Será que estavam a falar da mesma pessoa? Para Diogo Freitas do Amaral, o deputado Galvão de Melo, eleito como independente pelas listas do CDS, era, “comprovadamente”, um “democrata”, um “homem do 25 de Abril” e um “antifascista”. Para a UDP, ele era “o fascista Galvão de Melo”, ou, numa linguagem mais apropriada à época, o “bandalho fascista Galvão de Melo” (quando um deputado centrista se levantou na Constituinte para fazer um “veemente protesto contra a utilização desses termos”, Afonso Dias, o deputado da UDP que tinha substituído Américo Duarte, insistiu: “É verdade pá, é bandalho mesmo!”). Para evitar estas armadilhas verbais, é seguro assentar num ponto que era admitido pelo próprio e pelos seus adversários: Carlos Galvão de Melo era “anticomunista”.

Quando o convidou para ser cabeça de lista por Viseu nas eleições de 1975, Freitas do Amaral fez uma jogada arriscada – tentou juntar dois cadastros para conseguir um currículo. Por um lado, o CDS sentia-se nos limites da respeitabilidade revolucionária: depois da ilegalização do Partido Nacionalista Português, do Partido do Progresso e, mais importante ainda, do Partido da Democracia Cristã, com o qual o CDS se tinha coligado para as eleições à Assembleia Constituinte, muitos temiam que os democratas-cristãos fossem as próximas vítimas da “táctica do salame”, que consistia em ir cortando um a um os vários partidos de “direita” até se atingir aquele momento zen em que restassem apenas os comunistas. Por outro lado, Galvão de Melo era visto como sendo alguém tão comprometido com a “reacção” que circulavam rumores de que, depois do 11 de Março, teria sido preso ou “fugido para Espanha”. Apesar disso, a soma dos dois – e a entrada dos dois na Constituinte – era uma forma de integrar a “direita” no regime. E isso era algo que até uma parte importante do MFA achava estimável e indispensável.

De certa forma, resultou. Freitas do Amaral lembra nas suas memórias que este convite conseguiu, ao mesmo tempo, sossegar e entusiasmar. A presença de Galvão de Melo (“um general do MFA” e um “antigo membro da Junta de Salvação Nacional”) nas listas do partido “ajudaria a afastar o medo que paralisava” os militantes. Além disso, “atraiu muito povo e deu bastante ânimo aos dirigentes locais” do partido.

Na Assembleia Constituinte, Galvão de Melo foi imediatamente denunciado como a voz da “reacção”. Logo na primeira sessão (a mesma em que atacou Mota Amaral), o deputado da UDP, Américo Duarte, sugeriu que era necessário “investigar” as terríveis maquinações do general, fossem elas reais ou hipotéticas. Referindo o “apoio” à “manifestação fascista de 28 de Setembro”, Américo Duarte avisou: “Não nos esquecemos.” E insistiu: “Nem sequer nos encontramos esclarecidos sobre a forma como esse senhor apareceu embrulhado no golpe de 11 de Março”.

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Isto era apenas o começo. Nos meses seguintes, apesar de ter feito apenas seis intervenções na Constituinte, Galvão de Melo seria sempre tratado por uma parte do hemiciclo como uma espécie de infiltrado dos grupos que queimavam as sedes dos partidos da extrema-esquerda no Norte, como um defensor da guerra civil e como “a cabeça e até o corpo” de um “novo contragolpe”.

A tudo isto, Galvão de Melo respondia com provocações. Quanto mais os seus adversários se irritavam, libertando fumos de indignação, mais ele usava a ironia e o sarcasmo para os atirar ao tapete.

A 12 de Dezembro, o Partido Comunista sofreu uma justificada crise de hipertensão com declarações feitas por Galvão de Melo em Rio Maior. O deputado Manuel Nobre Gusmão denunciou na Assembleia que o general tinha dito num comício do CDS que “os comunistas deviam ser empurrados até ao mar para aí morrerem de morte natural”. Mais ainda: “Para melhor ilustrar a sua ideia, o demagogo reaccionário Galvão de Melo, segundo o Jornal Novo, brandiu mesmo uma moca. Teria, aliás, afirmado ser isso a voz de Rio Maior.” Para o PCP, isto era um exemplo “dos mais grosseiros, baixos e repelentes de anticomunismo”, era uma expressão da “burguesia mais reaccionária e brutal” e era uma prova da “intenção de violência”, da “caça às bruxas”, da “perseguição” e do “ódio vesgo” da “reacção”.

