato. Estou mesmo a imaginar uma campanha do estilo: seja operado à sua hérnia e ganhe um peru ….

A saúde e a doença são por demais importantes para serem assim tratadas. Os valores a elas associadas devem ser preservados e valorizados e não vulgarizados e banalizados.

Acredito que os médicos não podem nem devem continuar a aceitar esta crescente mediocrização e vulgarização da sua atividade. Ser médico é uma nobre profissão que implica uma permanente valorização da nossa atividade bem como a defesa inequívoca da nossa diferenciação técnica e do primado do nosso Saber. A bem de uma medicina de qualidade e na defesa dos nossos interesses.

O mundo está em permanente mudança. É uma verdade incontestável. A mudança está cada vez mais rápida e imprevista. Ninguém contesta. Temos que estar abertos a novos conceitos e novas relações. Inevitável. Nas relações sociais, profissionais, económicas, politicas e em muitas outras constatamos estas premissas de evolução social. Mas não podemos aceitar que a saúde e a dignidade dos médicos baixe para patamares incompatíveis com o Juramento que todos fizemos.

Somos Médicos sempre.

Médico Cirurgião e Assistente Universitário