E se, em 2015, fosse possível retroceder algures entre 2008 e 2011, talvez um dos períodos mais férteis da música portuguesa? Na segunda edição das Noites do Crime Elétrico isso foi possível. A festa, organizada pela Amor Fúria e FlorCaveira, editoras que mudaram o paradigma musical português ao lançarem bandas (como os Golpes, os Feromona ou os Diabo na Cruz), repescou os Pontos Negros que celebram 10 anos de carreira, os Velhos e, a representar a nova fornada de música portuguesa, Cão da Morte. Mas a noite do passado dia 26 não foi apenas de festa: foi uma nostálgica reunião familiar.
Sentia-se excitação às 22h36 no Cais do Sodré. Apesar de a festa ter começado depois do previsto, o ambiente era relaxado e as caras familiares. Na assistência estavam as bandas dos catálogos das editoras Amor Fúria, FlorCaveira, Cafetra Records. Avistavam-se Tiago Cavaco, fundador da FlorCaveira, homem de família, punk rocker e pastor evangélico, e também Manuel Fúria, Samuel Úria, as Pega Monstro e o Éme. A expetativa era alta para uma plateia ansiosa e diversa: de metaleiros do seu cabedal, passando por jovens católicos, até barbudos envergando t-shirts dos Pontos Negros. E, apesar de toda aquela mixórdia, a louca celebração tapou qualquer diferença. Naquela noite de malvadez elétrica valeu tudo.
David Pires, baterista dos Pontos Negros, dizia-nos que esta seria “uma noite lendária e inesperada”. Tiago Cavaco, antes conhecido por Tiago Guillul, subiu ao palco e advertiu com humor os atrasos, recebendo palmas do público que berrava “Prémio Blitz”, remetendo para uma das canções do seu novo álbum. Começou por apresentar o primeiro ato de uma noite bem portuguesa: O Cão da Morte.
Luís Gravito, o Cão da Morte, teve a difícil tarefa de, sem banda, apenas com guitarra e teclas, domar um público conversador e ansioso pelo regresso dos Pontos Negros e dos Velhos. Foi apaixonando e cativou com a simplicidade da folk. Mostrou uma voz flexível, a fazer lembrar B Fachada, e melodias serenas aqueceram os mais atentos ao promissor musico português. A conquista foi inevitável e os corpos não resistiram a balancear ao som das teclas de “Um Canto Diferente”.
Pelas 23h05 o Sabotage já estava lotado e seguiam-se os esperados Velhos, que também marcaram um regresso após longa ausência. Bastou o álbum de estreia, disco homónimo de 2011, para imporem uma identidade melancólica, marcada pelas explosões típicas do indie rock do início do milénio, com guitarras distorcidas e baterias ritmadas. “Vocês querem ver os Velhos?”, perguntava Tiago Cavaco, recebendo uma resposta afirmativa de peso. Ao terminar o “Mariana” dos Asterisco Cardinal Bomba Caveira, entram uns Velhos bastante renovados. Cortaram a barba e o cabelo, remendaram os corações adolescentes e apresentaram-se em palco uns Velhos de cara lavada. Deixou de existir uma segunda guitarra, substituída por um órgão, mas o mistério e as poucas palavras permaneceram.
Apesar de não terem concedido o desejo do público de tocarem canções antigas, um concerto de faixas novas falou mais alto. A explosividade foi substituída pela intensidade: as novas canções dos Velhos são lamechas e melosas, substituindo a sonoridade negra e agressiva do álbum de estreia. As melodias e algumas cadências faziam lembrar a cena folk de Londres dos Noah and The Whale, Mumford and Sons ou Johnny Flynn, que não perderam a esquizofrenia agressiva dos The National. O abusar das escalas pentatónicos, o blues e o folk elétrico dos Velhos esteve bem patente em canções como “Estrada Branca” ou, o primeiro grande momento da noite, “O Calor vai Resolver”, que fechou o set de uma banda que promete marcar o ano de 2015.
