[Este artigo foi publicado originalmente a 30 de maio de 2015 e é republicado a 8 de dezembro de 2019, a propósito da morte de Rogério “Pipi”, aos 97 anos]
Rogério Lantres de Carvalho. Não sabe quem é? E Rogério “Pipi”? O “Pipi” do Benfica, nas décadas de 1940 e 1950. Pergunte ao seu avô que ele sabe. Antes de “Pipi”, o Benfica teve os seus primeiros ídolos, as suas referências, como Cosme Damião, que foi fundador, dirigente, treinador, futebolista, foi tudo, e foi também um médio, diz-se, bom de bola, num tempo em que a bola era de cautchu, as botas pesadas que nem chumbo, e tentar correr no desaparecido Campo da Feiteira – sem ponta de relva que se visse e sempre enlameado –, era de suar as estopinhas.
Veio depois o líder e ágil goleador (que até foi saltador em comprimento e de triplo-salto) Espírito Santo, veio José Águas e veio Coluna (os dois partilhariam mesmo o balneário do Estádio do Campo Grande – a Luz só surgiria em 1954 – com Rogério “Pipi”), veio o pantera negra, Eusébio, o melhor que de melhor se viu no Benfica, veio Humberto, Toni, Diamantino e Chalana, veio Simão, há agora Gaitán, mas “Pipi” foi o primeiro grande ídolo dos benfiquistas no século XX. E foi-o não só pela técnica acima da média, pela subtileza no trato da bola, pela velocidade, pela agilidade, por ser um fantasista quando era raro ser-se fantasista, foi-o não só por ter marcado 204 golos em 306 jogos de águia ao peito; foi-o por ter sido um ídolo fora dos relvados, por ter sido carismático, galanteador, uma estrela da bola quando o futebol não era o que é hoje.
A alcunha de “Pipi” nasceu precisamente do seu ar de bon vivant. “Por quê ‘Pipi’? Isso foi uma ideia do Gaspar Pinto e do Francisco Albino no balneário do Benfica. Eu tinha 19 anos, e era o novato, o miúdo. ‘Temos que dar uma alcunha ao miúdo…’, ouvia-os eu a cochichar. ‘É o Espinha, que ele é alto e magrito, e parece-se com uma espinha!”, disse o Albino. E eu: ‘Não, não…’, vão lá chamar isso a quem quiserem, mas a mim não. ‘Então és o Pipi, já que andas sempre todo engravatado, e todo penteadinho; és o Pipi!’. Nem me importei. A verdade é que eu gostava de me vestir bem, e era bem parecido, ia na rua e toda a gente me conhecia: ‘Olha o Pipi! Vai ali o Pipi do Benfica!”. Se as raparigas também? Uiiiii, sim, as raparigas também… [Risos]”, conta.
Rogério “Pipi”, que nem era ponta-de-lança, e tinha por característica trazer a bola da esquerda para o meio, um pouco como o Cristiano Ronaldo de hoje o faz, marcou dezenas e dezenas de golos, de toda a maneira e feitio, de pé esquerdo ou de direito – ele que era ambidextro –, de cabeça, em drible ou só a encostar, de tudo se valeu para marcar o golinho da ordem. Mas onde marcou que se fartou foi na Taça de Portugal: 51 golos em 47 jogos. “Só em finais foram 15 golos. Fui a tantas como o Eusébio. Ele em seis finais só marcou oito, e eu quase o dobro. É um recorde mundial”, lembra Rogério, 92 anos, mas com a lucidez e o sorriso de um catraio quando volta atrás no tempo e revive os seus dias de futebol.
“Eu escrevo todos os dias. Escrevo sobre as memórias do futebol e o que mais me vier à cabeça. Escrevo para que o cérebro se mantenha ativo. E ando a pé todos os dias, sabe? Eu moro acolá mais abaixo [aponta para o outro lado da rua], na esquina com a [Pastelaria] ‘Suprema’, e ando aqui pelo bairro de Alvalade. Gosto muito.”, explica-nos Rogério “Pipi”, por entre dezenas de papéis e papelinhos, todos escritos à mão, de uma caligrafia precisa, que deitou à mesa do mítico “Café Vavá”, onde conversámos, e onde vai diariamente tomar o café da tarde.
