Foi ao 427º dia de prisão por fraude fiscal que Isaltino Morais recebeu a notícia da liberdade. Estava na hora da visita com a advogada. Quando o telefone tocou, ela própria não queria acreditar na decisão do Tribunal da Relação. As emoções que se seguiram, a forma como deixou a prisão após um ano e meio de reclusão arrumado em dois sacos do lixo ou como trocou de carro a meio caminho entre a cadeia da Carregueira e a sua casa em Oeiras são contadas na antepenúltima entrada de um diário que escreveu na prisão e que estará amanhã à venda em forma de livro. Antes e depois deste diário, o ex-presidente da câmara de Oeiras não poupa críticas a alguns “adversários” políticos e ao processo que o afastou dos holofotes. O Observador escolheu algumas passagens.

Fazer quilómetros dentro da cela

“Dou comigo a  fazer coisas que nunca imaginei: durante o tempo que estou no pátio tenho caminhado. Faço cerca de 6 quilómetros por dia. Nada mau, para quem com esforço andava 4 a 5 km por dia. Tenho procurado também fazer caminhadas na cela. Esta tem cerca de cinco passos de comprimento. Desde o 1º dia passei a fazer 300 voltas, cerca de 1500 passos (1,2 km). Ontem já fiz 900 voltas…”

Aquela mulher que joga à bola… um travesti

“A agitação do pátio traz também momentos hilariantes e perplexidades: ontem , quando regressei da enfermaria, onde tinha ido medir a tensão arterial, vi um grupo que jogava uma partida de voleibol, quando fico surpreso ao ver uma mulher que, para além de jogar com destreza, deslocava-se com gestos e passos elegantes, muito femininos. Na minha surpresa, e ingenuidade, perguntei a dois reclusos que assistiam ao jogo encostados à parede: ‘De onde saiu aquela mulher. Também há mulheres nesta prisão?’ Riram-se a bandeiras despregadas: ‘Então o senhor ainda não reparou? É um homem.”

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As conversas com os reclusos “VIP”

“À chegada ao pátio, às 9 horas, encontrei de novo à porta o Carlos Cruz. Já no pátio, dei algumas voltas com o Vale e Azevedo. Conversámos sobre os processos e fiquei a saber que, dos 700 reclusos da Carregueira, sou o recluso com a mais baixa pena e o único primário condenado a menos de cinco anos – no caso dois – a quem a pena não foi suspensa. Daí o facto de ser o recluso com a pena mais baixa. Noutros casos é sistematicamente suspensa. Mas esta é uma originalidade irreversível com a qual tenho de me conformar”.

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Livro estará à venda a partir de sexta-feira

O pedófilo que queria desabafar

“O X (…) disse-me que já tinha reparado que muitos reclusos vinham falar comigo. Respondi-lhe que sim, que efetivamente gostava de ouvir as histórias que me iam contando. Disse-me então que tinha muita dificuldade em falar da sua história, tal o sentimento de culpa que o perturbava a todo o momento (…). No início da idade adulta começou a sentir uma forte atração por crianças do sexo masculino, de 10/ 12 anos. Foi nesta altura, aos 18 anos, que começou a ter os primeiros contactos pedófilos, para não mais parar até aos 30 anos, quando foi preso e posteriormente condenado a 19 anos de prisão. Nesta altura da conversa já sentia o meu estômago em convulsão e tinha vontade de pôr termo a tudo aquilo. Pai de filhos, com o mais novo de apenas 11 anos de idade (…) sempre considerei a pedofilia um crime horrível. (…).

A confissão prosseguiu, com detalhes que progressivamente me causavam maior repulsa e indignação mas, ao ouvi-lo, abalaram-se também os alicerces das minhas convicções. X. falou também do impulso que não controlava (…), do pedido que terá feito em tribunal para ser quimicamente castrado (…) e da ausência de qualquer acompanhamento psicológico ou psiquiátrico na prisão”.

A comida que a mulher lhe levava

“A noite de ontem foi especial: partilhámos o cabrito assado entre os cinco [reclusos com quem dividia a cela]. Dizer que estava delicioso é pouco (…). Acompanhado com queijo de Alcains com gosto a Rabaçal, biscoitos da Guia, que a minha ex-mulher mandou, culminando com cerejas ótimas do Rui. Tudo isto regado com Sumol. Terminei a fumar um charuto de casamentos, à janela da prisão, oferecido por um outro recluso.

O aquecimento do cabrito resultou do empenho  do Rui. A embalagem plástica foi colocada no lavatório e aquecida em banho-maria com várias cafeteiras de água a ferver, tudo coberto com uma toalha para conter o calor. Muito bem, Rui!”

“A Patrícia trouxe-me carne de porco (secretos) e peru. Enganei-me e dei os secretos ao Nazir, que é muçulmano e não come carne de porco. À noite disse-me que a carne era muito saborosa, que devia ser vitela muito tenra. Sim, disse-lhe, era vitela barrosã! Não fui capaz de lhe dizer que me tinha enganado”.

Aguardente caseira… produzida na prisão

“Apercebi-me de um movimento mais intenso dos reclusos de outros pisos. Observei e apercebi-me de que se tratava da entrega de pequenos frascos cheios de líquido precioso: aguardente. Confecionada com alambique improvisado na ala B, segundo dizem. Indaguei como obter um pouco para provar e ter a noção do aroma e sabor. A transação de um pequeno frasco de 150 ml faz-se com a troca de dois cartões de telefone de seis euros cada. Quer isto dizer que o litro de aguardente ronda os 80 / 100 euros.”

