A ideia de que a evolução das espécies resulta essencialmente de mutações e recombinações aleatórias de genes que, ao induzir alterações nos indivíduos, provocam mudanças na sua capacidade de sobrevivência, favorecendo os mais fortes e aptos, é uma interpretação muito simplista e que não é mais defendida pela maior parte dos cientistas. Tem havido enormes desenvolvimentos na teoria da evolução em muitas áreas diferentes, que conduziram à elaboração de uma nova síntese que já muito pouco tem a ver com a clássica teoria neo-darwiniana da evolução conhecida como “síntese moderna”. Mas não é sobre isto que quero falar agora.

Sabe-se hoje que a simbiose é uma fonte major de novidade no processo evolucionário. A visão da evolução como um processo lento e gradual, defendida por Darwin, tem vindo a ser posta em causa por vários cientistas. Stephen Jay Gould, na sua teoria do “equilíbrio pontuado”, defendia que períodos longos de estase fenotípica alternam com períodos curtos de mudança rápida. E Lynn Margulis veio trazer a simbiose para a ribalta como uma das principais fontes, senão mesmo a principal, de novidade na história da vida, de certo modo dando sustentação à teoria de Stephen Jay Gould acima referida. Esta bióloga demonstrou que algumas das transições evolucionárias mais cruciais se deveram à fusão de bactérias, como é o caso do aparecimento da célula nucleada e de alguns organelos intracelulares como mitocôndrias e plastídeos.

O filósofo da biologia John Dupré, no seu livro Processes of Life, considera a simbiose “a condição fundamental da vida”, de tal modo é ubíqua na natureza. Parece ser a norma evolucionária. Todos os animais e plantas evoluíram como seres compósitos. Como é referido nesse livro, nós somos sistemas biológicos altamente integrados, em que apenas 10% das células são propriamente humanas e as restantes pertencem às comunidades microbianas que nos colonizam e que são fundamentais para a nossa saúde e sobrevivência. O mesmo acontece com as plantas, cujas raízes vivem integradas em comunidades complexas de inúmeras espécies essenciais para o seu desenvolvimento. Os próprios microrganismos também formam comunidades altamente integradas, com troca horizontal de material genético, tornando em muitos casos difícil a sua classificação como seres unicelulares ou multicelulares.

No seu livro The Symbiotic Planet, Lynn Margulis dizia: “Nós somos simbiontes num planeta simbiótico e se estivermos atentos, podemos encontrar simbiose por todo o lado.” E, mais adiante, no mesmo livro: “A tendência da vida ‘independente’ é ligar-se e reemergir num novo todo, a um nível mais elevado, mais amplo de organização.” A simbiose junta seres improváveis, gerando outros mais complexos e ainda mais improváveis. Para Lynn Margulis, “a maior parte da novidade evolucionária surgiu, e ainda surge, directamente da simbiose”. O reconhecimento do papel da simbiose na evolução é um dos factores que veio pôr em causa a representação tradicional da história das espécies através de uma “Árvore da Vida”, com um tronco comum e múltiplas ramificações sempre divergentes. Pensa-se que uma rede ou uma teia será uma melhor representação para a evolução da vida. É também neste contexto que John Dupré, no seu livro acima mencionado, afirma que “o principal aspecto em que os organismos (ou células) têm entrado em competição tem sido em relação à sua capacidade de cooperar em comunidades complexas de uma única ou de múltiplas espécies”.

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Mas, como dizia Lynn Margulis, “a evolução é simplesmente toda a história”. Formar novas simbioses é construir novos significados. E a vida não é mais do que isso – construir novos significados, novas “configurações”, a todos os níveis, desde moléculas e células, passando por indivíduos e organizações, até comunidades e nações, e tanto a nível da vida material como a nível da vida do espírito. Porque também há construção de novo significado no mundo das ideias. “Life is gestalt”, dizia Jakob von Uexkull.

Mas estes novos seres simbióticos, estas novas entidades significativas que emergem da vida independente, não são máquinas como aquelas que os humanos tão hábeis são a construir na sua tecnologia, em que o todo é igual à soma das partes e que podem, por isso, ser facilmente compreendidas por análise dos seus componentes. Os seres simbióticos originados pela vida são seres complexos, intrincados, em muitos aspectos inesperados, de uma beleza estranha e muitas vezes surpreendente, que nunca se conseguem decifrar completamente apenas por análise, porque o todo é diferente da soma das partes, e que, por isso, têm de ser percebidos no seu todo, porque ao desmontá-los nas suas partes destruímos o seu significado. É como se quiséssemos compreender um soneto de Camões dividindo-o nas suas palavras ou sílabas. A sua compreensão só é possível como um todo e exige uma experiência do tipo da percepção.