Mas voltando às finais da Taça. “Ah, sim… Eu da primeira final, que foi contra o Atlético, creio eu, e até fiz um golo, não tenho muita lembrança. Mas lembro-me bem é da última. Que jogão que foi! Foi contra o Sporting. Olhe-me aqui [aponta para uma foto] a driblar o guarda-redes do Sporting. O Carvalho? Não é nada o Carvalho. O Carvalho foi depois. É o Carlos Gomes. Era bom guarda-redes, o tipo.” Estávamos em junho de 1952, no Estádio do Jamor.
O Sporting fora o Campeão Nacional da temporada 1951/1952, mas o Benfica viera para final como o detentor da Taça. Rogério “Pipi” era o craque de um Benfica onde começava a despontar um tal de José Águas, enquanto que no Sporting, dos “Cinco Violinos” já só Travassos, o “Zé da Europa”, e Albano se mantinham no plantel. “Foi o meu melhor jogo. Nós ganhámos por 5-4, e eu fiz, como hoje se diz, um hat-trick. Fiz três golos ao Sporting, ao nosso grande rival, e logo numa final da Taça. O último golo foi incrível. O jogo estava empatado, 4-4, o árbitro já tinha o apito prontinho para o fim, e o Zé Águas dá-me a bola. Eu desatei a correr – era mesmo muito rápido! –, passo por um, zás!, por dois, zás!, e rematei de fora da área… pimba! Golo. A festa foi tanta, que queríamos ir para o balneário, e o público não nos deixou ir. Ergueu-nos nos ombros, veja bem.”, recorda Rogério, o herói da final de 1952.
Mas há outra final que Rogério “Pipi” traz bem viva na memória. Não foi no Estádio do Jamor, mas no Campo das Salésias. O Benfica venceu o Estoril por 8-0, cinco golos de “Pipi”, e trouxe a Taça de Portugal. Foi em maio de 1944. “O Estoril não era mau. Tinha o Sebastião, o Elói, o Vieirinha… E foi o ricalhaço do Fausto de Figueiredo, que o era o dono do Casino Estoril, que pagou os jogadores todos. Eu preparei-me para o jogo como sempre o fiz. Deitava-me cedo de véspera, dormia bem, tomava um duche de manhã, um bom pequeno-almoço, e ia para o jogo. Eu não ia para estágios. Tinha mulher e filhos em casa, e tanto o presidente como o treinador já sabiam que eu não ia para estágios. Olhe… outros tempos! Quando cheguei ao balneário, pergunta-me logo o Julinho, em tom de provocação: ‘Então, vens com disposição para marcar?’, mal ele e eu sabíamos que iam ser cinco.”, lembra.
Os dias de Copacabana e a saída do Benfica
“Sabe que meu apelido, ‘Lantres’, é espanhol. O meu avô era espanhol, mas ao que sei não era dado a futebóis, e o meu pai também não – ele foi Oficial da Marinha Mercante e morreu muito cedo. O meu irmão, o Armindo França, é que era mesmo bom. Nós vivíamos no Bairro da Madre de Deus, e ele era o ídolo lá da rua. Foi ele que me trouxe para treinar no Chelas.”, explica.
Rogério estudou na Escola Industrial Afonso Domingos, mas, concluída a 4ª classe, foi trabalhar para o Grémio das Carnes, no Rossio. Certo fim de tarde, no Grémio, aborda-o à saída Fernando Peyroteo, o goleador dos “Cinco Violinos”, que lá trabalhava, e lhe pergunta se Rogério quereria fazer parte de uma partida de “casados contra solteiros”, com trabalhadores de lá. “Respondi-lhe que sim. Ele não sabia que eu era futebolista no Chelas. Pergunta-me ele: ‘E queres jogar onde? Mais à frente, mais atrás?’. Disse-lhe que jogava em qualquer lado, e notei logo pelo olhar dele que pensou que eu era um cagão de primeira. Fui para o jogo, parti aquilo tudo, marquei sei lá quantos golos, dei a marcar, andei com a brincar com a bola o tempo todo, e no final ele vem ter comigo e diz-me: ‘Tens que vir para o Sporting. Vou falar de ti ao presidente.’”.