00:10. Com o palco já quente, o grande momento da noite tinha chegado. “Querem ouvir os Pontos Negros? Mas os Pontos Negros querem ouvir-vos primeiro”, começou assim Tiago Cavaco, que volta a subir ao palco para apresentar o aguardado regresso dos Pontos Negros. O quarteto de Queluz, cujo último trabalho “Soba Lobi” saiu em 2012, ficou conhecido pelo pop rock dançável e descomprometido com cheirinho a Strokes. Várias fases marcaram a identidade do conjunto, desde o punk com direito a growl do vocalista Jónatas, no LP homónimo de 2005, passando pelo rock’n’roll orelhudo do “Magnífico Material Inútil” de 2008, que os catapultou para um estatuto elevado no panorama nacional, até ao mais eletrónico “Pequeno-almoço Continental” de 2010.
“Aqui têm. Os Pontos Negros à mesma velocidade.”, acrescentou Tiago Cavaco, dando espaço a uns Pontos Negros que rapidamente desmascararam a enorme ironia do “à mesma velocidade” com o tema “Magnifico Material Inútil” a rasgar. Ninguém diria que estiveram fora dos palcos durante tanto tempo. Os adolescentes tornaram-se adultos: alguns membros do quarteto casaram-se, enquanto outros tiveram formação musical e vivem da música.
A maturidade também se manifestou nas canções. Há pormenores novos que mereciam ser gravados em estúdio. Regravar um “Magnífico Material Inútil” não seria tempo gasto com o poder que a idade e a experiência lhes concederam. Aquilo que era uma simples batida de bateria e um riff de guitarra transformou-se num arranjo mais complexo. David Pires prova ter usado estes anos para se tornar num colosso da bateria, acrescentado mais groove, contratempos e ímpeto aos temas. E quem por ali viajou no tempo com aquelas canções não resistiu a responder com saltos, palmas, coros entoados e crowdsurfs constantes. Foi possível revisitar músicas como “Duro de Ouvido”, a “Xadrez & Chanel” ou “Depois da bonança vem a Tempestade”. Os Pontos Negros também ressuscitaram temas do EP homónimo e dos LPs “Soba Lobi” e “Pequeno-almoço Continental”.
Houve quatro grandes momentos no espetáculo. O primeiro deu-se com “Conto de Fadas de Sintra a Lisboa“, a canção mais popular da banda e que, fez saltar todo o Sabotage (até o Tiago Cavaco tropeçou no meio do palco). O segundo aconteceu quando Jónatas Pires relembrou o 10º aniversário da banda com a “Canção da Lili“. O terceiro veio na canção a “Armada de Pau“, que impôs o caos: pessoas a voar, incluindo Samuel Úria que já dançava com uma muleta que não lhe pertencia e espetadores a cantarem o refrão ao microfone.
“Obrigado. Nós fomos os Pontos Negros. Vamos andar por aí. Obrigado por terem estado connosco. Quando nós fizemos esta música as coisas ainda não estavam assim. Mas nós encontramo-nos no futuro, por isso é que viemos aqui, com esta meia hora para vocês. Muito obrigado por tudo o que nos deram, vocês deram-nos muito mais do que aquilo que nós pudemos vos dar esta noite. Eu sou o Jónatas, este é o Filipe Sousa, aquele é o Silas e o David, e nós somos os Pontos Negros.”, agradeceu Jónatas, enquanto o público entoava o refrão da “Armada de Pau”.
O quarto, e último grande momento, deu-se logo de seguida, quando Tiago Cavaco se junta aos Pontos Negros para tocarem um clássico do cancioneiro da FlorCaveira: “Queluz está a arder“, canção do Guel, do Tiago Cavaco (Guillul na altura) e o Comboio Fantasma. A noite estava feita: o Sabotage ficou a arder. Manuel Fúria atirou água para o público, fez crowdsurf, enquanto o Úria praticava uma dança grotesca no palco. A despedida gloriosa dos Pontos Negros terminara.
1h05. A despedida gloriosa dos Pontos Negros terminara. Muitos abraços e a noite continuou. Parece que foi ontem que o “Magnífico Material Inútil”, disco de estreia dos Pontos Negros, bem como o homónimo dos Velhos, foram lançados. A segunda Noite do Crime Elétrico não foi apenas uma reunião familiar, foi também uma celebração da música cantada em português.
Apesar de ainda não ter sido anunciado em lado nenhum, uns panfletos dados à saída do Sabotage anunciaram os participantes da próxima Noite do Crime Elétrico, que acontece na terceira quinta-feira de cada mês. Éme, Amamos Duvall e C de Croché atuarão no dia 16 de abril, no Sabotage Club, para mais uma noite organizada pela FlorCaveira e pela Amor Fúria.
Texto editado por Pedro Esteves.