Hilário Teixeira deu um salto na cama. Já passava das duas da manhã e o militante do PCP preparava-se para dormir quando ligou o rádio e ouviu uma notícia que o deixou duplamente petrificado: o locutor revelou que Pedro Soares, que havia passado 12 anos nas prisões do Estado Novo e tinha acabado de ser eleito para a Constituinte, morrera nessa noite, num acidente de viação, quando saía de uma sessão política com a mulher; e anunciou que o seu lugar na Assembleia iria agora ser ocupado pelo número três da lista por Santarém, Hilário Teixeira.
Foi assim, num estado de absoluta surpresa, que entrou no Palácio de São Bento em Junho de 1975. Ainda por cima, chegou à Constituinte com um estatuto especial: com 22 anos feitos poucos dias antes, era o deputado mais novo da Assembleia. Aquilo que podia parecer apenas uma curiosidade transformou-se rapidamente numa responsabilidade. Enquanto não era eleita a Mesa da Presidência, o deputado mais velho – Henrique de Barros – foi nomeado Presidente e os dois deputados mais novos – Hilário Teixeira e o social-democrata Ruben Raposo – ocuparam o cargo de secretários.
O deputado do PCP tinha uma missão diária relevante: fazer a chamada, assegurando-se assim de que existia quórum para o hemiciclo funcionar. Era um exercício penoso. Não se tratava apenas de ler em voz alta 250 nomes – mas 250 nomes próprios acrescidos de vários apelidos. E não se tratava apenas de ler em voz alta 250 nomes próprios acrescidos de vários apelidos – mas tudo isso acrescido dos respectivos títulos académicos ou militares.
Logo na primeira chamada, resolveu mudar as regras e simplificar o processo. Escolheu aquele que seria, consoante o ponto de vista, o melhor ou o pior momento para o anunciar, tendo em conta que as suas palavras podiam assumir um duplo sentido: quando chegou ao deputado independente eleito pelas listas do CDS, propôs “acabar com o general Galvão de Melo”. Naturalmente, queria apenas “acabar” com a patente, e não com a pessoa, mas a ambiguidade deixou Galvão de Melo espantado. De qualquer forma, a partir dali os títulos foram deixados cair.
Hilário Teixeira só exerceu as funções de secretário da Presidência durante três dias, mas isso foi suficiente para entrar na História. Quando regressou ao seu lugar no hemiciclo, o mítico dirigente do PCP Blanqui Teixeira disse-lhe: “Olha, foste o primeiro comunista a subir à Mesa da Assembleia.” Para um partido que passara as décadas anteriores a tentar sobreviver na clandestinidade, não se tratava de um detalhe.
O facto de ter apenas 22 anos era uma vantagem em pelo menos um ponto – Hilário Teixeira conseguia dormir em qualquer lado. Na época, vivia num quarto alugado em Santarém, mas passava a semana em Lisboa, por causa dos trabalhos na Constituinte. Não tinha um sítio fixo onde ficar. Passou pelo hotel Suisso Atlântico, junto à calçada da Glória, pela Pensão Iris, que ficava mesmo em frente, e por várias casas de camaradas de partido: pela de Joaquim Beleza, em Moscavide, pela de Manuel Gusmão, na Estrela, ou pela de Adriano Fonseca, na Amadora.
Como tinha experiência em sindicatos – era ferroviário, trabalhando como desenhador no complexo do Entroncamento – foi colocado na terceira comissão da Assembleia, onde se discutiram aqueles que seriam os direitos e deveres económicos, sociais e culturais a colocar na futura Constituição. Perdeu a companhia de um camarada de partido logo ao fim de poucas horas de trabalho. Quando se sentaram para fazer o balanço do primeiro dia, Jerónimo de Sousa desabafou:
“Eh pá, ó Hilário, eu quando estava a discutir aqueles temas na comissão só me apetecia era meter-me ali debaixo da mesa! Estou farto daquilo, não tenho feitio para isto”.
