Ao terceiro livro, a escritora brasileira Lígia Guerra é editada em Portugal pela mão da editora Self Desenvolvimento Pessoal. A travessia do Atlântico é motivada por Mulheres às Avessas, 175 páginas escritas de mulher para mulher. Mas que os homens cada vez mais têm vontade de espreitar.
Há cerca de sete anos, Lígia começou a escrever para o jornal Gazeta do Povo. Um dia, quando entrou uma diretora para o cargo antes ocupado por um homem, Lígia foi convidada para ser blogueira do jornal, para promover mais interatividade. Assim nasceu “Mulheres às Avessas”, projeto que mudou a via da escritora natural de Curitiba.
No primeiro mês, os homens começaram a ficar revoltados, pensando ser mais um blogue para falar mal deles. Dois meses depois, esses mesmo homens começaram a escrever a Lígia. Testemunhos, histórias, e-mails com cinco, seis, sete, dez páginas, a perguntar como lidar com a mulher. O blogue estava há quatro meses no jornal quando a rede Globo chamou a escritora para ser comentadora e abriu na TV o espaço “Mulheres às Av3ssas”.
Nessa altura, Lígia já estava a escrever o livro e a editora Sextante convidou-a a editar com eles. Mulheres às Avessas, o livro, foi lançado no Brasil há seis meses e já vai na quarta edição. “Para um país que não tem o hábito de leitura como o vosso, isso significa bastante”, disse a escritora, que pisou Portugal pela primeira vez, esta sexta-feira.
Após 12 anos a trabalhar como psicóloga analítica e do trabalho, trocou o consultório pela escrita e pelas palestras onde fala sobre temas como os relacionamentos, os ideais utópicos, o machismo da mulher, o autoconhecimento, a falta de desejo sexual da mulher, as frustrações e os medos masculinos.
Vai apresentar Mulheres às Avessas pela primeira vez aos leitores portugueses, na Feira do Livro, domingo, às 17h00. O que espera da sessão?
Espero que na Feira do Livro eu possa, não só falar, mas interagir com o público e ver o que as pessoas querem entender, tanto as mulheres para si próprias quanto os homens para o relacionamento com as mulheres. Quero entender a cultura aqui de Portugal, ver se é o que eu sinto quando dou cursos fora do Brasil, que é o sentir que as dúvidas e as angústias são todas muito parecidas, quer sejam mulheres que vivam na Áustria, na Suiça ou na Hungria.
Que angústias são essas?
Em primeiro lugar, eu vejo que a mulher está sempre a comparar-se. É uma dificuldade muito grande quando começamos a medir o nosso valor a partir do momento em que nos comparamos com outras pessoas. “Se a minha amiga tem dois filhos, trabalha fora e dá conta do recado, eu também vou dar conta”. “Ah, toda a gente diz que o manequim ideal usa o 38”. Temos mulheres lindíssimas por aí que vivem de imagem, aí você vai à loja, quer-se enfiar dentro de umas calças 38, não dá e você volta frustrada para casa sem comprar as calças. Você quer ser a melhor mãe, a melhor esposa, a melhor parceira, a melhor profissional… Eu penso que isso é muito escravizante, querer ser um modelo de perfeição 24 horas por dia. Isso não é real. A mulher hoje cobra-se muito, não só na balança do peso mas também na balança emocional. Sentimos dificuldade em ter tempo para nós enquanto pessoas, tempo para conversar com as amigas, deixar o filho em casa sem culpa, quando o homem sai com os amigos, vai jogar futebol, sem culpa de deixar a mulher a cuidar dos filhos. O contrário não é verdade, a mulher sai sentindo-se a pior mãe do mundo por pensar em si. É preciso que ela se liberte de muitos paradigmas que muitas vezes nem é a sociedade que cobra, é a própria mulher a si mesma.
Sente um mudança de mentalidades ao longo do tempo?
Como profissionais e como mães sim, a cabeça da mulher está bem mais aberta. Em relação à educação dos filhos, por exemplo, ela já tem uma visão muito mais cosmopolita em relação ao mundo globalizado, ela já entende que o filho vai amadurecer mais cedo que nas gerações anteriores, as perguntas chegarão mais cedo, seja sobre a sexualidade dele, sobre as questões de relacionamento, porque o número de divórcios cresceu muito, então isso também muda muito a dinâmica familiar. Porém, quando a questão é culpa, autocobrança, e com a própria sexualidade feminina, ainda há muitos tabus na cabeça das mulheres. Elas têm muita vergonha de fazer perguntas acerca da intimidade.
Porque é que isso acontece?
Eu acho um massacre o que é feito com as mulheres. Quando você vai a uma banca de revistas, se o seu casamento não está bem e você está sem apetite sexual, as dicas das revistas são absurdas. “Compre um salto de 12 centímetros, uma lingerie maravilhosa, pegue um chicote, suba em cima da cama e vire uma leoa”. No imaginário isso pode até parecer que funciona, o homem vê aquilo e fica entusiasmado, mas o que fica é um jogo de frustrações terrível, para ele e para ela. A mulher muitas vezes não está relaxada e sexo tem uma conexão intima com relaxamento. As revistas vendem utopias, ficção. Se as revistas falassem: “É normal a mulher ter períodos de baixa libido quando ela está num projeto de trabalho novo? É normal que a mulher diminua a sua libido após o nascimento do primeiro filho, porque ela tem uma explosão hormonal e está num novo papel desgastante e abriu mão da individualidade dela?”. Disso fala-se muito pouco.
