“Uma das ligações que há entre a Biologia e a banda-desenhada (BD) é que gosto de ambas e comecei a gostar delas ao mesmo tempo”. João Ramalho Santos fala assim das suas grandes paixões. Quanto à BD, é argumentista e co-proprietário de uma loja em Coimbra. Já na Biologia, é investigador, líder do Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra (CNC) e acabou de ganhar um importante prémio americano.

1998: Ramalho Santos efetua o Frontiers in Reproduction. Trata-se de um curso intensivo ministrado no Marine Biology Laboratory (Massachussets). Resultou da necessidade de um conhecimento mais especializado em reprodução. Antes, o doutoramento e o pós-doutoramento tinham sido em áreas muito diferentes entre si. “Tento diversificar, senão aborreço-me”, garante.

Galardão é atribuído anualmente desde 2011 e visa premiar antigos alunos da formação que se destacam na área da Biologia Reprodutiva.

A presença no curso foi fundamental para a distinção, mas já lá vão mais de 15 anos. “Obrigado por me chamar velho”, ironiza. O galardão é atribuído anualmente desde 2011 e visa premiar antigos alunos da formação que se destacam na área da Biologia Reprodutiva. Depois de britânicos e americanos, o quarto prémio é português. Foi gratificante, “por ajudar a validar um trabalho e uma carreira que não são lineares”. E uma grande e agradável surpresa para Ramalho Santos: “Pensamos nestes prémios só para anglófonos ou pessoas com grande ligação aos Estados Unidos. Não é o meu caso, que fiz grande parte da minha carreira em Portugal”.

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1997: Ramalho Santos é autor, a meias com João Miguel Lameiras, da obra Cidades Visíveis. É um ensaio, com elementos de ficção, sobre a banda-desenhada belga Cidades Obscuras. Por coincidência, foi publicado precisamente durante o curso do laboratório de Massachusetts. A Biologia e a BD sempre lado-a-lado. Esse livro, tal como outros textos críticos, serviram de ponto de partida para a escrita de argumentos de banda-desenhada. A estreia aconteceu em 2004, por ocasião dos 30 anos do 25 de Abril.

Nos últimos anos, a investigação de Ramalho Santos incidiu no estudo das características de espermatozóides.

As duas paixões surgiram em simultâneo, no antigo ciclo preparatório. “Ia a correr para o armazém da Bertrand para comprar a Tintin (revista semanal de banda-desenhada) antes de ela ir para as lojas”, recorda. Era fã do Corto Maltese e, como também gostava muito de história, do Alix. Se as ligações entre a BD e a Biologia não são óbvias, na altura eram nulas. “Eu pensava que uma coisa era estudar, ter boas notas e seguir uma carreira e a outra era a banda-desenhada”. Diz isto antes de rematar com um pujante mea culpa: “Eu era um elitista e um palerma”. Ainda que tenuemente, as ligações entre as duas áreas, entre a arte e a ciência, só apareceram na vida de Ramalho Santos muito mais tarde.

Laboratório VI

“Os espermatozóides podem parecer todos iguais, mas, tal como as pessoas, são muito diferentes uns dos outros”, explica João Ramalho Santos.

Nos últimos anos, a investigação de Ramalho Santos incidiu no estudo das características de espermatozóides. Para leigos, o biólogo alerta: “Os espermatozóides podem parecer todos iguais, mas, tal como as pessoas, são muito diferentes uns dos outros”. Em termos clínicos, há uma aplicação forte na área da reprodução assistida, para aumentar a taxa de sucesso de fertilização. Ou ainda no estudo das células estaminais, com mecanismos idênticos aos dos espermatozóides.

Um dos objetivos concretos passa por obter populações celulares 100% puras, seja do cérebro ou do músculo cardíaco, algo que é clinicamente muito valioso.

Pipetas, microscópios, meio e culturas celulares. Estamos num dos laboratórios do CNC, destinado ao estudo do metabolismo das células estaminais. Um dos objetivos concretos passa por obter populações celulares 100% puras, seja do cérebro ou do músculo cardíaco. Algo que é clinicamente muito valioso, dado que a introdução de impurezas celulares no organismo cria riscos para a saúde humana.

Ana Sofia

“É um líder, não é um chefe”, afirma Ana Sofia Rodrigues, investigadora há seis anos.

“É um líder, não é um chefe”. As palavras são de Ana Sofia Rodrigues, investigadora no laboratório há seis anos. São, claro, sobre João Ramalho Santos. Enquanto nos diz isto, ouvimos algures o “chefe” a interagir informalmente com os elementos da equipa. “Vamos lá Marcelo”, incentiva o mais jovem, o Jr., enquanto bate palmas. Ana Sofia resume assim: “Nunca houve aquela coisa do senhor professor, que há muito em Coimbra”.

Há um incentivo permanente para que os elementos da equipa se candidatem a novas formações, tentem publicar artigos científicos, “não fazendo só por fazer”.

A vida de Ramalho Santos corre inevitavelmente a alta velocidade. Mas, segundo Ana Sofia, “está sempre disponível dentro da sua indisponibilidade”. E há um incentivo permanente para que os elementos da equipa se candidatem a novas formações, tentem publicar artigos científicos, “não fazendo só por fazer”, e procurem novos métodos de financiamento.

Quanto às consequências futuras do prémio, elas são difíceis de avaliar. Seja para a equipa ou para o próprio investigador. “Se houvesse bolsas associadas era outra coisa, mas enriquece obviamente o currículo do grupo”, garante Ana Sofia Rodrigues. Em vez disso, prefere destacar a justiça do prémio: “É acima de tudo um reconhecimento mais que devido para o professor”. Já Ramalho Santos realça o valor alargado da ciência portuguesa, esperando que “que no futuro esta distinção se traduza em outro tipo de projetos”. E remata com um desejo muito concreto, destinado aos antigos alunos que fizeram o curso americano: “Gostava muito que, um dia, um deles ganhe também este prémio”.

Numa via científica mais lúdica, de levar a ciência dos laboratórios até aos cidadãos, houve um projecto de divulgação sobre células estaminais.

Regresso final à banda-desenhada. A paixão é visualmente nítida no gabinete do investigador. Ainda que num espaço relativamente despido, vemos alguns quadros de BD espalhados pelas paredes. Biologia e banda-desenhada, duas realidades bem distintas que pouco ou nada se cruzam. Ou será que sim?

Uma Aventura Estaminal

“Uma Aventura Estaminal”, de João Ramalho-Santos.

Numa via científica mais lúdica, de levar a ciência dos laboratórios até aos cidadãos, houve um projeto de divulgação sobre células estaminais. Entre os materiais realizados, estava, lá está, um livro de banda-desenhada, chamado Uma Aventura Estaminal. Uma obra desenhada pelo premiado ilustrador André Caetano e com argumento do próprio João Ramalho Santos. “Consegui finalmente juntar as duas coisas de que realmente gosto”, afirma. É, enfim, a Biologia aos quadradinhos.