Três anos e meio e dois anos e nove meses de cadeia. Foi esta a pena aplicada, esta segunda-feira em Lisboa, a duas magistradas do Ministério Público (MP) acusadas de fornecer informações a um homem que conheceram pela internet — e que estava fugido da cadeia. Ficou provado que as duas retiraram informações sigilosas do sistema informático do MP para as forneceram ao arguido, a fim de ele poder munir-se de identidades falsas.

Ainda assim, a juíza considerou que o facto de as arguidas terem sido demitidas de funções, era já uma “sanção  pesada”. E decidiu suspender as penas de prisão aplicadas. O principal arguido foi condenado a cinco anos de cadeia efetiva. E um quarto arguido no processo, que com ele trabalhou e morou, levou uma pena suspensa de um ano e três meses.

UMA HORA DEPOIS… A SENTENÇA

De olhos fixos em frente. E de olhos fixos no chão. Foi assim que dois dos quatro arguidos presentes se mantiveram durante quase uma hora de leitura da sentença. Ela, Sílvia, magistrada do MP, ele, Lorosa, com um longo cadastro de burlas e com fama de encantar mulheres, sobretudo “as mais fragilizadas”. Separados por um par de cadeiras e depois de terem vivido uma relação (chegaram a viver juntos), os dois não trocaram um olhar.

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1.85 m de homem. Chegado à sala de audiência uma hora depois do marcado, às 15.00, pelas mãos de três polícias. Lorosa está preso em Coimbra, mas compareceu. Chegou de camisa branca riscada, de linho, a olhar para a frente. Tentou cruzar os olhos com a magistrada Sílvia, já sentada na ponta oposta do banco dos réus. Em vão. A juíza mandou-o chegar-se mais ao centro. Ele ali ficou, de olhar preso no chão. Uma vezes esfregava a cabeça, outras os olhos. Impávido. Ou descontraído (pelo menos, aparentemente).

Ela ainda teve amigas por perto. Magistradas que lhe deram o privilégio de sair pela porta das traseiras e fugir aos fotógrafos, mesmo já não sendo procuradora do MP. Foi demitida em 2012, depois de formalmente acusada. Cabelo castanho pelo ombro, camisa bege a condizer com o sapato, não alto nem baixo. Como ela, nem gorda, nem magra. Assim que a juíza entrou na sala, as amigas sentaram-se na assistência. Ela ficou imóvel, quase impenetrável, focada em frente. Nunca falou durante todo o julgamento. Nesta última sessão também não. Ditada a sentença, a juíza presidente perguntou-lhes se tinham algo a dizer. Os dois abanaram a cabeça. Queriam dizer não.

 “Este julgamento tornou-se complicado porque se tomou consciência que estas duas senhoras comprometeram irremediavelmente as suas carreiras. Percebemos que Lorosa de Matos era uma pessoa manipuladora. E temos isso em conta na medida da pena”, disse a juíza Rosa Brandão.

A acusação

Corria o ano de 2004 e a vida de Sónia sofria uma reviravolta. Começara a trabalhar como procuradora depois de uma licenciatura em Direito e um curso na magistratura que muitos não conseguem concluir, ou, sequer, entrar. A sua vida pessoal parecia desmoronar-se. Estava a separar-se do marido. Agarrou-se à internet. Aos chats. E conheceu Lorosa de Matos (que não se apresentou como tal). O homem bem falante identificara-se como inspetor da Interpol a trabalhar em Inglaterra. A troca de mensagens acentuou-se, ganhou cor e alimentou expectativas.

Chegou Dezembro e Sónia decidiu voar. Apanhar o avião e encontrá-lo pela primeira vez. Começaram em Inglaterra “um relacionamento íntimo”, como diz a acusação, a que o Observador teve acesso. Um mês depois o encontro repetiu-se, mais intenso. O próximo registo, na acusação, é de dezembro de 2005. Quando Sónia volta encontrar-se com Lorosa, mas em Alicante, Espanha.

O coletivo de juízes deu como provado que, nesta viagem, Sónia apanhou um avião para Heathrow, recebeu em mãos um envelope com documentos de identificação falsos, com o nome “Ricardo Moreira” e a fotografia de Lorosa de Matos. O nome tinha sido pesquisado por Sónia na base de dados do MP. Foi procurado entre muitos, com o único critério de ter uma altura próximo do 1,85 m – a do arguido. “Não fosse a identificação ser de um homem de 1,50 m e isso causasse estranheza a quem visse o bilhete de identidade e olhasse para o arguido Lorosa de Matos”, disse a juiza na leitura da sentença.

De volta a Espanha, identificando-se como fiscal portuguesa, “Sónia dirigiu-se à Jefatura Superior de Polícia”, para obter dos serviços um número de de identidade estrangeiro. “As arguidas, enquanto magistradas do MP, sabiam perfeitamente que não podiam fazê-lo. Não estando no exercício profissional, não podemos usar do nosso título”, disse Rosa Brandão.