Existe uma diferença grande entre homens e mulheres na hora de viver o sexo? O facto de não se falar sobre esses temas faz com que as mulheres não achem normal as fases de menor libido, achem que há algo de errado com elas?
Muito grande! E digo mais. As mães são machistas. As mães ainda criam os filhos para serem meninos felizes e as meninas para serem boas meninas. Você vê um pai a dar um revista pornográfica ao filho e o filho vai para a casa de banho, eles sabem que o filho se vai masturbar e isso é normal para os pais porque ele é rapaz. Se a filha dissesse que vai para o quarto dela masturbar-se, o que é que acontece? Essa falta de autoconhecimento acerca do próprio corpo faz com que depois as mulheres não consigam dizer ao parceiro o que lhes dá prazer porque nem elas conhecem o prazer do seu corpo. Essa falta de seriedade na educação sexual de meninos e meninas é horrível. Os rapazes são ensinados a ver filmes pornográficos, a subir para cima das raparigas e é rapidinha a coisa. Ninguém o ensina a fazer um preliminar, a entender que há um timing diferente entre os corpos. O resultado é termos um homem muito precipitado e uma mulher muito pouco preparada acerca da própria sexualidade.
Ainda temos uma sociedade machista?
Muito. Especialmente as mulheres.
Como assim?
As mulheres são muito machistas. As gerações atuais muito menos, mas ainda vemos as mães, por exemplo, a chamar a filha para secar a louça enquanto o filho está a jogar videojogos. Porque é que ela não chama o filho para secar a louça e deixa a menina terminar a sua atividade? Os pais homens também ainda têm muita dificuldade em falar sobre a sexualidade das filhas com elas.
E as mães?
As mães também, mas os pais são muito omissos. Teria de haver um equilíbrio maior, e é isso que eu tento trabalhar nas minhas palestras e no meu próximo livro. O fim do primeiro ano de casamento, o nascimento do primeiro filho e a adolescência são os três pontos principais pontos de divórcio. No primeiro ano de casamento ninguém se quer entender: é guerra de território. “Eu mando, este espaço é meu e vai ser do meu jeito”. O nascimento do primeiro filho é um caos, a relação triangula e muda. Finalmente, na terceira fase, os adolescentes brincam muito com os pais pelo poder, por quem manda. E eles sabem jogar, sem que os pais nem sempre percebam.
Em que outros aspetos as mulheres andam às avessas?
Acho importante explicar o título. As avessas, no fundo, é para que a mulher consiga tirar essa armadura que ela colocou nela, para que consiga ser mais leve e contradizer tudo aquilo que as pessoas julgam que é normal. É importante que ela consiga pensar mais a partir da própria cabeça do que da expectativa alheia. Não seguir o protocolo de fazer a faculdade do período esperado, de ter filhos se não for o seu sonho, mesmo que tenha um útero saudável.
Uma decisão nem sempre bem recebida pelas pessoas à volta.
Preconceito! Você mal casou e começam logo as perguntas sobre quando é que vêm os filhos, porque é que não quer ter, “você tem problemas? Você odeia crianças? Você é uma bruxa”. Não, a mulher só não quer ter filhos. Outro tabu surge quando a mulher ganha mais do que o homem.
O que ainda é uma raridade.
Uma raridade mas uma realidade. Vejo no Brasil muitas mulheres que ganham bem mais que os homens e o caos que isso gera no casamento, por vezes nos pais da mulher, que acham que a filha arranjou um homem fraco e que podia arranjar muito melhor. Mas ser às avessas é dar um passo a mais, acreditar quando está toda a gente a desistir e saber lidar com o olhar alheio, seja de crítica ou de aplauso.
É importante dizer que todos nos sentimos frustrados, que todos nos sentimos infelizes, que há dias em que acordamos sem vontade de sair de casa, que é normal. E que as pessoas vendem vidas que são surreais e inexistentes. Essas vidas só existem no tablóide de Hollywood. A nossa realidade é outra. Demorou um ano para o corpo recuperar da gravidez? Então curta o seu filho, é uma fase única que não volta mais. Quer trocar de emprego e vai ganhar menos durante um período para chegar onde quer? Faça. Quer chorar? Chore. Vai jantar fora? Coma. Nem que no dia seguinte tenha de ir dar uma corrida ao parque. Viva. Pare de pensar sempre no amanhã ou no que os outros pensam e viva o momento.
Há pouco falava da mãe que chama a filha para limpar a louça e não o filho. Acha que é porque as gerações anteriores foram educadas assim ou porque a mãe sente que, como teve de passar por aquilo, agora a filha tem de passar pelo mesmo?
Há um tabu que eu quero trabalhar no meu próximo livro, e que não é quase falado, que é a inveja da mãe sobre a filha, e a inveja da filha sobre a mãe.
