Título: Os Segredos do III Reich
Autor: Guido Knopp
Editora: Esfera dos Livros
Páginas: 328
Preço: 20,50€

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Era uma vez uma figura política que, embora não tendo rendimentos conhecidos, se deslocava num Mercedes topo de gama com motorista e vivia com desafogo: bons restaurantes, espectáculos, viagens de férias. As declarações de rendimentos que apresentava mencionavam valores pouco significativos e quando o fisco quis saber de onde provinha o seu sustento, retorquiu que contraíra um empréstimo bancário, avalizado por um amigo. Para não despertar mais suspeições junto das autoridade tributária, quando adquiriu uma casa, colocou-a em nome de uma familiar.

Estávamos nos anos 20 e a personagem em questão era Adolf Hitler, que, estando ainda longe do poder, já era cortejado pelos capitães de indústria e pelas famílias poderosas, cujos donativos, canalizados com discrição, contribuíram decisivamente não só para transformar o minúsculo e pelintra Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP, na sigla alemã) numa máquina temível, como para proporcionar ao seu líder uma vida cheia de mordomias, embora Hitler cultivasse uma fachada pública de frugalidade e Mein Kampf inventasse para si uma juventude de privações e superação de dificuldades.

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As fontes de rendimento que Hitler se esforçava por ocultar à autoridade tributária incluíam, além dos donativos e presentes que lhe eram entregues a título pessoal, o acesso sem restrições à tesouraria do NDSAP – Knopp fala mesmo de uma “simbiose financeira” entre líder e partido. Porém, chegado ao início dos anos 30, Hitler poderia, se quisesse, viver confortavelmente apenas da “criação literária”: Mein Kampf, editado em 1925-26, tornara-se num bestseller. Hitler resisitiu a pagar impostos sobre os direitos de autor, pelo que acumulou uma dívida ao fisco, mas a sua subida ao poder, em 1933, permitiu obter um perdão fiscal (e isenção de impostos daí em diante), ao mesmo tempo que catapultou as vendas do livro para a estratosfera.

Se as relações nebulosas e emaranhadas dos políticos com o fisco não mudaram muito em 80 ou 90 anos, o mesmo não pode dizer-se dos padrões de beleza masculina: Hitler poderá ter uma figura ridícula aos olhos de hoje, mas nos anos 20-30 era um sucesso entre as mulheres, nomeadamente entre as senhoras de alta sociedade de meia-idade, e usava isso em favor das suas ambições políticas. “Atraio muitas mulheres porque não sou casado”, afirmava, e, consequentemente, sempre manteve a sua vida amorosa longe dos olhares públicos, para que, dizia, não lhe acontecesse o mesmo que aos actores de cinema, que “quando casam perdem algo perante as mulheres que os adoram e deixam de ser os seus ídolos”.

Hitler aceitava de bom grado os presentes, donativos e favores das matronas das classes possidentes, mas preferia carnes mais tenras: “uma rapariga de 18, 20 anos, que seja maleável como a cera”. Também estas o adulavam: entre as Hitlerettes mais entusiásticas destacou-se a jovem aristocrata inglesa com o improvável nome de Unity Valkyrie Mitford, que era cunhada do líder fascista inglês Oswald Mosley e sobrinha de Winston Churchill.

Guido Knopp não o refere em Os Segredos do III Reich, mas Unity, embora tivesse nascido em Londres, fora concebida na vila mineira de Swastika, no Ontário, circunstância que deliciará os que crêem na predestinação. Com 19 anos, assistiu ao Congresso de Nuremberga de 1933, e tornou-se numa groupie devota do Führer, seguindo-o por todo o lado, o que deixava Eva Braun exasperada com ciúmes. Hitler não dava importância especial nem a uma, nem a outra: “Os homens muito inteligentes devem procurar uma mulher primitiva e tonta”, confidenciou a Albert Speer, “imagine se tivesse uma mulher a imiscuir-se no meu trabalho! Nos meus tempos livres quero estar tranquilo.”

Não foram só as mulheres a ficar enfeitiçadas com Hitler: entre os seus maiores admiradores esteve Henry Ford, um anti-semita convicto que terá, a partir de 1933, enviado ao Führer, “todos os anos, 50.000 marcos como presente de aniversário”. O livro não o menciona, mas a admiração era mútua: Hitler elogiara Ford em Mein Kampf, tinha um retato seu no gabinete e garantira, em entrevista a um jornal americano, em 1931, que Ford era uma inspiração para ele.

Guido Knopp tem vasta produção de livros e séries documentais para TV sobre o III Reich, mas este livro de estrutura fragmentária mais parece uma compilação de curiosidades e aspectos obscuros, pitorescos ou controversos da história do III Reich: além de capítulos sobre a família, as finanças e as mulheres de Hitler, trata de aspectos específicos das biografias de Heinrich Himmler, Erwin Rommel e Albert Speer (sem que se perceba a razão da escolha destas figuras). O livro nem é propriamente escrito por Knopp, já que se indica que a “redacção” é de Mario Sporn, e, embora a ficha técnica refira um título original em alemão, são fortíssimos os indícios de que a versão portuguesa foi realizada a partir da tradução espanhola, o que é um mau princípio.

O subtítulo promete “as mais recentes descobertas sobre o lado oculto de Hitler e de grandes figuras do regime nazi”, mas, salvo um ou outro detalhe, não há aqui nada que não seja do domínio público já há bastante tempo – o que não retira, porém, interesse à leitura. A abordagem é séria, e rejeita, mediante argumentação fundamentada, as hipóteses mais extravagantes que foram brotando em torno de Hitler, como sejam a sua suposta ascendência judaica, ou o filho (Jean-Marie Loret) que teria tido de Charlotte Lobjoie, uma adolescente francesa que teria conhecido quando combateu na I Guerra Mundial.

O último capítulo, sobre Speer e o branqueamento que este tentou fazer ao seu envolvimento nos aspectos mais sinistros do regime de Hitler e a imagem de “bom nazi” que construiu laboriosamente no pós-guerra, acaba por ter alguma ressonância nos recentes casos de decisores de topo que, quando confrontados com aspectos danosos, irregulares ou negligentes da sua actuação, alegam completo desconhecimento. Como poderia um homem que aderiu ao NSDAP em 1931, que foi o arquitecto favorito de Hitler e trabalhou intimamente com ele na elaboração de planos arquitectónicos megalómanos para a renovação de Berlim (implicando a deportação de 75.000 judeus) e concebeu o monumental cenário para os Congressos de Nuremberga e que assumiu, entre 1942 e 1945, a direcção do Ministério do Armamento (tendo muitas das suas iniciativas recorrido maciçamente a trabalho escravo, muito dele envolvendo judeus), alegar que nada sabia do Holocausto?

É até absurdo que a discussão em torno do conhecimento do Holocausto por Speer gire em torno da sua presença ou não numa célebre conferência em Posen, a 6 de Outubro de 1943, em que Himmler terá divulgado às cúpulas nazis detalhes sobre o extermínio dos judeus (Speer acabou por admitir ter estado lá e até ter discursado, mas alega ter saído da sala antes de Himmler falar). A liquidação de seis milhões de seres humanos mobilizou tantos meios humanos e materiais durante tanto tempo e numa área geográfica tão dilatada (oito campos de extermínio, muitas centenas de campos de concentração, trânsito e trabalho, milhares de comboios) que seria improvável que um cidadão alemão medianamente informado não soubesse ou pelo menos suspeitasse do que estava a passar-se. O Holocausto não era um dos segredos mais bem guardados do III Reich e muito menos para alguém que fazia parte do círculo íntimo de colaboradores de Hitler.