O presidente do Sporting, que parece um indivíduo ponderado, instou os fiéis a: a) não lerem jornais desportivos e o “Correio da Manhã”; b) não consumirem televisão nacional; c) não deglutirem rissóis de marisco. A alínea c) é brincadeira (o dr. Costa é que proíbe essas calamidades). Mas a) e b) são aparentemente exigências sérias e, se me permitem, nada difíceis de cumprir. Mesmo não sendo “sportinguista”, nunca comprei um jornal desportivo e só comprei o “Correio da Manhã” meia dúzia de vezes e por discutível vaidade, quando há demasiados anos ali assinei umas crónicas. Aliás, ao que me consta, há muito que quase ninguém paga por esse anacronismo chamado imprensa. Pelo menos entre nós, as publicações em papel têm hoje uma procura comparável à vacina contra a lepra – e, por regra, um interesse semelhante à dita.

Quanto à televisão, a obediência às directivas é ainda mais simples. Quem, com idade inferior a 70 anos e na era do cabo, do Netflix, do DVD, do youTube e do que calha, insiste em ver canais portugueses? Falo por mim, que apenas espreito tais aberrações para me inteirar dos comunicados do presidente do Sporting e das reacções dos especialistas aos comunicados do presidente do Sporting. O resto, calculo, é a tralha grosseira que celebrizou o “audiovisual” caseiro e, dado atravessarmos um Tempo Novo, a descarada propaganda do governo e do país que convém ao governo. O que eu não esperava é que a grosseria e o descaramento chegassem aos níveis espectaculares a que chegaram.

Um destes dias, soube pelo Telmo Azevedo Fernandes, ocasional autor no “Observador” de textos lúcidos e logo excêntricos sobre economia, que a RTP estreou um programa intitulado “Missão: 100% Português”. É extraordinário que, em pleno século XXI (é assim que diz, não é?), a RTP continue a existir. Porém, achei literalmente inacreditável que agora dedique a sua desgraçada existência à divulgação de um patriotismo caro a 1930. E isto a julgar pelo nome, que prometia coisa má. Movido pela curiosidade dos pervertidos, fui ver: a coisa é pior.

O “conceito” de “100% Português”, adaptado de uma empresa holandesa e de autóctones doentes, é simples. E atroz: um moço, convenientemente pateta, aceita viver uns meses sem produtos estrangeiros. As câmaras, os microfones e restante parafernália fabricada em Aljezur registam o resultado para educação das massas.

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O segundo episódio, que testemunhei com previsível sofrimento, começa com o moço a preparar o pequeno-almoço, confecionado com fruta guardada ao relento e comido no chão. O moço, que dá saltos, faz caretas e diz “Eia, man!” e “Muita mal”, decide ir à cata de bens patrióticos. A voz “off” (termo alentejano) dita as “regras”: “De agora em diante, o Raminhos (?) vai consumir exclusivamente produtos “made in” (expressão beirã) Portugal identificados através de etiquetas, rótulos e símbolos que atestem a origem nacional”. Mais: “E ainda vai explorar as mais criativas ideias nacionais, com sucesso por cá e além-fronteiras” (supõe-se que em países sem consciência proteccionista).

De súbito acompanhado pelo cançonetista Toy (alcunha minhota), pretexto para “piadas” susceptíveis de inspirar suicídios colectivos, o moço parte em busca de um frigorífico indígena. A bordo de um automóvel concebido em Arruda dos Vinhos, ambos berram: “Eu vou cantar/sou português/e tenho orgulho no meu país”. Adquirido o frigorífico, passa-se à pedagogia directa, onde o moço e Toy interpelam transeuntes com mentiras piedosas (ou cruel estupidez): “É mais barato porque a assistência é portuguesa”. Aos 14 minutos de emissão, e se não for maluquinha de todo, a assistência portuguesa fugiu apavorada de tamanho nojo. Eu tomo um comprimido para a enxaqueca e persisto. Em vão: Toy retoma a cantoria.

Na cena seguinte, o moço senta-se para a “leitura 100% portuguesa” e, investigo a capa, opta por Borges. Estranho, pelo desvio às regras e ao péssimo gosto do programa. Depois percebo que não se trata do escritor argentino (neto de transmontanos, imagine-se): o Borges em questão é um “humorista” que se passeia de boina basca e que, sem querer, fornece a analogia perfeita para o penoso exercício. Abdicar, em nome da irracionalidade tribal, de produtos importados é, na vastíssima maioria das circunstâncias, ficar reduzido à fancaria que sobra, se sobra. E é abdicar da capacidade de escolha. E dos benefícios da concorrência. E das vantagens de habitarmos um mundo imensamente maior que nós. E do progresso em geral.

Além de um espectáculo pelintra, e veículo promocional de um Estado muito desonesto e pouco democrático, “100% Português” é um manifesto reaccionário, com cheirinho à superioridade da “raça”, aos prazeres da xenofobia e a feiras de fumeiro. Numa palavra, é reles. Em meia dúzia de palavras, é um sintoma da miséria a que descemos ver a “economia de substituição” – ou o atraso de vida – louvada no horário “nobre” do Inverno de 2018. Na campa, Salazar deve contorcer-se de gozo. Como Jerónimo de Sousa no museu.

Em abono do rigor, esclareço que, no momento em que o moço pegou no Borges da boina, a electricidade dele foi abaixo. E a minha paciência também. Enquanto o moço presumivelmente pesquisava turbinas criadas em Gondomar num telemóvel criado em Portimão, considerei-me satisfeito (salvo seja) e desliguei o televisor (projectado na Buraca). Suportei perto de vinte minutos, a duração média que o corpo humano resiste à fogueira, o único suplício comparável. Se o nacionalismo é de facto o último refúgio dos canalhas, consola não ser uma invenção portuguesa. Já a lobotomia é. E nota-se.