Não se passa o mesmo entre pai e filho?
Passa também. Mas eu falo da mãe e da filha porque a relação emocional entre elas costuma ser mais intensa. Muitas vezes a mãe fica ressentida porque sente que abriu mão de tudo pela filha e agora ela quer ir morar para outro país, sente que a filha a vai abandonar, fica triste porque a filha não vai casar com o rapaz que ela imaginou. A mãe por vezes sente-se traída, numa altura em que já tem entre 40 e 50 anos e está a perder a sua juventude, ao mesmo tempo que a filha vem cheia de juventude, de sonhos e de projetos realizados. A mão fica muito feliz, mas às vezes dá aquela frustração: “porque é que eu não tive a coragem dela?”. Se as duas souberem construir isso, é um momento lindo para ambas. Eu recordo-me de uma jovem que veio ao meu consultório com essa questão e a mãe teve muita dificuldade em admitir. Depois de finalmente admitir, essa mãe voltou a fazer a faculdade que tinha deixado para trás, voltou ao ginásio, emagreceu, começou a viajar e abriu um escritório de arquitetura com 58 anos, que era o seu sonho. O que aconteceu foi um reencontro da filha com a mãe, da mãe com a filha e, principalmente, das duas consigo mesmas. Se soubermos lidar com elas, as crises são oportunidades.
E entre mulheres sem laços familiares. Somos mais competitivas? Há menos solidariedade feminina?
Não. Nós somos é mais claras e transparentes. O que eu acho é que nós, de uma certa forma, fomos incitadas culturalmente a sermos assim. Porque para o homem é mais fácil controlar um grupo feminino se a mulher disputa. Se nós trabalhamos todas juntas, ficamos unidas e queremos um aumento, fica mais difícil para o chefe. Temos que tomar consciência de que os homens também falam mal uns dos outros, também discutem, só não falam disso. Os homens também ficam frustrados por ficarem carecas e barrigudos, só não admitem.
A perda dos atributos físicos no homem é mais bem aceite pela sociedade do que na mulher?
Ainda, mas isso está a mudar e os homens sentem cada vez mais pressão. Até há pouquíssimo tempo nós não tínhamos tantos casos de bulimia e anorexia entre rapazes como temos agora, a nível global. Se reparar, abriu todo um mercado de cosmética para o homem: tinta para o cabelo, creme para pés, para o rosto, para as mãos, depilação. Isso tudo é reflexo de que eles também se estão a sentir escravizados por isso tudo. Quem salva o homem disso? A amante, que acha sempre o homem lindo. A esposa vai cuidar do colesterol do marido, quer que ele coma bem, que faça desporto, que emagreça, que se cuide. Ela é chata. A amante diz: “nossa, que barriga linda a sua”. Muitas vezes o interesse é outro.
Mas as mulheres também recorrem aos amantes. Tanto quando os homens?
Hoje em dia sim. Em busca da igualdade, a mulher acabou equivalendo-se no que é bom e no que é mau. Não estou a fazer um julgamento moral sobre se é bom ou mau ter amantes, mas o que eu posso dizer às mulheres é que não se prestem a esse papel. Nenhuma mulher deveria jamais receber migalha de ninguém, seja financeira, seja emocional. A mulher tem o direito de ter um homem que tenha orgulho dela, que ande com ela na rua, que a admire, que a valorize, e não que a esconda, que a humilhe, que seja só para alguns momentos. A autoestima da mulher tem de ser melhor trabalhada e é também nesse sentido que eu trabalho.
Nos anos em que deu consultas, notou uma diferença nas questões que as mulheres lhe iam colocando ao longo do tempo?
Nas palestras abri ainda mais a cabeça do que no consultório. Os e-mails que recebo dos homens e das mulheres em palestras são muito mais limpos, não têm filtro porque não há uma pessoa à sua frente. Quando escreve anonimamente, à vontade, coloca tudo o que o angustia e nas palestras, por incrível que pareça, sinto que as mulheres e os homens se sentem reforçados na prática da pergunta. No começo, um pouco de timidez, sempre. Depois, é uma questão de identidade: “Não sou só eu que estou a passar por isso”, então as pessoas saem aliviadas das palestras, o que é normal. Sentem que não são ETs, que há mais pessoas a sentir frigidez, a não sentir prazer nenhum, que há mais homens com impotência por causa das dificuldade no trabalho, do desemprego, a dificuldade de não se sentir tão atraente, tão carismático ou tão bem sucedido quanto gostaria. O nível de profundidade a que eu normalmente chego com as pessoas é muito bom. Eu falo normalmente 50 minutos e abro para duas horas de perguntas. Aí aquilo aprofunda e é muito bacana, é um ganho para todos nós. No meu caso, como escritora, aquilo é um canteiro de obra.
Qual o rácio de mulheres e homens nas palestras?
Os homens estão procurando demais, demais. Existem palestras fechadas para homens e palestras fechadas para mulheres. Existem palestras mistas. Então, os homem estão à procura. Já foi a época em que eles não queriam saber. Agora vão e vão mesmo.
Para entender as mulheres?
Para se entenderem.