Tudo começou com uma ida a Fátima. Logo que a Assembleia Constituinte abriu, Jorge Miranda decidiu visitar o Santuário. Sentia-se inseguro: como confessaria nas suas memórias, com apenas 34 anos “não sabia se teria capacidade para os debates em plenário”. Isto era tão absurdo como dizer que Einstein não sabia se teria capacidade para somar dois mais dois – se havia coisa para a qual Jorge Miranda mostraria ter capacidade era para os debates em plenário (e em comissão, já agora).

Ao longo da Constituinte, o deputado do PPD falou por centenas de vezes. Fez declarações de voto, aditamentos, perguntas, pedidos de esclarecimento e tudo o mais que estava previsto no Regimento da Assembleia. Falou tanto que os outros deputados ouviam com cepticismo as suas promessas de concisão:

“Jorge Miranda: Sr. Presidente, Srs. Deputados, serei muitíssimo breve nesta intervenção.

(Risos.)

Tenho procurado ser, embora a vontade seja contrária.

(Risos.)”

O seu ritmo frenético tornava-o uma autêntica máquina de fazer Constituições. Numa entrevista a Rui Ramos, no Observador, Marcelo Rebelo de Sousa descreveu-o como tendo “uma capacidade de trabalho ilimitada”: “Era um caso único. Ele ia para casa, mesmo no pino do Verão, e todos os dias aparecia com centenas de propostas e alterações e correcções.” Para Jorge Miranda, fazer a Constituição portuguesa era a concretização de um sonho de adolescente. Muitos anos mais tarde, escreveria: “Como gostaria de voltar a viver aquela época!”

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O jovem deputado do PPD passou quase todo o tempo na Assembleia a falar de Direito Constitucional, a discutir artigos e a debater alíneas, normalmente com o comunista Vital Moreira (ou melhor: contra o comunista Vital Moreira). Mas, em Novembro de 1975, foi atropelado pela política pura. No dia 14, o PS, o PPD e o CDS decidiram enviar a maioria dos seus deputados para o Porto por recearem que estivesse iminente um golpe de Estado, com a criação da chamada “comuna de Lisboa”. Se isso acontecesse, as forças democráticas poderiam ter de se refugiar no Norte do país. Com elas, iria a Assembleia Constituinte – literalmente. As sessões deixariam de ser feitas no Palácio de São Bento, em Lisboa, e passariam para o Palácio da Bolsa, no Porto.

Quando os líderes partidários perceberam que era preciso legitimar todas estas decisões, viraram-se para Jorge Miranda. O deputado do PPD esteve uma noite inteira a escrever. O projecto de lei que apresentou no dia seguinte mostrava músculo e fibra. Nele, a Assembleia Constituinte “assumia a plenitude dos poderes legislativos e de fiscalização do Poder Executivo em Portugal”, dissolvia o Conselho da Revolução e a Assembleia do MFA e tomava para si a eleição de um novo primeiro-ministro. Ou seja: com a “autoridade” que lhe fora atribuída pelo “voto livre de seis milhões de cidadãos”, decapitava todos os órgãos de poder em Portugal, com a excepção do Presidente da República, Costa Gomes, que ficaria a servir de mediador entre o Norte e o Sul do país, numa última tentativa de evitar a guerra civil.

O Pravda português

Este documento nunca chegou a ser usado: a ameaça passou e pouco depois os deputados regressaram a Lisboa. Mas Jorge Miranda não foi sozinho – sem o saber, levou consigo uma polémica que lhe traria problemas. No dia em que chegara ao Porto, tinha perguntado à pessoa que o fora buscar ao aeroporto se, na eventualidade de um golpe da extrema-esquerda, as forças democráticas “teriam força para ocupar as sedes do Partido Comunista no Norte”. Falou sem olhar em volta. Ao seu lado estava um jornalista do Diário de Notícias, que publicou tudo o que ouviu – o jornal insinuaria que Miranda fizera “um incitamento ao terrorismo”.

No Palácio de São Bento, Octávio Pato, líder parlamentar do PCP, não lhe perdoou. A 18 de Novembro, falou do episódio durante um discurso no hemiciclo:

“Octávio Pato: Como seria interessante ouvir o deputado Jorge Miranda, do PPD, explicar por que colocou ao seu correligionário, frente a um jornalista do Diário de Notícias, a questão de saber se o PPD tinha mesmo força para assaltar as sedes do Partido Comunista?!

Uma voz: Tem, mas não faz!

Octávio Pato: As forças reaccionárias acusam os comunistas de pretenderem implantar uma nova ditadura. Mas a vida está demonstrando quem defende e quem ataca as liberdades democráticas.”

Quando se levantou para falar, Jorge Miranda disse primeiro que “hesitou antes de pedir a palavra”. Depois, acusou o Diário de Notícias de ser o “Pravda português” e de estar a orquestrar “uma campanha” contra “todos aqueles que pretendem uma revolução democrática e socialista”. Por fim, defendeu-se:

“Jorge Miranda: Sr. Presidente, Srs. Deputados, devo dizer que tudo não passa senão de uma especulação criada pela má fé de alguém que não tem o direito de usar sequer o nome de jornalista. Trata-se de uma especulação de alguém que não compreende, de alguém que não sabe distinguir, de alguém que faz pura provocação.

Uma voz: É invenção!…

Jorge Miranda: É evidente que do que se trata é de desviar as atenções do povo português, traumatizado pelo sequestro desta Assembleia Constituinte, para episódios que podem favorecer aqueles que efectivamente estão empenhados em destruir esta Assembleia Constituinte.”

Os deputados comunistas não ficaram convencidos. Manuel Gusmão atirou, com indisfarçável gozo: “Não me faças cócegas que eu rio…”

Fontes:

Diários da Assembleia Constituinte
“A Revolução e o Nascimento do PPD”, de Marcelo Rebelo de Sousa
“Da Revolução à Constituição”, de Jorge Miranda
“O Antigo Regime e a Revolução”, de Diogo Freitas do Amaral