Pertenço ao grupo dos que assiste à alteração, ou melhor, à mutilação, da língua com grande desgosto. Sou uma simples leitora de alguns jornais, e tenho esporadicamente lido algumas notícias e artigos de opinião sobre o acordo ortográfico. A minha ligação a questões linguísticas é apenas a de um cidadão comum sem qualquer preparação específica sobre o assunto. A razão porque decidi escrever estas notas deve-se a que não li até agora nenhum artigo que aborde a questão da alteração da língua no que ela tem de essencial.
A língua não é um produto de um acto de vontade do ser humano. A língua é uma propriedade emergente de comunidades humanas que surge independentemente de qualquer actividade consciente dessas comunidades. Neste sentido, a língua é um fenómeno da natureza. A língua está ligada à mente humana, emerge dessa mente e molda-a de formas que provavelmente nunca conseguirão ser inteiramente compreendidas pelo ser humano. Isso implicava sermos capazes de nos auto-conhecermos completamente, de nos vermos completamente ao espelho, o que não parece ser possível. Como Kurt Gödel demonstrou, através do teorema da auto-referenciação, há limites ao conhecimento humano.
A língua é um fenómeno complexo, é um fractal. É um produto que reflecte todas as vicissitudes da história da vida de uma comunidade. Tanto quanto o ADN, a língua traduz a filogenia de um povo. Embora não seja conhecida a função de partes muito consideráveis do nosso ADN, algumas arcaicas, nunca nenhum cientista sugeriu que elas pudessem ser removidas. É que não ter nenhuma função conhecida não é o mesmo que não ter nenhuma função. A relação entre a mente colectiva de uma comunidade e a sua língua é bi-unívoca.
Como já disse, a língua emerge duma comunidade, mas também a influencia. Uma língua a que se retiraram os seus elementos considerados arcaicos fica empobrecida no seu conteúdo de repositório da história de uma sociedade. Essa língua empobrecida vai empobrecer inevitavelmente a capacidade de se situar historicamente, culturalmente, do povo que a fala. E embora seja dificil ter uma noção exacta de quais as consequências que isto pode ter, é fácil perceber que elas têm a ver com o que de mais profundo torna um povo resiliente. Só um povo com cultura é resiliente e adaptável. Num certo sentido, mexer na língua é como mexer no nosso ADN, só que desta vez, no ADN cultural.
A língua não é um produto utilitário e não pode ser tratada como tal. Embora possa parecer um lugar comum dizer isto, não consigo deixar de ver no acordo ortográfico uma consequência da preponderância na sociedade de formas de pensar tecnicistas e cientistas. Há que perceber que manipular um fenómeno natural complexo tem, em regra, consequências que ultrapassam em muito as pretendidas. É característico do pensamento cientista tentar reduzir todos os fenómenos complexos a questões simples, e tratá-los como tal. E aqui também, num certo sentido, se procedeu a uma simplificação da língua. Como chamou a atenção Warren Weaver, falta à visão tecnicista e cientista uma ideia sofisticada da sua ignorância.
A presunção de que todos os fenómenos complexos são redutíveis a questões simples, ou a ausência de compreensão do que é um fenómeno complexo e dos riscos da sua manipulação, levam a atitudes imprudentes e a uma arrogância na actuação que conduzem ao desastre. As consequências da manipulação de uma língua não são imediatamente visíveis a olho nu. Mas talvez se consiga ter uma ideia do que poderiam ser se imaginássemos o efeito que teria se da paisagem cultural do nosso país fossem removidas por decreto todos as pedras arcaicas que aparentemente não servem para nada, incluindo alguns monumentos. A língua é um monumento, ou, pelo menos, desempenha as funções de um monumento.
A língua portuguesa está ligada a todas as grandes línguas europeias, não só as latinas, mas também outras, como por exemplo, a inglesa. E essa ligação é obvia não só para os eruditos, mas para a gente comum e para os jovens que as estudam nas escolas. Este facto aproxima inevitavelmente esses jovens das suas raízes europeias, dá-lhes um sentido de pertença, situa-os historicamente, aproxima-os do resto da Europa. Qual o efeito desta noção, mesmo que para muitos apenas subliminar, que tem estado presente ao longo dos séculos em, pelo menos, grande parte dos povos europeus? É difícil dizer, mas, pelo menos, para mim, este sentido de pertença e de família parece-me de preservar. Por exemplo, no nosso caso, não terá ele contribuido para a melhor integração dos nossos emigrantes em países europeus?
Não sei se há argumentos económicos por detrás do acordo ortográfico, mas se os houver, só podem resultar de uma visão errada e simplista da economia. A complexidade cultural só pode favorecer a economia. Compete ao engenho de um povo tirar partido dela, não destruí-la em nome de uma qualquer visão utilitária de curto prazo. Apesar de não ter nada contra a globalização, há coisas em que se deve resistir à globalização. Porque a globalização não só é compatível como só faz sentido com a preservação da especificidade. Assim como uma comunidade não pode destruir o individuo sob pena de se destruir a si própria, também a globalização não pode destruir as comunidades específicas. E na era da globalização, são as comunidades que conseguirem preservar da melhor maneira as suas especificidades que vão ser mais valorizadas.
A língua está no âmago da cultura de um povo. Tudo na língua transporta informação, grande parte dela subliminar. Não sabemos ao certo quais as consequências de manipular a língua de uma forma significativa, como está a ser feito. O mais certo é até que nunca cheguemos a saber porque não temos termo de comparação, não sabemos o que aconteceria se não o tivéssemos feito. Numa coisa tão complexa e tão visceralmente ligada a nós enquanto comunidade, e sendo tão ignorantes da sua função e dos seus meandros, a prudência e o respeito pela língua teriam sido a atitude mais avisada.
Médica