Título: Um Diário de Preces
Autor: Flannery O’Connor (tradução de Paulo Faria)
Editora: Relógio de Água
Páginas: 112
Preço: 12€

1507-1

 

A escritora norte-americana Flannery O’Connor (Savannah, Geórgia, 1925-64) manteve o “diário de preces”, que deu origem a este livro, na Universidade de Iowa, onde ingressou em 1946 e onde frequentaria o Iowa Writers’ Workshop. O motivo principal do diário, agora editado pela Relógio D’Água com tradução de Paulo Faria e prefácio de Pedro Mexia, são as aspirações literárias da jovem Flannery, à época com 21 anos. A mundanidade do seu motivo desperta em Flannery uma forma do pudor da qual as preces são ou a penitência, ou o testemunho.

Reservadas as devidas distâncias, as preces de Flannery são análogas a epístolas de um aspirante a um escritor honorável que não chega a responder-lhe. Perante tal figura, Flannery envergonha-se do ridículo de desejar vir a ser alguém. O ridículo não parece estar no conteúdo da aspiração, uma vez que desejar ser escritora pode revelar-se a forma que lhe coube de fazer da sua vocação um instrumento de Deus, radicando, pelo contrário, na mesquinhez inerente a qualquer súplica. Reduzidos a preces e a escrever, não nos podemos eximir de, no decurso das nossas súplicas, incorrermos nas falhas de que elas aspiram ser a purga.

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Não é então perante a obra feita do seu destinatário que a jovem se aflige, mas perante a experiência de encarar as suas preces por escrito e de debater a refracção provocada pela especificidade do seu meio. Não é fora do Diário, na vida no Iowa de Flannery ou na sua glória vindoura, que se revela profícuo procurar pelo contexto da transgressão de que estas preces nos falam, a transgressão porventura ininteligível de se ser ambicioso, uma vez que esta é gerada no decurso de escrever o Diário, como tantas vezes acontece. A consciência do descabimento da esperança na glória futura não tem lugar independentemente da sua narração torturada e, nesta medida, não pode ser percebida independentemente do acto de escrever as preces (da própria ideia de manter um diário) nas quais Flannery esperava penitenciar-se dela.

Uma vez que a falha é de natureza literária, poderia dizer-se que na ausência de preces por escrito não haveria lugar a transgressão, o que Flannery parece pressentir reconhecendo que aquilo que a separa de Deus é ela mesma —

“[…] esforço artístico neste domínio, ao invés de pensar em Ti e de me sentir inspirada pelo amor que tanto desejaria sentir. Meu bom Deus, não consigo amar‑Te como pretendo. És o crescente esguio de uma Lua que avisto, e o meu eu é a sombra da Terra que me impede de ver a Lua inteira. O crescente é muito belo, e talvez uma pessoa como eu não deva ou não possa ver mais; mas o que eu receio, meu bom Deus, é que a sombra do meu eu se torne tão grande que obscureça a Lua inteira, e que eu julgue a minha própria valia pela sombra, que nada é.

Não Te conheço, meu Deus, porque eu própria Te encubro. Por favor, ajuda‑me a arredar‑me do caminho.

Desejo muito triunfar no mundo com as coisas que pretendo levar a cabo. Dirigi‑Te preces a este respeito, esforçando a mente e os nervos, mergulhei num estado de tensão nervosa e disse «oh, meu Deus, por favor» e «tenho de conseguir» e «por favor, por favor». Não Te dirigi os meus pedidos da maneira certa, sinto‑o. Doravante, deixa‑me pedir‑Te com resignação — o que não é nem pretende ser um afrouxar das orações, antes um orar menos febril —, com a consciência de que este frenesi é causado por uma ânsia daquilo que desejo, em lugar de uma confiança espiritual. Não pretendo fazer conjeturas. Quero amar.

Oh, meu Deus, por favor, desanuvia a minha mente. Por favor, purifica‑a.

Peço‑Te um amor mais puro pela minha santa Mãe e a ela peço um amor mais puro por Ti.

Por favor, ajuda‑me a entrar no mais fundo das coisas e a descobrir onde Tu estás.

Não pretendo renegar as orações tradicionais que rezei ao longo de toda a minha vida; mas tenho estado a rezá‑las sem as sentir. A minha atenção é sempre muito fugidia. Assim, tenho‑a a cada instante. Sinto uma onda calorosa de amor a aquecer‑me quando penso nisto e quando escrevo estas palavras para Ti. Por favor, não deixes que as explicações dos psicólogos a este respeito arrefeçam de súbito estes meus sentimentos. O meu intelecto é tão limitado, Senhor, que só me resta confiar em Ti para me conservares na senda correta.

Por favor, ajuda todos aqueles que amo a libertarem-se dos seus padecimentos. Perdoa-me, por favor.” (p. 17-18).

As preces, aliás belíssimas, encerram o seu princípio de geração, justificando a continuidade do diário que, pensando assim, é inerentemente inconcluso. São não um exercício de aproximação ao divino, mas um exercício entusiasmado de afastamento, em cuja expressão ponderada reside a promessa de talento da jovem Flannery. Elas estão, e a sua autora parece sabê-lo, na condição de todo o diário e na de todas as preces, nos quais é esperado encontrar mais os seus autores do que os seus destinatários. Pode ser, contudo, que escrever para a glória de Deus seja mais parecido com deixarmo-nos entusiasmar com o que não somos capazes de escrever, prolongando a nossa inaptidão menos do que como numa carta em progresso e mais como num diário: um género cujo sentido e continuidade obedece por princípio a um calendário extrínseco.

As preces de Flannery O’Connor advertem-nos não quanto a uma particularidade dos anseios de qualquer jovem escritor, mas de uma particularidade de qualquer suplicante. Toda a oração é do ponto vista cósmico, e em relação a uma equivalência de mesquinhez, a nada opaca missiva de um aspirante. À semelhança de uma pessoa de vinte e um anos, e como uma pessoa de qualquer idade, este livro caracteriza-se por complicar coisas simples e simplificar coisas complicadas, dando a ler, sob a forma de preces, um solilóquio.

Em 1947, Flannery O’Connor publicou o primeiro dos seus dois únicos romances, Wise Blood (Sangue Sábio). Em 1955, recolheria os seus contos em A Good Man Is Hard to Find and Other Stories (Um Bom Homem é Difícil de Encontrar) e em 1960, publicaria um segundo romance, The Violent Bear It Away (O Céu é dos Violentos). Já a título póstumo, foi publicada uma segunda antologia dos seus contos, Everything That Rises Must Converge (Tudo o que sobe deve convergir), ainda compilada por O’Connor. Dedicou-se também, na sua quinta em Milledgville, à criação de pavões e à pintura. Morreria de lúpus aos trinta e nove anos.

Parte considerável da obra de O’Connor está publicada em Portugal pela Cavalo de Ferro e, mais recentemente, pela Relógio D’Água.