Na Assembleia Constituinte, já se tinha ouvido a palavra “aldrabão”, a palavra “estúpido” e a palavra “ladrão”. Mas nunca, nunca – nunca – se tinha ouvido algo que fosse sequer remotamente semelhante com aquilo. Dezenas de deputados viraram-se na direcção de Américo Duarte, da UDP, e gritaram, num crescendo de fúria e revolta: “Assassinos!” Até o dia terminar, a acusação seria repetida mais onze vezes.
Não era uma força de expressão. Estava mesmo em causa uma morte. No dia 9 de Outubro de 1975, seis militantes do MRPP colavam cartazes na Praça do Comércio, em Lisboa, quando chegaram várias carrinhas com cerca de 60 membros da UDP, alguns com barras de ferro. Seguiu-se um confronto violento. Enquanto os elementos do MRPP eram espancados e empurrados na direcção do rio, um deles, Alexandrino de Sousa, gritou várias vezes que não sabia nadar. Mesmo assim, acabou no Tejo. E morreu afogado.
Anos mais tarde, o caso iria a tribunal e acabaria sem condenações. Mas, na tarde de 15 de Outubro de 1975, quase ninguém na Constituinte estava especialmente preocupado com provas ou testemunhas. Dias antes, Costa Andrade, do PPD, apresentara um voto de pesar, afirmando que “as causas políticas são transitórias e mutáveis, a morte é definitiva e irrevogável”. Agora, ali no hemiciclo, encontrava-se o representante político do mesmo partido dos “carrascos da rua”. Ainda por cima, ele não pretendia ficar quieto. Américo Duarte apresentou um requerimento a questionar a actuação do sistema judicial naquele processo.
O Presidente da Assembleia olhou para o papel como se estivesse perante uma estirpe rara da peste bubónica. Disse imediatamente: “A Mesa entende não dever ler esse requerimento, que é dirigido pessoalmente ao Sr. Presidente da República em termos que a Mesa não considera próprios e a que ela não desejava de maneira nenhuma, mesmo através de simples leitura, associar-se”. Tratava-se, portanto, de um problema sanitário, que exigia quarentena: “Entretanto, o Sr. Deputado, do seu lugar, tomando ele a responsabilidade, sem qualquer, ainda que muito indirecta, cumplicidade da nossa parte, poderá ler o requerimento”.
Foi isso mesmo que o operário da UDP fez, no meio de uma “intensa agitação”. Ainda hoje não se percebe como conseguiu chegar ao fim:
“Américo Duarte: Considerando que a falta de ordem, de autoridade e de disciplina têm sido as constantes nos discursos do VI Governo provisório, até aos discursos de Charais, Veloso e Pezarat…
(Vozes de protesto.)
… Considerando que essa ordem é a de bandos de provocadores andarem durante a noite a rasgarem a propaganda de organizações revolucionárias…
Vozes: Assassino!
(Apupos.)
(Agitação.)
… Considerando que essa autoridade é a de o Governo Provisório, antes de ouvidos os nossos camaradas presos, fazer sair um comunicado onde mentirosa e provocatoriamente os acusa de assassinos a frio. Considerando que essa autoridade é a do Governo Provisório, que passa por cima das suas próprias leis e dos seus tribunais, que afirmam que ninguém pode ser declarado culpado de um crime antes de tal ser provado…
Vozes: Agora já não queres a justiça popular!
(Gera-se tumulto. Há numerosos deputados de pé. As vozes de protesto são inúmeras.)
Vários deputados queriam expulsar o deputado da UDP do hemiciclo e alguns dispunham-se a “fazer calar à força” Américo Duarte. Mas ele continuou:
“Requeiro que o Presidente da República esclareça…
Vozes: Para a cadeia!
Outras vozes: Assassinos!
… Quais os dados e elementos concretos que o Governo tinha em seu poder sobre a lamentável morte de um estudante para, mentirosa e provocatoriamente, fazer sair um comunicado…
Uma voz: Assassinato político!
… Em que fala de assassinato, quando os nossos camaradas presos nem sequer tinham sido ouvidos pelo juiz de instrução…
Vozes: É falso!
Um assessor “gelado”
Ao ouvir tudo isto, o Presidente da Assembleia já estava a ferver. Quando o deputado da UDP começou a tentar responder aos apartes, perdeu a cabeça:
“Américo Duarte: O coro está é desafinado. Ali os fascistas do CDS falam de uma maneira! Ali os…
(Vozes de protesto e vivo repúdio.)
Presidente: Não, o senhor não faz comentários.
(Mais burburinho.)
(Apupos.)
Presidente: Leia o requerimento.
(Burburinho.)
(Continuam os apupos.)
Vozes: Rua!
Presidente: Não faz comentários. Leia o requerimento.
No final, Américo Duarte insistiu:
Está lido o requerimento, vai ser entregue à Mesa. O coro está desafinado…
(Apupos.)
(Assobios.)
(Manifestações de protesto.)
Vozes: Fora assassino! Malandro!
O episódio não tinha terminado. O Presidente da Assembleia foi ainda mais longe e, sem consultar ninguém, anunciou que tinha decidido não dar seguimento ao recurso e não enviar o texto ao Presidente da República. Sujeita a votação, esta posição foi aprovada pela maioria do plenário. Nas suas declarações de voto, os vários deputados foram brutais. Carlos Lage, do PS, não teve contemplações: “Aquilo que nós rejeitámos no requerimento do deputado da UDP é o cinismo com que se invoca a morte e o assassinato de um jovem que pode estar equivocado revolucionariamente, mas que tem o direito à vida, tem o direito aos seus ideais.”
Nas galerias, a assistir a tudo, encontrava-se Carlos Marques, assessor de Américo Duarte. Em 2005, lembraria ao Público que se sentira “gelado”. O deputado da UDP passou por muitos momentos difíceis na Constituinte, mas, como Marques admitiu, aquele foi de longe – de muito longe mesmo – “o pior dia de todos”.
Fontes:
Diários da Assembleia Constituinte
“A Revolução e o Nascimento do PPD”, de Marcelo Rebelo de Sousa
“Cenas Parlamentares”, de Victor Silva Lopes
“Público” de 2 de Abril de 2005
“Sol” de 25 de Janeiro de 2013