“Um homem vai a uma repartição pública para tratar de um processo. À sua frente tem uma fila enorme de pessoas. O homem, com um enorme molho de folhas nas mãos, passa a fila à frente e chega-se ao pé do guichet, onde entrega o processo à funcionária que o atende. Pendurado no molho de folhas vem uma nota. A funcionária, vendo o dinheiro, diz ao homem: ‘Esqueceu-se aqui de uma coisa'”

As palavras não terão sido exatamente estas, mas o sentido da história está lá: o combate à corrupção começa quando alguém tem a coragem de dizer ‘não’. Foi isso que Guilherme d’Oliveira Martins foi dizer aos alunos de escolas secundárias de Évora esta quinta-feira, numa aula aberta promovida pelo Conselho de Prevenção da Corrupção (CPC), que é presidido pelo também presidente do Tribunal de Contas.

Évora. Corrupção. Não o faz pensar em nada? A Oliveira Martins lembra-lhe aquela vez, “há cerca de 100 anos”, quando a cidade decidiu “vender em hasta pública as pedras das muralhas”. A plateia do auditório escolar estremece. Então isso esteve mesmo para acontecer? “Sim”, diz o palestrante, sublinhando a gravidade da situação com o semblante. “Os cidadãos de Évora levantaram-se contra isto. Fizeram tudo o que era possível.” E o resultado está à vista: a muralha não saiu do lugar e a cidade-museu é hoje Património Mundial da Humanidade.

Cidade-museu ou cidade educadora, nas palavras da vice-presidente da câmara de Évora, Élia Mira, que fez questão de estar presente naquilo que inicialmente era uma aula aberta mas rapidamente se tornou numa conferência, cujo formalismo surpreendeu até o diretor da Escola Secundária Severim de Faria. Antes de a palestra começar, e enquanto um homem barbudo chamado Mendes fazia os últimos preparativos no frio auditório de betão, Carlos Percheiro demonstrava nervosismo por estar prestes a receber o secretário de Estado do Ensino Básico e Secundário, a vice-presidente da câmara, Oliveira Martins e José Tavares, diretor-geral do CPC.

Foi a este responsável que se ouviram as primeiras palavras que agitaram a plateia. “Quem é que ainda não visitou o site do CPC?”, perguntou. Poucos braços se levantaram, mas José Tavares desconfiou e disse: “Hoje à noite já têm programa”, para risota geral dos alunos do 10º ao 12º ano que vieram de várias escolas eborenses de propósito para ouvir a palestra. Pesquisando ‘CPC’ no Google, o primeiro resultado que aparece é do Clube Português de Canicultura. O site do Conselho de Prevenção da Corrupção lá aparece, em sexto posto. Quem por estes dias o visita dá de caras com Silva Lopes, mas não foi para isso que José Tavares o referiu. Foi para dizer que o CPC promove há três anos um concurso de vídeo e artes plásticas para alunos do básico e secundário. O vídeo vencedor de 2013 até está em destaque num site da ONU e é este:

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Como corromper o Pai Natal

A Escola Secundária Severim de Faria tem todos os traços característicos da rígida arquitetura do Estado Novo, mas o seu interior já pouco tem a ver com esse tempo, fruto das obras promovidas recentemente pela Parque Escolar. O auditório é acrescento moderno. Todo construído em betão e pintado de azul, tem capacidade para mais de duzentas pessoas e encheu completamente para ouvir Guilherme d’Oliveira Martins falar sobre isso de corromper e ser corrompido. E o presidente do CPC lá falou, uma mão no bolso e sem precisar de microfone.

É preciso “dizer não ao que é injusto, dizer não àquilo que põe em causa a defesa do bem público”, defendeu, citando depois António Sérgio e instando os jovens da sala a assumirem plenamente que são cidadãos. “O Estado não são eles, somos nós”.

Depois, justificou porque anda a correr de escola em escola a falar sobre um tema que pouco parece dizer a quem tem de se preocupar com exames nacionais, com a candidatura à faculdade e demais agruras. “A diferença entre uma sociedade atrasada e uma sociedade desenvolvida chama-se aprendizagem, a capacidade de aprender mais e melhor”, disse Oliveira Martins, para quem “a corrupção começa num favor e acaba num crime”. E, para exemplificá-lo, exibiu-se um vídeo onde se mostrava que o Pai Natal – até o Pai Natal! – é comprável.

Não é preciso muito para corromper o simpático velhote que dá prendas. Ao que parece, para que um menino saia da lista dos ‘maus’ basta levar um copo de leite e uma bolacha ao Pai Natal. Mas, como no caso BES, nem toda a gente pode ficar no banco bom/lista dos bons. Para dar lugar ao maroto João, a pobre Mariana salta das ‘meninas boas’ para as ‘meninas más’. “A carne é fraca”, comentou Oliveira Martins.

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A Escola Secundária Severim de Faria

Évora e a corrupção: uma moeda, duas faces

Finda a aula de Oliveira Martins, coube a Inês, uma sorridente aluna do 11º ano de Humanidades fazer as primeiras perguntas. Versavam sobre a necessidade ou não de ter menos maiorias parlamentares e sobre os perigos inerentes ao atual recrutamento dos juízes. O nervosismo que se lhe notou antes de começar a falar desvaneceu-se assim que se atirou à leitura da pergunta, que já trazia preparada de casa, como admitiu depois ao Observador. “Eu gosto imenso de política”, disse, explicando que nas aulas de Filosofia e História foram feitos debates prévios sobre a corrupção e que nem todos os colegas tiveram a mesma opinião sobre o tema. Alguns, por exemplo, opinaram que deixar um amigo passar à frente na fila para o refeitório, prejudicando todos os que estão atrás, não é um ato corrupto.

Para o presidente do Tribunal de Contas, a corrupção vai desde esse gesto aparentemente inofensivo até aos esquemas mais elaborados que envolvem altas figuras do país e do mundo. Évora sabe bem do que se fala quando o assunto é altas figuras do Estado. A não muita distância desta escola está preso preventivamente o ex-primeiro-ministro José Sócrates, suspeito de crimes de corrupção, branqueamento de capitais e fraude fiscal.

Mas isso era assunto tabu nesta aula aberta, em que foi dito aos alunos que não podiam fazer perguntas sobre o Caso Sócrates nem nenhum outro tema passível de suscitar polémica.

Helena, aluna do 12º ano de Economia, ficou desiludida. Queria que Oliveira Martins tivesse falado do segredo de justiça quando lhe perguntou qual era a fronteira entre a transparência e a violação da privacidade pessoal. O ex-ministro da Educação respondeu com uma metáfora: “Transparência não é espreitar pelo buraco da fechadura, é olhar pela porta aberta.”

E de transparência aí está Élia Mira – recordamos, vice da câmara de Évora – para falar. “Temos um grande orgulho por Évora ser considerada a sexta cidade de boas práticas de transparência” num ranking de municípios elaborado por diversos institutos de ensino superior. Lidera a lista Alfândega da Fé. Belmonte está em último lugar, já agora.