As sondagens nos Estados Unidos dizem que Hilary Clinton está em segundo lugar na lista dos candidatos presidenciais mais impopulares de sempre. Só Donald Trump faz pior: é o mais impopular de sempre. Isto diz quase tudo sobre as eleições norte americanas. Traz à memória a famosa pergunta de Kissinger, a propósito da guerra entre o Irão e o Iraque: “não podem perder os dois?” Neste caso, não podem. Um terá que ganhar. Mas os americanos ainda parecem indecisos sobre a quem darão a vitória. Bem sei que as sondagens indicam que Clinton ainda é a favorita, mas recomendaria cautela.
Não me esqueço que quase todas as sondagens apontavam para a vitória do “Remain” no referendo britânico. Na véspera e no dia do referendo os próprios líderes do campo do “Leave” estavam convencidos que perderiam a votação. Todos sabemos o que aconteceu. A população britânica derrotou as sondagens. Mais de quatro meses depois do referendo, já se percebe melhor o que aconteceu. Dois milhões e oitocentos mil britânicos que não votaram nas duas últimas eleições parlamentares britânicas resolveram ir às urnas e dizer que queriam abandonar a União Europeia. Muitos deles tinham deixado de votar regularmente desde a década de 1990. Se os “2.800.000” não tivessem votado, o Sim à Europa teria ganho o referendo com cerca de 53%. O Brexit foi o acto de vingança dos desiludidos da democracia. Segundo as empresas de sondagens, é muito difícil prever o sentido do voto dos desiludidos da democracia. Em regra, recusam-se a revelar as suas intenções quando são sondados.
Tal como no Reino Unido, também há um exército numeroso de desiludidos com a democracia nos Estados Unidos. Irão votar desta vez? E se forem, votarão maioritariamente em Trump? Ninguém sabe. Mas pode acontecer que os “2.800.000” americanos ofereçam a vitória a Trump. O voto está a tornar-se uma arma de revolta popular e não de simples escolha de governos. Não me interessa participar no concurso nacional sobre quem detesta Trump com maior força. Julgo que é mais importante tentar perceber os efeitos da revolta populista nos Estados Unidos. Em primeiro lugar, não vão desaparecer na quarta-feira. Podemos ficar aliviados com a derrota de Trump, mas não devemos ter ilusões sobre um regresso à normalidade. Os dois candidatos revelam a extensão da crise da democracia na América. O casal Clinton simboliza a corrupção moral, a decadência da classe política tradicional, o afastamento da centro do poder em relação ao resto do país, a redução da política a jogos de poder, a duplicidade de discursos, dizendo em “on” o que supostamente as pessoas querem ouvir, e confessando em “off” aquilo em que se acredita e as verdadeiras intenções, a crença na impunidade de quem atinge o ciclo de influência e de poder. É este modo de fazer política que alimenta o populismo de Trump. Usando uma fórmula simples, Trump é uma criação dos Clinton. A possibilidade de Trump vencer mostra a dimensão do fracasso do modo de fazer política dos Clinton.
Os meus instintos conservadores levam-me a preferir o mal conhecido ao mal desconhecido, mas não tenho qualquer dúvida de que Hilary, se for eleita, será uma Presidente fraca. O país está dividido, a nova Presidente não conseguirá conquistar a metade derrotada e é improvável que os problemas com a justiça, as suspeitas, as dúvidas desapareçam com o fim das eleições. O mundo e a Europa precisavam de um Presidente Americano com um mandato político forte e acima de qualquer suspeita legal. Não vão tê-lo, mesmo que Hilary ganhe.
Em segundo lugar, os Democratas e o Republicanos terão que mudar, e muito. Os dois partidos são o espelho da crise política americana. O populismo da Sanders não é melhor do que o de Trump (apesar de Sanders ser menos chocante e mais simpático, o que engana). E por uma vez, “não é a economia estúpido”; desta vez, é a política estúpido. A crise financeira e económica de 2007 a 2009 contribuiu para o crescimento da insatisfação popular. Mas, hoje, a economia americana cresce 3% e o desemprego está nos 5%. Os estudos de mercado mostram que o optimismo dos americanos em relação à economia está nos valores mais elevados desde 2007. É difícil explicar com a economia a revolta popular americana. No Reino Unido, também há crescimento económico, o desemprego está em 4,5%, e o consumo é elevado. Segundo os estudos feitos depois do referendo, há uma crescente falta de confiança nos partidos políticos e no sistema democrático. Muitos britânicos deixaram de acreditar que a classe política coloque os interesses do país antes dos seus próprios interesses. Perderam confiança. E, como se nota, nem o crescimento económico, nem o desemprego baixo evitam a revolta contra a democracia. Tal como quando existia confiança política, a pobreza existente não desaguava no populismo. Tal como no Reino Unido, a diminuição da confiança na democracia também ocorreu nos Estados Unidos.
Por fim, a vulnerabilidade dos americanos e dos ingleses ao populismo, à demagogia, à mentira, a uma linguagem racista e xenófoba é muito preocupante. A história do século XX levou-me a ver nos Estados Unidos e no Reino Unido um apego forte aos valores políticos e económicos que mais valorizo. A nomeação de Trump por um partido com a tradição do Partido Republicano, a gradual transformação do Partido Conservador numa espécie de “soft” UKIP, a conquista de um partido moderado como o “New Labour” por um grupo de radicais trotskistas são acontecimentos demasiado perturbadores. Se isto acontece nos Estados Unidos e no Reino Unido, o que irá acontecer na Alemanha, em França e na Rússia? Se aqueles que acreditam na liberdade e em sociedades abertas e pluralistas, deixam de contar com americanos e com britânicos, quem nos irá defender?