Havia crianças, tanto hoje como na altura, a morrerem em África. Adultos e idosos também, todos os dias, roubados de vida pela fome ou doença. Ajuda era precisa, muita dela, e o dinheiro, por isso, também. Que melhor maneira de o chamar, então, além da música? Talvez não haja, nem houvesse, nenhuma. Terá sido isto, em 1985, a passar pela cabeça de Harry Belafonte, que começou a pega no telefone, fazer chamadas, aproveitar contactos, usar influências e falar com amigos para enfiar 46 dos mais populares cantores, da altura, no mesmo estúdio de gravação em Los Angeles, EUA:
Um que, à entrada, tinha pendurado um cartaz que deixava um conselho a quem entrasse: “Deixem os egos à porta.” Porque esse dia, em janeiro de 1985, era para gravar as vozes que dariam palavras à canção que, a 7 de março desse ano, foi pela primeira vez tocada numa estação de rádio. E no sábado cumpriram-se 30 anos desde que o apelo de “We Are The World” começou a ser ouvido e a angariar dinheiro para a pobreza em África.
https://www.youtube.com/watch?v=M9BNoNFKCBI
É o que tem feito durante estas décadas. Embora sem precisar, a Forbes escreveu que a canção já terá ultrapassado os 55 milhões de euros angariados desde que, nas rádios, os seus acordes começaram a ser ouvidos e, nas televisões — e mais tarde, nos ecrãs de computadores –, o videoclip foi sendo visto. Tudo acabou por ser o produto da sessão que arrancou na manhã de 28 de janeiro de 1985 e se arrastaria bem para dentro do dia seguinte.
Harry Belafonte, um empresário, incutira a Quincy Jones e Michael Omartian, os dois produtores, a tarefa de reunirem artistas que, além da voz, tivessem nome e popularidade suficientes para tornarem a aí vinda canção numa bomba musical que chamasse a atenção de tudo e todos. Conseguiram-no logo pelas duas caras cujas mentes incumbiram de escrever a letra da canção — Lionel Richie e Michael Jackson que, à época, eram talvez a maiores figuras da música pop.
A letra construiu-se a quatro mãos e a duas cabeças para, no tal dia, ser cantada por 46 vozes, das quais 21 teriam direito a partes a solo durante a canção. Nomes, dos conhecidos, havia muitos: como Stevie Wonder, que surge logo no arranque da canção, Bruce Springsteen, cuja rouquidão irrompe logo no primeiro refrão, Ray Charles, Cyndi Lauper, que luz verde tinha para improvisar, Diana Ross, Tina Turner, Bob Dylan, Billy Joel ou Willie Nelson.
Tudo se compôs e alinhou para que, no final, se ouvisse uma canção com mensagem inspirador e visse um vídeo que mostrava a união da nata musical norte-americana, da época, a unir-se por uma causa. O resto, claro, são histórias. E muitas se fizeram ali para, mais tarde, serem contadas, como contou a Rolling Stone. Foi a revista que escreveu como, a meio da gravação, todos se riram quando Ray Charles perguntou onde ficava a casa de banho e Stevie Wonder, de pronto, se voluntariou a conduzi-lo até lá, dizendo: “Eu levo-te lá Ray, vem atrás de mim!” Ou seja, foi um cego a mostrar o caminho a outro cego.
Antes, quando a manhã ainda abria a pestana e os artistas iam chegando à vez, embalados por limusinas e escudados por guarda-costas, Bruce Springsteen deu nas vistas por chegar sozinho e ao volante da sua própria carrinha de caixa aberta, que estacionou mesmo à entrada do estúdio. O cantor, aliás, dera na noite anterior, em Nova Iorque, na ponta oposta dos EUA, um concerto de quase quatro horas, à boleia dos temas de “Born in the USA”, álbum que lhe daria sete singles para o top-10 das tabelas de música mais ouvida no país. Estes e outros episódios aconteceram nos bastidores da canção cujo videoclip arranca com a imagem do planeta Terra, a girar — na qual, por curiosidade, se vê mais de EUA do que de África.