O futuro líder do PCP pediu para ser substituído na comissão e reservou as suas forças para o plenário.
Não que as coisas no hemiciclo fossem mais simples. O jovem Hilário Teixeira tinha ao seu lado o número dois da lista por Santarém, António Malaquias Abalada. Tratava-se de um antigo operário agrícola e “velho resistente” comunista, que fora preso várias vezes durante o Estado Novo. Abalada era “muito nervoso” e tinha pouca paciência para ouvir discursos “reaccionários”. Várias vezes o seu camarada do lado teve que o segurar para que “ele não desandasse dali à bofetada a alguns deputados”.
Apesar destes exercícios de moderação, Hilário Teixeira não foi sempre um exemplo de serenidade. Um dia, num dos intervalos do plenário, teve uma discussão “muito acesa” com Basílio Horta, do CDS, que quase acabou em violência. Noutro dia, reagiu mal a um discurso de um deputado do PPD sobre aquilo que entendia serem os problemas do Partido Comunista:
“Olívio França: Como é pena acontecer que no meio de vós, pessoas do mais alto relevo intelectual, como é o caso do Dr. Vital Moreira, não possam ter a força, essa sim, força revolucionária, de destruir a velha carcaça ideológica de que está revestido o PCP e iniciar para ele a bela aventura da sua autêntica democratização.
(Risos.)
(Aplausos.)
Hilário Teixeira (apontando o peito): É só apontar a pistola e atirar…
(Agitação no hemiciclo.)”
Choque na URSS
Hilário Teixeira saiu de uma aventura e entrou noutra. Em 1976, com a aprovação da Constituição, deixou São Bento; e logo em 1978 foi convidado pelo PCP a passar um ano na União Soviética a fazer um “estágio académico” no Instituto de Estudos Sociais de Moscovo. O objectivo do partido era aumentar a sua fé no comunismo – mas o resultado foi o contrário.
No início desse processo de afastamento esteve uma desobediência. O português não tinha autorização para falar com nenhum cidadão soviético, mas decidiu aprender russo e, em seis meses, já conseguia falar com as pessoas que encontrava. “Comecei a aperceber-me daquilo que era a realidade soviética e isso foi muito importante para mim, porque verifiquei que nada do que acontecia ali era o que eu queria para o meu país.” Uma das coisas que mais o impressionou foram as “residências partilhadas”: as famílias tinham de dividir as cozinhas e as casas de banho umas com as outras. “Chocou-me bastante e levou-me a questionar todo o sistema.”
Foi um caminho sem retorno. Em 1982, pediu a demissão do Comité Central, para o qual tinha sido eleito ainda durante a sua estadia em Moscovo. Em 1991, saiu do PCP depois de o partido apoiar a tentativa de golpe de Estado contra Gorbachev. E alguns anos depois, em 1999, entrou no PS.
Estava assim confirmada uma previsão que Hilário Teixeira ouvira num dos seus primeiros dias na Assembleia Constituinte. Uma tarde, em 1975, apanhou um dos elevadores do palácio de São Bento com Olívio França. O deputado do PPD decidiu começar uma conversa com o seu adversário:
– Ó sr. Deputado, o senhor é um jovem… comunista, não é?
– Sim, comunista, pois, claro! Já era antes do 25 de Abril.
– Pois, sabe, você comparado comigo é uma criança.
– Sei perfeitamente.
– Eu, quando era da sua idade, também fui comunista, fui revolucionário, fui republicano… E, sabe, agora estou mais do lado da social-democracia. Olhe que se calhar a si vai-lhe acontecer o mesmo!
Na altura, o deputado mais novo da Constituinte não gostou do que ouviu. Mas hoje, 40 anos depois, admite: “A verdade é que ele teve um bocado de razão.”
Fontes:
Diários da Assembleia Constituinte
Entrevista a Hilário Teixeira