Ainda foi treinar ao Sporting, no Lumiar, mas, benfiquista, mal soube do interesse do clube do coração, assinou logo pelas águias. Dizia-se que o Benfica pagou 26 contos por ele, e que Rogério “Pipi” terá recebido dez. “Eu não sei quanto é que o Benfica pagou por mim ao Chelas. Dizem que eu recebi mundos e fundos, mas eu não vi nada. Na altura não se pagava nada como se paga hoje”, ironiza.
Talvez em busca de maior independência financeira, que o futebol e o Grémio das Carnes não lhe podia dar, parte para o Brasil em 1947, após cinco épocas de Benfica, e vai jogar no Botafogo. Recorda-nos a história da sua ida por entre risadas e um sotaque carioca: “Um dia entra-me um tipo todo aprumado no ‘Grémio’ e diz que quer conversar comigo. Eu topei-lhe logo a pinta: fatinho branco, bem engomado, bigodinho… era brasileiro. ‘Oi, seu Rogério, eu venho do Botafogo, conhece?’ Conheço, conheço. ‘Nós queremos contratar um jogador estrangeiro, e você é o cara.’ Disse-lhe que não. E ele voltou lá, duas ou três vezes, e quando me ofereceu cinco mil cruzeiros – uma fortuna!, que você nem faz ideia – de ordenado, casa em Copacabana, e tudo pago, não pensei duas vezes e fui.”
Nem um ano viveu no Rio de Janeiro. Diz-se que não se entendia com o craque com do “Fogão”, Heleno de Freitas, mas Rogério “Pipi” desmente. “É mentira. Dizia-se isso, mas é mentira. O Dr. Heleno – chamavam-lhe Doutor – era de bom trato. Eu tinha uma vida boa no Rio. Foi um ano fantástico. Treinava de manhã, viva num hotel em Copacabana, mesmo em frente à praia, e à tarde ia com a minha mulher apanhar sol. O problema (que não é um problema) foi que a minha mulher engravidou, e queria ter o bebé em Portugal. Foi por isso que regressei.”
E regressado a Portugal, Rogério “Pipi” fez uso dos 50 contos que ganhou no Brasil, e comprou um carro. Um Ford no Auto-Boavista. O dono do concessionário disse-lhe que, se quisesse, Rogério poderia ser um bom vendedor. “’Você é futebolista, toda a gente sabe quem você é, tem boa ‘lábia’, não quer vir para cá?’, perguntou-me ele. E fui. Fui vendedor a vida toda.” Durante mais sete temporadas conciliou o Benfica, os golos e a venda de automóveis. “Ganhei muito dinheiro. Por cada furgoneta que eu vendia, ganhava um conto e quinhentos. Um dia, o José Luís Vicente, ali da Rua Morais Soares, comprou-me dez furgonetas. Ganhei um dinheirão!”
A chegada de Otto Glória ao Benfica coincide com a saída de Rogério “Pipi” do clube. “Eu nunca tive nenhum atrito com o Otto Glória. Ele até desejou que eu ficasse. Mas o tipo quis profissionalizar toda a gente, dois treinos por dia e tal, a ganhar uma bagatela. Ora bem, eu ganhava mais como vendedor num dia, do que o Benfica me pagava num mês. Por isso, saí e fui para o Oriental.”, conta. Saiu, mas não sem a devida homenagem. Foi a 5 de setembro de 1954, precisamente no Estádio Nacional, onde erigiu o seu recorde de golos em finais da Taça de Portugal. O adversário foi o Futebol Clube do Porto.
“Fui muito feliz no Benfica. Fui muito feliz no futebol. Há um episódio curioso. Um dia fomos jogar ao Belenenses. O jogo estava 2-2. O treinador do Belenenses manda subir toda a gente, e deixa o Feliciano sozinho a marcar-me. O Chico Ferreira passa-me a bola, e o Feliciano, que era pesadão, vira-se, pensando, talvez, deixa-me já começar a correr senão não tenho pernas para este gajo. Quando ele se vira de volta, já eu ia isolado, e pimba!, faço um golo, na gaveta, ao Capela. O Feliciano vem ter comigo, e eu pergunto-lhe mas o que é que tu queres?, pensando eu que vinha pedir satisfações. Não. Vinha dar-me um abraço e dizer-me que foi um golão. Como você deve imaginar, o Feliciano foi assobiado e achincalhado até final. [Risos] Mas é isso que eu guardo do futebol: a camaradagem e os golos.”