E da mesma maneira que Lynn Margulis descobriu simbiose por todo o lado no mundo microbiano, também nós, se estivermos atentos, podemos descobrir simbiose por todo o lado nas sociedades humanas. Porque onde há vida autónoma e independente há simbiose, há criação de significado. Numa sociedade totalitária como a União Soviética, onde o indivíduo vivia paralisado pelo medo e condicionado em todos os aspectos do seu comportamento, a vida à superfície era uniforme e automatizada e a arte tornara-se estereotipada e transformada em propaganda. Mas, mesmo nestas condições dramáticas, Czeslaw Milosz, no seu livro A Mente Aprisionada, escrito ainda no tempo de Estaline, falava, a propósito das actividades artísticas no “Império”, da “tremenda fome de estranheza” que lá se sentia. E a vida intelectual independente persistiu vigorosamente na clandestinidade, com o movimento dos dissidentes a legar-nos algumas das melhores obras literárias da Europa no século XX.

As sociedades que mais profundamente entenderem a importância de dar espaço à vida independente em todos os seus aspectos, facilitando e valorizando as iniciativas livres de cidadãos ou de instituições da sociedade civil, sejam estas últimas empresas, escolas, hospitais, organizações culturais ou sociais, lucrativas ou não lucrativas, desde que actuem com ética e responsabilidade e fora de duvidosos compadrios políticos ou outros, são as que mais potencial têm para criatividade e inovação e desenvolvimento.

Nada disto se passa no nosso país. Para além de um capitalismo de compadrio político descarado, como os recentes ajustes directos do Estado a empresas com poucos dias de existência o provam, continuam a ser privilegiados os “monstros Frankenstein” (expressão que Czeslaw Milosz usou para se referir à União Soviética) de criação a partir de cima, profundamente disfuncionais, como o Serviço Nacional de Saúde e a escola pública, enquanto se dificulta a vida a instituições verdadeiramente genuínas da sociedade civil.

Como tem vindo a ser revelado em vários artigos publicados no Observador, há muitos profissionais que fogem dos hospitais do Serviço Nacional de Saúde para o sector privado e para o estrangeiro devido ao ambiente politizado, de jogos de poder e guerrilha sectária, com meio mundo a sabotar o outro meio, que reina nestas instituições controladas pelo Estado, e que leva a um enorme desperdício de recursos humanos. Isto só é possível porque estes hospitais, na realidade, não estão sujeitos às leis do mercado, e por isso são permitidos todos os atropelos, com toda a impunidade, às mais elementares regras de bom funcionamento. Apesar de todos os esforços de muitos e bons profissionais, individualmente, o doente não é o centro da atenção nestas instituições e é muitas vezes sacrificado a interesses mesquinhos e burocráticos.

Por outro lado, na vida política, a esquerda mantém a velha tendência de olhar para a sociedade pelo prisma de uma dialéctica mecanicista de forças em confronto, sejam elas as classes sociais de Marx ou os seus sucedâneos mais recentes, como as raças, os géneros, minorias diversas, etc.. Ao fragmentar as sociedades e destruir pontes entre grupos, ou ao forçar rivalidades entre grupos muitas vezes artificiais, a esquerda radical envenena o ambiente e dificulta o aparecimento de novas entidades significativas, de novas Gestalt, quem sabe, de novas simbioses, daquele tipo de entidades não programadas, improváveis, que nos surpreendem e causam admiração, de nova vida, no fundo. A esquerda, ao querer controlar tudo, contamina tudo, impede e destrói significado e esteriliza a sociedade e a vida.

Como a ciência da evolução sugere, o destino inexorável dos humanos não é andar a lutar uns contra os outros. Talvez não seja por acaso que a Alemanha, pátria de Marx, criador do materialismo dialéctico e da teoria mais radical da luta de classes, é também o país onde nasceu a teoria Gestalt que nos revelou a importância da percepção, em contraponto com a análise, para o conhecimento em geral, incluindo o científico, e que contribuiu de forma relevante para nos afastar de uma visão mecanicista dos fenómenos.

A visão mecanicista na ciência tem vindo a ceder terreno, apesar de muitas contradições e da situação problemática das universidades de muitos países, a uma nova abordagem integradora e de sistema que, a ser prosseguida, poderá levar a um ressurgimento de tipo “Renascença”. Mas a obsessão quase exclusiva pela divisão e pela análise na ciência dos últimos séculos foi responsável, apesar dos seus muitos e extraordinários êxitos, por uma destruição de significado na civilização ocidental de valor incalculável, como referiu Michael Polanyi ao longo da sua obra.

É tempo de abandonar a visão do mundo burocrática e esterilizadora de um universo mecânico. É tempo de, na política, acabar com a tendência de optar sempre por soluções construídas a partir de cima, e, em vez disso, privilegiar decididamente os cidadãos e as instituições independentes, libertá-los de regulamentações absurdas e sobrecargas excessivas, e confiar na sua energia, no seu conhecimento e na sua criatividade, ao mesmo tempo que se exige a sua responsabilidade. Se isto for feito talvez aconteça um “milagre”: Portugal sair do marasmo em que se encontra e entrar num período de crescimento económico e desenvolvimento rápidos. Porque a arte de gerar “milagres” ainda é um exclusivo da vida livre e independente

* As citações dos livros de John Dupré e de Lynn Margulis foram traduzidas do inglês pela autora.