Em novembro de 2008, Sónia e Lorosa já eram apenas amigos. Em tribunal disseram que chegaram à conclusão que era melhor “manterem-se amigos”. Sónia apresentou Lorosa a uma colega de trabalho, Sílvia, via internet. Lorosa apresentava-se como “Rui” e depressa começou a estreitar laços com a magistrada. “A vida não pode ser vista a preto e branco. Estamos a lidar com sentimentos de rejeição de ex-companheiros e que as levaram a aderir a estas relações. Num primeiro momento, elas andavam um pouco fora do seu estado normal”, ressalvou a juíza.

Sílvia e Sónia viajaram as duas para Inglaterra, em Manchester.  Neste encontro, Sílvia envolveu-se com Lorosa e Sónia com um amigo dele, Rui (o quarto arguido), com quem ainda hoje mantém uma relação, (o casal pediu à juíza para faltar à sentença por se encontrar em Moçambique).

Sílvia pediu a vários funcionários judiciais, que com ela trabalharam, para pesquisarem na base de dados da identificação civil alguns nomes. Voltou a viajar com Sónia, mas para Espanha, para verem Lorosa e Rui. Estavam apaixonadas.

Depois desta viagem, as duas procuradoras chegaram mesmo a conseguir uma carta de condução portuguesa em nome (falso) do arguido. “A funcionária do Instituto da Mobilidade e dos Transportes testemunhou, aqui, que considerou estranho uma carta de condução que, num processo normal, demora seis meses a ser emitida, demorar três semanas. E comunicou-o aos seus superiores”, lembrou a juíza. Comunicou, depois de, ainda na posse da guia que antecede a carta, as magistradas se terem deslocado ao IMTT na tentativa de pressionar o processo. “Houve preocupação que a carta não chegasse a casa de Eduardo Carqueja que, coitado, nem sabia que estavam a usar o nome dele”, explicou a juíza.

Já na posse de uma identificação falsa, Lorosa vivia com a Sílvia em Portugal e mantinha “relacionamentos com outras mulheres”. Era do conhecimento da magistrada. “Tivemos testemunhas que se aperceberam quem era o arguido e terminaram as relações. Elas nunca questionaram nada”, prossegue a juíza.

A PJ descobriu Lorosa em Novembro de 2010, seis anos depois de ele se ter evadido, na sequência de uma saída precária. Sílvia e Sónia mostraram-se surpreendidas. Disseram sempre ter sido enganadas e julgar estar perante um inspetor da Interpol. Em tribunal, ele defendeu-as e insistiu na mesma teoria. Sónia falou “para se contradizer” e dar “explicações ilógicas”, na boca da juíza. Sílvia manteve-se sempre silenciosa. Ainda vivia com ele quando foi detido. Na casa dela havia bens pessoais dele.

O coletivo de juízes não ficou convencido que duas magistradas do MP se deixassem enganar assim. Ainda para mais quando os nomes que procuraram no sistema informático correspondiam às três identidades falsas usadas pelo arguido. Sónia alegou que procurava um irmão gémeo de Lorosa, daí a partilha de informações. “Irmão gémeo com apelido diferente?”, interroga a juiza. Há ainda recolha de informações pessoais de funcionários da PJ (um deles foi o primeiro que deteve Lorosa) e de magistrados do MP. Ficou por explicar porquê.

Crimes e falsificações

As magistradas foram condenadas por crimes como falsificação de documentos, violação do sigilo profissional e favorecimento. E foi neste último crime que Sílvia foi alvo de uma atenuação, porque viveu com o suspeito em união de facto, não se configurando este tipo de crime. Lorosa foi condenado como reincidente. E a juíza teve em conta a declaração que falsificou, onde declarava a suspensão de contumácia (a anular a declaração que dizia que era procurado para cumprir uma pena de nove anos de cadeia por burla). Esta declaração permitia-lhe usar a identidade própria em qualquer serviço.

As três identidades que Lorosa usou, Rui, Vasco e Eduardo, pertenciam a pessoas que não faziam ideia que a identidade deles estava a ser usadas. Um deles fora alvo de um furto de documentos. O outro, um empresário do Porto, desconhecia sequer que o seu nome tinha sido usado para perfilhar uma criança em Espanha. Sim. Lorosa ainda foi pai em Espanha, na sequência de um outro relacionamento.

Lorosa enganou Justiça com caso de Rui Pedro

Lorosa não conseguiu apenas convencer duas magistradas a obter o que queria. Estava na cadeia de Pinheiro da Cruz a cumprir uma pena de nove anos quando, em 2003, disse que sabia onde estava Rui Pedro. Deixaram-no sair, deram-lhe um carro e ele ainda chegou a telefonar de Espanha, a dizer que tinha a criança consigo. Nunca mais voltou. Até a PJ o descobrir.