Com os anos que levo de vida já nada me devia espantar. Mas espanta. E sábado espantei-me com a fotografia da capa do Expresso: Mário Soares a abraçar Isaltino Morais. Mário Soares a dizer que “Isaltino foi injustiçado”. Mário Soares a acrescentar a interrogação: “Quando há pessoas que roubam milhões e estão soltas, como é que ele foi preso sem razão nenhuma?”
O que me espanta não é Mário Soares ter vindo em socorro de alguém. Já o fez a muitos amigos, alguns nem muito recomendáveis, ainda recentemente o fez com Ricardo Salgado. Surpreende-me ter sido Isaltino Morais, alguém que nem é do seu partido. Mas espanta-ma sobretudo a desfaçatez: poucas pessoas em Portugal terão usado de forma tão sistemática todos os recursos permitidos pela defesa num caso de tribunal, poucos condenados terão visto o seu processo ser apreciado por tantos juízes diferentes, e de tantas instâncias distintas, e mesmo assim para acabarem condenados, como aconteceu com o antigo presidente da câmara de Oeiras.
Mesmo assim a fotografia não passaria de um fait divers se não fosse um sinal. Um sinal da incomodidade de certas elites com a actuação de alguns tribunais. O abraço de Mário Soares é a parte visível, ostentatória, do sussurro que por aí vai e já me chegou muitas vezes aos ouvidos. O Vara condenado a pena de prisão? Mas foram só uns milhares de euros… O sucateiro levou 17 anos? Mas ele não matou ninguém. E já viram a Maria de Lurdes Rodrigues? Como é possível? E como foi possível humilharem Ricardo Salgado indo buscá-lo a casa?
Por enquanto são só sussurros, ainda poucos se atreveram a colocar a cabeça de fora (a não ser os próprios, mas isso é da natureza das coisas). Soares, faço-lhe essa honra, ao ir a Oeiras deu corpo ao sussurro. Daí que não possa, não deva, ignorar o significado da fotografia da capa do Expresso.
Há, na política e na vida pública, muitas coisas a que tenho horror. E nessa lista surge em lugar destacadíssimo o abuso de poder pelos juízes, a judicialização da política, a transferência do jogo democrático do espaço dos eleitos para o espaço dos doutores em direito. Olho com enorme desconfiança para alguns timings da investigação criminal e abomino o uso e abuso da figura da providência cautelar. Mas não acho que seja isso que está em causa nas recentes decisões judiciais que tanto incomodam certas pessoas que não estavam habituadas a verem gente do seu mundo ser incomodada.
Nos casos mais recentes (Armando Vara, Maria de Lurdes Rodrigues) encontro sinais de uma investigação feita com mais cuidado do que é habitual e tribunais que, tendo considerado existir crime, aplicaram as penas previstas no Código Penal sem sentirem que deviam ter a mão mais leve porque eram notáveis, mas também sem que veja sinais de terem entendido ter a mão pesada por, como notáveis, terem obrigações acrescidas. Foram os veredictos errados? Condenaram inocentes? Sem conhecer o detalhe de nenhum dos processos, o que li sobre o que se passou nos tribunais não me permite tirar essa conclusão, pelo contrário. Já sobre o caso Isaltino, nem falo: por pudor e porque não me apetece arriscar um processo.
Da mesma forma que não corri a aplaudir o funcionamento da Justiça no dia do interrogatório de Ricardo Salgado, como vi tantos fazerem, como também não proclamei que essa Justiça só teria funcionado quando viu o animal ferido, não encontro nestes casos nenhum indício de que os tribunais tenham tomado o freio nos dentes. E se alguma coisa continua a surpreender-me é a forma impune como tantos poderosos actuam em Portugal.
Veja-se o que se passou na PT. Dois ou três gestores pegaram em dinheiro que não era deles, foram emprestá-lo a um amigo a quem deviam lealdade, perderam-no e com isso destruíram uma grande empresa, prejudicando os seus trabalhadores, fazendo milhares de accionistas – que eram os donos do dinheiro que eles delapidaram – perderem pequenas poupanças ou mesmo fortunas. Não sei se isto é um crime, mas se não é, devia ser. No entanto esses gestores continuam aí pelos salões, a receberem palmadinhas nas costas e, num dos casos, indemnizações milionárias. Será que a nossa lei permite a actuação da Justiça nestes casos? Fará ela algum dia alguma coisa? Não sei: não conheço suficientemente a lei e conheço demasiado bem a competência dos advogados que tudo farão para que nada aconteça.
Fora de Portugal, nos meios económicos e financeiros, olha-se para o que se passou com o Grupo Espírito Santo e evoca-se o caso Madoff. Quando esse escândalo ocorreu recordo-me bem de quantos compararam a rapidez da justiça americana com a lentidão dos nossos processos. Por isso sorrio quando ouço certos sussurros.
É sempre desagradável quando a coisa chega aos nossos círculos e não há o hábito de, polidamente, olhar para outro lado para não ficarmos incomodados com algumas coisas que por lá se passam. Pois é: mas prefiro uma Justiça cega que se engana de vez em quando do que uma Justiça zarolha que se engana sempre para o mesmo lado. E de uma coisa podem estar certos: no dia em que sentir que o pêndulo basculou na direcção inversa, e há risco de judicialismo, não hesitarei em denunciá-lo. Mas não é esse o risco que hoje corremos: o risco que corremos é de os cidadãos sentirem, em verem Soares abraçar Isaltino, que todos se protegem uns aos outros.
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