Cada vez mais se veste ou se usa a tecnologia como um adereço útil. E se a moda de partilhar a vida inteira nas redes sociais parece ainda mal ter começado, vão-se descobrindo em novas aplicações diferentes utilidades. Acontece com frequência: uma ideia é desenvolvida com um determinado fim e acaba por se tornar útil noutro. Os dispositivos de captação automática de imagens não são novidade, mas novos estudos sugerem que podem beneficiar significativamente a qualidade de vida dos doentes de Alzheimer, porque funcionam como retentores de memória.
As câmaras de disparo automático como a Autographer ou a Narrative são aplicativos que se prendem à roupa e que tiram centenas de fotos por dia. Entre outras características, possuem sensores de movimento, de luminosidade e GPS. Prendem-se com um clipe ao casaco ou ao cinto, tornando-se assim num método simples de captar em imagem — e na perspectiva do utilizador — todos os minutos de um dia inteiro. Essas fotos podem ser visionadas posteriormente e até partilhadas pelas redes sociais.
O Autographer foi o resultado da aplicação comercial de um projeto que a Microsoft Research desenvolveu chamado SenseCam, com o objectivo inicial de servir de “caixa negra” do dia a dia, registando acidentes e outras ocorrências. Mas o departamento de pesquisa da Microsoft percebeu que, mais do que para distrair e partilhar, este tipo de tecnologia poderia ter outra aplicação prática: ajudar a registar a memória daqueles que, involuntariamente, não a têm.
A doença de Alzheimer é apenas uma das várias formas de demência, mas é provavelmente a mais falada, quanto mais não seja porque representa mais de metade de todas as formas de demência. Caracteriza-se inicialmente pela perda progressiva da memória de curto prazo. O doente deixa de ser capaz de se lembrar onde fica a gaveta dos talheres da casa onde viveu toda a vida — apesar de poder ser capaz de recuperar memórias de infância. É uma doença crónica e devastadora, também para os familiares e amigos destes doentes, que se confrontam com o esquecimento constante. Nos estados mais avançados (ainda antes da perda total de autonomia e mobilidade), um pai deixa de reconhecer um filho. O lapso da memória a curto prazo tem outras consequências práticas e igualmente sérias, como por exemplo o facto de os doentes de Alzheimer se perderem com facilidade. Um passeio breve pelo quarteirão pode terminar em horas de deambulação pelas ruas, pois estas pessoas deixam de ter a capacidade de reconhecer o caminho trilhado minutos antes. Já existem localizadores GPS para estes doentes, mas o objetivo das câmaras “wearable” é outro.
Vários estudos apontam para a importância do registo diário (escrito) como um método para ajudar os doentes a manter a memória ativa, mas este nem sempre funciona e, pelo contrário, pode nalguns casos agravar os estados de confusão e ansiedade: imagine como seria se lhe pedissem para escrever sobre um dia do qual já quase não se recorda e, ainda por cima, tendo consciência disso. As fotografias são por isso um método muito mais eficaz para registar os momentos passados no curto prazo e têm uma vantagem extra: estudos revelam que os doentes de Alzheimer conseguem não só recordar os momentos esquecidos, como são capaz de os memorizar em 85% das vezes e durante vários dias ou semanas. Por outras palavras, ao verem numa fotografia onde está a gaveta dos talheres (para usar o mesmo exemplo), conseguem reter essa informação nas semanas seguintes. Pensa-se que a visualização destas imagens serve de “gatilho” na ativação dos centros de memória visual do cérebro que são usados quando assimilamos uma experiência pela primeira vez. Os cientistas acreditam que a repetição dessa ação — o confronto repetido com uma imagem — acaba por transformar a memória em consciência e que provavelmente, nalguns doentes, consegue recuperar funções cognitivas.
Outros trabalhos estão em curso, mas a evidência estatística de que os doentes de Alzheimer (em fase inicial) são capazes de “fixar” memórias através de simples fotografias é um dado muito animador. Estas câmaras são muito pequenas e fáceis de utilizar, não necessariamente para o doente com demência, mas para quem o auxilia e acompanha — as fotos têm de ser descarregadas para o computador — e custam entre 200 e 300 euros.