 

O “humorista”

De facto, não tinham sido declarações suaves. Tanto que Adelino Amaro da Costa sentiu-se obrigado a distanciar-se delas na Constituinte: “Nós não podemos de forma alguma aceitar, não podemos registar sequer, com o mínimo de complacência, que se possam fazer afirmações em comícios nossos que tenham ou que dêem pretexto a interpretações do tipo de convite à violência.” Por isso, o dirigente do CDS preferiu interpretar as palavras de Galvão de Melo como uma mera “boutade de mau gosto”.

As “boutades” ainda mal tinham começado. Quando pegou no microfone do hemiciclo, Galvão de Melo usou a sua táctica habitual:

“Galvão de Melo: Decidi desta vez responder, não esquecendo nem o banho de mar nem a matraca que exibi no comício de Rio Maior. Eu, todos o sabem, sou anticomunista na medida em que sou antitotalitarista.

Vozes: És fascista!

Galvão de Melo: Contudo, mais que anticomunista, eu sou democrata.

(Risos.)

Uma voz: E humorista.

Galvão de Melo: Eu gostava…

(Burburinho.)

Galvão de Melo: …e humorista, também, quando se trata de comunistas.

(Risos.)”

Logo a seguir, ao ouvi-lo afirmar que o 25 de Novembro tinha evitado um “banho de sangue” que os comunistas pretendiam provocar, Vital Moreira explodiu: “Não seja demente, Sr. Deputado. Não seja demente.”

O discurso prosseguiu:

“Galvão de Melo: Depois de tudo isto e o mais que a falha de tempo não permite relatar, vem agora o Sr. Deputado Nobre Gusmão tentar explorar, mais uma vez, com palavras baixas, os temores de um ‘banho de mar’ e os temores de uma pequenina ‘matraca’. Atitude mais ridícula, não a posso eu imaginar. O que é um possível banho de mar comparado à tentativa de um banho de sangue?

Uma voz: É o que você quer.

Galvão de Melo: O que foi o meu ‘incitamento à violência’ em Rio Maior, para usar a vossa linguagem, comparado aos criminosos incitamentos do Rádio Clube tantas e tantas vezes repetidos ao serviço do Partido Comunista?

Uma voz: É falso!

(Vozes de protesto.)

Galvão de Melo: O que foi o meu ‘incitamento’ comparado com o vosso abortado golpe de 25 de Novembro?

Uma voz: É falso. É falso!

O Orador: O que vale a ‘matracazinha’ de meio quilo…

(Risos.)

…precisamente 550 gramas, se a colocarmos ao lado …

(Vozes de protesto. Apupos.)

… das armas apreendidas nas sedes do vosso partido?

Uma voz: Não atire mentiras para o ar.

Galvão de Melo: Ao lado das que ainda não foram apreendidas e ao lado das que têm sido descobertas…

(Apupos.)

…na fronteira cujo destinatário fácil é imaginar a partir das remetentes: Rússia e Checoslováquia?

Vozes: Muito bem!

Galvão de Melo: Srs. Deputados do Partido Comunista, façam-se democratas e serão recebidos de braços abertos. Se não sabem como, perguntem aos vossos camaradas do PC espanhol, do PC francês e, sobretudo, do PC italiano.

Uma voz: Vai discursar para Espanha.

Outra voz: Demagogo.

(Burburinho.)

Galvão de Melo: Até lá, Sr. Deputado Nobre Gusmão, as suas cândidas indignações contra o banho de mar e contra a pequenina matraca apenas me fazem sorrir. E é tudo por hoje.

Vital Moreira: Para infâmia já chega.

(Aplausos do CDS.)”

O CDS continuaria a aplaudir Galvão de Melo durante mais algum tempo – mas a relação entre o partido e o deputado independente não terminaria bem. A ruptura dar-se-ia em 1977, já com a Constituição aprovada e numa nova Assembleia da República. Galvão de Melo deu uma entrevista onde “admitia soluções políticas não-democráticas, ainda que temporárias”, criticava “frontalmente” o Presidente da República, Ramalho Eanes, e punha em causa as “qualidades de liderança” de Freitas do Amaral. Acabou por ser expulso do grupo parlamentar democrata-cristão. Nas suas memórias, o líder do CDS lembra que, depois de tomada a decisão, os dois deram um último aperto de mão e “o general saiu dignamente pela porta da sala”.
Fontes:

Diários da Assembleia Constituinte
“A Revolução e o Nascimento do PPD”, de Marcelo Rebelo de Sousa
“A Transição para a Democracia”, de Diogo Freitas do Amaral
“Cenas Parlamentares”, de Victor Silva Lopes
“O Antigo Regime e a Revolução”, de Diogo Freitas do Amaral