Ocupação: escrever cartas

“Escrever cartas é agora a minha principal ocupação. Já tive de deixar de ir ao pátio para poder normalizar a correspondência. Faço-o porque além de quebrar a rotina, se tornou uma atividade que me estimula os sentidos, me alivia da prisão e me dá prazer”.

“Hoje reparei que a maioria das cartas são de mulheres”.

As greves dos guardas prisionais

“Esta greve, tal como a que lhe antecedeu, já totaliza cerca de 30 dias [ a 6 de agosto de 2013] (…). Transforma a prisão numa espécie de presídio medieval. Prisão repleta de tortura psicológica”.

A busca por um telemóvel de forma muito íntima

“A noite passada fomos surpreendidos com uma rusga à cela (…). terão na sua origem qualquer denúncia baseada ou em conhecimento de qualquer facto ou mera inveja entre reclusos ou entre guardas prisionais (…). Mandaram-nos sair a todos para o corredor, para entrarmos de seguida, um a um, para revista com desnudamento completo e posterior agachamento para verificar se algo estaria escondido no ânus. (…). O objetivo destas rusgas é a apreensão de droga, telemóveis ou outro material de natureza ilícita. Segundo as conversas (…) o alvo era eu próprio. Terão estranhado eu só telefonar ao fim da tarde e durante o resto do dia não me verem ao telefone. Dá-se a circunstância que eu devo ser o recluso que recebe mais correio e mais visitas. De advogados e de amigos recebo quase todos os dias. Logo, o uso do telefone, para mim, é tão-só para contacto com a família”.

Eusébio morreu

“Morreu Eusébio. (…)

Não podendo dizer que fosse seu amigo, tive o prazer de lidar com ele pessoalmente em circunstâncias que me permitiram conhecer dele facetas que a maioria dos portugueses não conhecem. Em 2001, num sotão da Charcutaria do Rato, negociei com ele, sentados em caixote de whisky, o seu apoio à candidatura do Pedro Santana Lopes à Câmara Municipal de Lisboa”.

As refeições vegetarianas

“Hoje o pátio voltou a ser à tarde, das 14h às 16 horas. Continuo poupado nas minhas caminhadas, venho a sentir maior fraqueza, fruto da deficiente alimentação. O jantar foi puré de batata com beringela. Não estava apetecível, apenas comi duas maçãs.

(…) Sabendo que as refeições, sobretudo o menu principal, são contadas e os que tentam furar o esquema vêm do refeitório sem a refeição, tenho de agradecer ao “faxina”, de uma generosidade extraordinária, que não me falta com fruta, cebola e agora estes mimos. Já há dois dias enviou-me uma cuvete com ervilhas e ovo escalfado. Todas as semanas, sem que ele tenha pedido algo, por cordialidade, envio-lhe duas caixas de café. Vou aumentar a dose. Merece-o”.

O guarda que todos os anos tem um acidente

“Chegou entretanto o guarda B (…). A cada instante o homem ia com a mão ao pescoço. Perguntei-lhe se estava com algum problema. Disse-me que sim, que tinha algumas dores, que deviam ser resultado de um acidente de automóvel que tinha sofrido, mas que podia estar bem pior. Contou-me que o carro deu três cambalhotas e que era um milagre ter ficado vivo. O problema era que agora era o automóvel, que ficara totalmente destruído. “Tinha apenas seguro contra terceiros”, disse.

Ao almoço comentava na cela este episódio (…). Acabada a frase estavam já todos a rir à gargalhada, o que me levou a perguntar ‘Porque riem?’. Disseram-me que todos os anos o guarda B. tem um acidente de automóvel, o carro dá várias cambalhotas e fica destruído, mas ele sai incólume. Afinal era apenas o B a ver se ‘pingava alguma coisa'”.

As críticas a Marques Mendes e a Paula Teixeira Cruz

“Luís Marques Mendes pediu-me para o receber e disse-me que a saída de Marcelo Rebelo de Sousa da liderança do partido o tinha deixado de fora da lista para as “europeias”, em 1999, que antes julgava ser certa, tendo já contraído algumas despesas em Bruxelas. Percebi o seu nervosismo e não tive como não o ajudar.

Contribuí para a sua chegada a ministro dos Assuntos Parlamentares do Governo Barroso, em 2002, contra a vontade inicial do primeiro-ministro. Expliquei que, em minha opinião, era melhor termos Marques Mendes dentro do Governo, devidamente domado, do que fora dele em jeito de franco-atirador”.

“A relação de Marques Mendes com Paula Teixeira Cruz é antiga.

Só após a minha recusa [de poder concorrer a várias câmaras da Área Metropolitana de Lisboa], Luís Marques Mendes lançou a sua deriva moralista contra o que chamou de “candidatos arguidos” (…). Para irritação dos meus adversários, ganhei as eleições em Oeiras e, com a minha vitória, Luís Marques Mendes começou a perder a liderança do PSD”.

(O livro será apresentado a 4 de junho, pelas 18h30, na Faculdade de Direito de Lisboa. Dois dias depois, Isaltino Morais estará na Feira dos Livro).